República
28 de Dezembro de 1972
[Excerto]
Republicado em Oralidade, Futuro da Arte?, São Paulo, Escrituras, 2011 e Ser Moderno em Portugal”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
“O desejo devora os objectos”, proclama Hegel na Introdução à Estética. A evolução e as roturas da arte moderna que apesar da sua aparente dispersão e um constante acumular de conflitos se pode entender com extremo rigor ― justificam plenamente a síntese de Hegel através dos caminhos e atalhos das vertentes principais:
a anulação dos desejos
a anulação dos objectos
Anulação dos desejos, das paixões, das necessidades mais primitivas, emocionais, subjectivas. Esta corrente que tem as mais variadas desinências, vai de um naturalismo-outro (land art, identificação com o espaço total, neutralização do tempo) à mais espantosa renúncia a todos os significados culturais procurada em certos casos daquilo a que se tem chamado realismo-radical ou hiper-realismo.
Esta “anulação” poderia ser definida por um dos mais interessantes operadores estéticos do nosso tempo, Robert Filliou, que de resto pela extrema complexidade (ou extrema simplicidade) da sua “obra” não se pode classificar em nenhuma categoria fixa. Assim, para Filliou:
O segredo da criação permanente é: “Em que quer que seja que tu pensas, pensa noutra coisa. O que quer que seja que tu faças, faz outra coisa.”
O segredo da criação permanente é: “Não desejar nada. Nada decidir, nada escolher. Ter consciência de si próprio. Manter-se em estado de alerta, tranquilamente sentado, sem fazer nada.”
Um monge treinado no budismo zen não falaria doutro modo. Anulação dos objectos, desmaterialização da arte. Corrente cuja definição mais rigorosa vai da queda objectiva da obra de arte ao nível da mercadoria (já anunciada por Hegel), à negação da forma-objecto na chamada arte pobre, à substituição de objectos criados pelos próprios actos da criação (“quando as atitudes se tornam forma”), à arte conceptual (“art as idea as idea”). Neste domínio certas experiências como a body art e o artista-como-obra-de-arte encontram uma definição particular.
Situações-limite, estas vertentes principais não devem esconder as fases intermediárias, e sobretudo certas tentações cientifistas de inspiração ecológica, ou mais geralmente tecnológica. Aliás, um novo entendimento da ciência, novas e audaciosas aproximações estão no horizonte de muitas destas tendências. De um modo geral, estas “audácias” acontecem paralelamente ao reaparecimento de um optimismo, paradoxal é certo, mas crescente e invasor. Certos movimentos de juventude e efémeros “maios” políticos pontuam e confirmam a universalidade barroca e humanista desta nova respiração.
Podemos mencionar 1919 como o ano em que aconteceu o caso mais significativamente simbólico daquilo a que chamamos a modernidade; nesse ano Marcel Duchamp põe bigodes numa reprodução da Gioconda. Este acto surge-nos em primeiro lugar como um puro acto gratuito e destrutivo, como o primeiro manifesto contra aquilo a que se chamaria mais tarde a cultura asfixiante. Na verdade, o mini-acontecimento ou mini-happening como lhe gostariam de chamar os homens de Fluxus (George Brecht, Manciunas, Filliou, Ben, etc.) significa em positividade algo de bem mais importante, tal como os célebres ready-made de Duchamp que aquela atitude vem significativamente acentuar. Trata-se de um acto de grande higiene espiritual, a criação prática de uma zona de convívio em face da Obra-de-Arte, negando-lhe o carácter monumental e transcendente. É o primeiro acto de um ritual de convívio e autêntica festa que conheceria e ainda conhece hoje profundos e contraditórios desenvolvimentos. Posteriormente Duchamp demonstraria a sua genial lucidez (diálogos com Pierre Cabanne) ao enunciar aquilo a que chamarei a teoria da indiferença.
A escolha de um objecto, de uma atitude, seria a consequência de uma ascese atingida no conseguimento da total indiferença visual e do gosto. “Tudo depende da motivação... como se não houvesse nenhuma emoção estética”. Opção total, liberdade.
Esta pedra angular dos tempos modernos que tivera por antecessor o movimento impressionista (com a sua anulação ou integração do artista na natureza), que iria ficar latente durante as longas e pacientes elaborações da arte abstracta (que criou certos instrumentos operatórios indispensáveis) e durante a não menos importante fase criadora de disciplina introspectiva que foi o surrealismo (com prolongamentos ainda operantes) viria eclodir em quase todas as correntes actuais mais vivas, que todas elas têm como denominador comum a valência estética, o experimentalismo estético, a eliminação das fronteiras entre a arte e a vida; e enfim a morte da arte, enquanto vasta manobra reificante e supérflua. A evolução do pensamento e da filosofia ocidental (a economia clássica inglesa, a filosofia alemã, a dialéctica) e a aproximação de certas manifestações do pensamento oriental (o budismo zen, a filosofia tântrica) permitem compreender o mais importante desta nossa contemporaneidade que vai de um estado zero à afirmação serena de uma nova globalidade: uma indiferença ao mundo é uma indiferença à morte, afirmação de tudo em tudo.
