[Excerto]
Republicado em Oralidade, futuro da Arte?, São Paulo, Escrituras, 2011.
Os ídolos caem do altar. Um a um.
O homem torna-se aproximativo, irremediavelmente finito. Mortal. Já o "exercício do infinito" nada imprime aos "blocos de conhecimento". Nenhum amor, nenhum assassinato mais verdadeiramente puros…Só nos resta o vazio. O "horror ao vácuo" da Idade Média. Só nos resta esse horror. O horror.
O Calhau "senta-se ao cavalete" e pinta o horror. É um pintor naturalista, verista, realista. Só que já não pinta aquele poético cantinho na ribeira, o açude, o pôr-do-sol, e a camponesa «pura e autêntica com o seu lenço de ramagens gritantes. Pinta o que vê e – como também advertia Tzara – o que vê é falso. Mas o que o poeta (o pintor, o cineasta, o romancista ou coisa assim mais ou menos designada) vê não pode ser falso. Por isso ele só vê o vazio.(Na mesa ao lado senta-se o Abel Manta. Como nós o amamos todos! Ele até ainda viu o Chiado!!!)
Assim juntei esta unanimidade preciosa enquanto dos meus olhos como das fontes barrocas corriam copiosos choros: pintores do vazio. Unânimes nisso, eles que são clamorosamente diversos e não só nas intenções: o Nery, o Nuno Siqueira, o Calhau. Juntos nem frases nem palavras letras talvez de clara e severa demonstração: …ao que tem se lhe dará e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. (Por isso é que eu lhes falo por parábolas: porque eles vendo não vêm…) Mas o vazio aqui é coragem. Ou pode ser. Para ti que sabes ler o fim em toda a violência ou até doce (ou erótica) crueldade. Por outras palavras, e agora falo com rigor científico: em necessidade. Parêntesis. (Não me sirvo do sinal ao leitor de o entender seria demasiado fácil). Refiro-me de novo ao Calhau. Porque é o mais novo, ou o mais puro. Como isto enfim soa a sinal: eu queria talvez dizer não mais o menos mas exactamente o contrário. O Calhau talvez não saiba que é um herói. Leitor apesar de tudo a minha responsabilidade é grande estou aqui como membro da AICA nem é preciso pôr os pontos nos colarinhos outrora engomados. Por isso te advirto: todos nós já sabemos essa história ionescamente patuscamente reaccionária da filologia a conduzir ao crime. Crime? Não me faças rir, já dizia o Moe. O importante neste ponto do rio-advertente por meta ah! ah! lá vai a palavra linguagem é saber que v. gr. herói e anti-herói querem dizer exactamente o mesmo. Também não querem dizer nada. Se no entanto se pensar na profunda gravidade-sonoridade das palavras: NADA-VAZIO-DEUS. E por aí fora. Perguntam-me: És ateu? E eu respondo: O raio que os parta! Portanto, e com todas as reservas, o Calhau é um herói. De resto nunca houve senão heróis assim, inconscientes mais ou menos. Ou julgavam que o Prometeu escrevia grandes livros da estética e moral ? Bem é um herói, mas, concessão à gramática, à habituática, à informática: herói de quê? Aí está uma pergunta que não atrapalha: HERÓI DA POBREZA. Bem sei, uma atitude pobre, para que seja atitude precisa da um mínimo de riqueza. (Verdade elementar como o pão dai-nos hoje o nosso pão quotidiano e ai está porque os meus olhos são barrocos como todas as fontes: há quem só tenha esse ideal o nosso (deles) pão quotidiano). Por isso atitude só a do António Sena, que vive em Londres. (Sempre me perguntei porque é que o António Sena vive em Londres mais aqueles milhões todos, mais a Susy, etc., vivem em Londres e eu não? Certamente o mais simples é pensar é uma necessidade. Eu tenho que estar aqui para compreender e dar sinal da necessidade do António Sena estar em Londres e fazer esta dilacerante arte pobre – em Londres, claro! (...) )
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