Esta transformação, evolução múltipla, muitas vezes dispersiva e contraditória, pode ainda encarar-se sob dois aspectos, dois modos operatórios que se vêm estruturar metodicamente numa ou noutra vertente. O primeiro modo é caracterizado sobretudo pela criação de distâncias críticas, formas interrogativas e a organização de problemáticas diversas. É um modo operatório que convém sobretudo ao que designamos como a vertente anulação dos desejos. É um modo demonstrativo e passivo: um operador estético caminha alguns quilómetros no deserto, acompanhado apenas por ajudantes e colaboradores, traça uma imensa linha contínua, e finalmente deita-se, confunde-se com a terra na vertical da linha traçada. A unidade do facto natural e humano foram assim significados não numa obra monumental mas sim num trabalho monumental, e tanto mais quanto mais efémero, mais evanescente. Deste acontecimento ficarão apenas documentos, fotografias, testemunhos – como no relatório de um trabalho científico. É um trabalho a frio. (…)
Da arte supérflua à arte necessária
... reconciliar a parte e o todo, buscar a energia essencial de todas as acções, renunciar a toda a acumulação artística supérflua dos últimos séculos (indiferença estética) e afirmar uma nova valência estética, uma arte necessária.
Toda esta vasta operação se pode descrever num enunciado simples (independentemente dos mais diversos e/ou ínvios caminhos operatórios, vertentes de trabalho): trata-se sempre de criar um espaço socrático, uma indiferença factual (forma-obra), uma pura gratuidade existencial – um estado zero – para além do qual seja possível re-criar o mundo-à-volta sem fissuras, sem falências. Um mundo do Mesmo. Esta utopia (com o fim da outra utopia) é hoje uma saída possível, a única talvez, e opera-se não pela via do sonho, ou da evasão, mas pela do trabalho prático, pela exaltação (estética) do conhecimento, por aquilo a que chamarei uma nova técnica da solidariedade. (“Da Arte e do Povo”, como dizia Apollinaire, “de Mim e do Mundo”, como digo eu.)
Temos, assim, duas partes de uma coerente vanguarda:
uma teoria da indiferença
uma técnica da solidariedade
Um “artista” moderno, um extraordinário operador estético do nosso tempo surge como um dos casos mais significativos de uma vanguarda “hot”, tal como foi definida acima. Alemão ocidental, Joseph Beuys faz além do mais a síntese entre a vanguarda americana e a vanguarda europeia que já se vinha verificando com o grupo Fluxus (com o qual de resto mantém fecundas relações).
Joseph Beuys – um guru
Alguns tópicos ajudarão a situar Joseph Beuys.
Düsseldorf. Não havendo hoje um centro para a arte moderna (como nos definitivamente toldados tempos da “Escola de Paris”), Düsseldorf é sem nenhuma dúvida um dos mais importantes e efervescentes locais da geografia vanguardística europeia. Spoerri e o seu restaurante (eat art), Marcel Broodthaers e a sua anti-cinemateca, Filliou e a lembrança da La Cédille qui sourit (Centro de Criação Permanente), e o Arbeitszeit, Haus Rucker-Co com a sua monumental arquitectura efémera (plásticos), muitos outros casos individuais e grupos, cuja enumeração dispensaria qualquer outro comentário.
Beuys encontra-se em Düsseldorf desde 1957 como aluno da Academia local; como professor (de escultura) desde 1961. Várias gerações de alunos, alguns dos quais são considerados os casos mais interessantes de entre os jovens artistas alemães, tais como Ruthenbeck, Inge Mahn, Palermo, etc. Actualmente com 800 candidatos a alunos (o máximo seria 200) e as manifestações que daí resultaram, a situação de Beuys como professor mantém-se indecisa.
Aparência. Desde que é conhecida a sua actividade estética (piloto durante a guerra, esteve prisioneiro dos ingleses de 41 a 45), Beuys assumiu um vestuário fixo: chapéu mole, jaqueta verde-claro sem mangas e com algibeiras. Ostenta sempre uma espécie de medalha constituída por um pequeno pedaço de pele de coelho e uma argola. É um vestuário prático e neutral. O único elemento aparentemente simbólico (a pele de coelho) poderá estar ligado à reminiscência do seu interesse pelas ciências naturais, anterior à guerra. A natureza tem de resto um lugar especial no trabalho profundamente humanista de Beuys.
Desta constante vestimentária resulta desde logo o lado “actor” de Beuys, em ininterrupta actividade. Depois de uma evolução rigorosa (de que em seguida darei uma pálida ideia), foi este lado actor que veio a predominar na sua actividade e que o levou a estar presente nos 100 dias da Documenta 5, em Kassel, no estabelecimento daquilo que parece ser um objectivo principal: o diálogo. Diálogo essencial e definidor de globalidade porque aponta sempre para uma definição de objectivos utópicos precisos. Na Documenta a actividade de Beuys reduzia-se a isso e à realização de gráficos das suas ideias. Estas andam à roda de uma nebulosa e impressiva democracia directa, cuja resultante é evidentemente moral: “a revolução somos nós”.
Evolução. Complexa e profundamente coerente, a evolução de Beuys parece resultar de uma convicção agónica (como veremos) de inalienável necessidade. Herdeiro possível do expressionismo alemão e de uma sociedade onde se acumularam as ruínas – é compreensível que algumas das suas manifestações se aproximem da funk art, arte dos detritos, construção com elementos destruídos.
(A acusação de má consciência que levaria a uma estética da agonia dos campos de concentração é ao mesmo tempo demasiado restritiva e demasiado óbvia: toda a melhor cultura alemã contemporânea renasce dessas cinzas e daí, justamente, vai ao passado procurar uma nova transparência ao futuro. É o “caminho para dentro” de Novalis, autor tão citado por Beuys.)
― Sabes que sou escultor?
(…)
Ernesto de Sousa encontra-se com Joseph Beuys...
...assim, para lá de todo o pudor:
ES: Nascemos ambos em 1921, eu conheço-te razoavelmente. Tu não me conheces. Achas bem?
JB: Acho péssimo.
ES: Conheces algum português?
JB: Sim... O Pinheiro, o Costa Pinheiro!
ES: Pois... que vive e trabalha em Munique. Também o conheço. Afinal começamos a ter algo em comum... de qualquer maneira, terei que te conhecer melhor. A primeira pergunta que quero fazer é muito importante: Consideras-te uma pessoa séria?
JB: Sim, sou uma pessoa muito séria...
Aqui Beuys suspende-se e afirma depois com uma grande simplicidade...
JB: Mas também sou um clown.
(Um clown. Sabia Beuys o profundo respeito que eu tenho pelo clown? Tinha que saber. Almada Negreiros também era assim um pouco clown e isso não foi uma das razões menores do meu fascínio, posso dizer do meu amor. Vou mais longe: um intelectual que se preza e que se toma cem por cento a sério nesta sociedade, neste sistema, é para mim o último dos patetas. Ou talvez seja um ingénuo. “Um ingénuo voluntário”, dizia Almada. E talvez não seja por acaso que num grafitti desenhado sobre um cartaz de Beuys alguém escreveu: Sou um ingénuo!)
ES: Tu fazes “propaganda política”. A mim parece-me que propagas sobretudo uma ideia utópica. Acreditas que a utopia é necessária?
JB: Sim. Mas devemos encarar a utopia no domínio das possibilidades reais. Há uma utopia negativa que devemos riscar. E uma utopia positiva. Essa, embora mantendo-se como utopia, deverá também entrar no domínio das possibilidades reais.
(E com uma escrita característica e impressiva traça um esquema desta ideia no meu caderno. Compreende-se que os esquemas de Beuys tenham tanta importância para ele. São elementos do espaço socrático que conduz ao diálogo, ao d i á l o g o, ao D I Á L O G O).
O Diálogo
JB: Nunca deixei de atingir o diálogo intenso. O resto, as acções, as obras, a “arte” é secundário. Pouco me interessa a arte senão na medida em que ela propicia o diálogo com o homem. Esse diálogo sempre o consegui... Algumas vezes tive que ouvir insultos, sarcasmos, mas isso também foi sem importância.
ES: Apesar da roupagem “política” da tua propaganda, julgo que ela é sobretudo moral porque se dirige a cada um dos teus interlocutores. No entanto o que pensas da teoria científica das relações de classe social tal como tem sido desenvolvida no pensamento moderno?
JB: Penso que é uma teoria muito importante, e decisiva, sem a qual não se pode entender a sociedade actual. Mas penso que o meu trabalho é outro, paralelo a esse mesmo. Neste meu domínio o que me preocupa é uma espécie de terapêutica social, activa e metodicamente empreendida. Dessa terapêutica faz parte uma informação inteira, cuja vocação é dar o mundo todo ao mundo: homens, animais, história, o espaço, as pedras, o tempo, as plantas... É aqui que intervém a arte, como um meio de comunicação. Que esta tarefa se transforme em política, pois bem, assim tem que ser. É o destino de tudo o que pretende a uma capacidade global. Dar o mundo ao mundo. É como dar a não-forma à forma e vice-versa. Nas minhas acções anteriores sempre me preocupei em mostrar que no fundo de tudo isto havia uma energia comum – e que nos devíamos lembrar desta energia comum que resume tudo. Eu e tu, por exemplo.
ES: Sim, falaste em eficácia...
JB: A eficácia é segundo a capacidade de cada um. Mas não creio que a eficácia aconteça seja no que for se não for acompanhada dessa confiança total. Que tem que ser restabelecida, é essa a terapêutica social.
ES: A arte surge assim como um meio. Consideras-te um artista?
JB: Sim e não.
(E Beuys inclina-se sobre o meu caderno e escreve:
ANTIARS + ARS = ARS
… a fórmula que resume não tão facilmente como se pode pensar o problema da anti-arte. Porque uma transformação semântica importante não é um eterno retorno dessorado. Que importa que as palavras fiquem se o mundo é outro. É esse outro que nos compete pressentir).
ES: Tu dizes que a revolução somos nós. Nós todos. Então os carrascos também entram na tua classificação. “Eles” também são a revolução...
(…)