Tradução portuguesa publicada no Jornal de Letras e Artes, Maio de 1963.
Fustigados pelo frio e a chuva, é necessário coragem para ir, de noite, à Avenida de Saint Ouen, para os lados do "Marché aux Puces", às sessões de um típico cinema de bairro: o "ParisCine", que contém um milhar de lugares. Mas a verdade é que, faça o frio que fizer, é difícil encontrar um único lugar vago nas noites de terça-feira, utilizadas há mais de quinze anos pelas sessões do "Cineclube Action".
O sucesso permanente deste Cineclube é devido ao seu gosto pela descoberta. Os respectivos dirigentes estão sempre na expectativa de todas as novidades interessantes, vindas do Oriente ou do Ocidente, da Europa Ocidental ou de Terceiro Mundo. Com as quarenta sessões anuais, a sua acção apenas é excedida na revelação de obras originais, pelo "Museu do Cinema", onde Langlois tem formado tantos jovens cineastas; mas no entanto, eles têm sabido descobrir nos cinco continentes uma série de obras importantes e ignoradas, sempre na vanguarda do cinema.
E assim, mais uma vez, numa terça-feira do último Dezembro, fui ao "ParisCine" para ter a oportunidade de ver um documentário belga sobre os grandes acontecimentos de 1961, cujo interesse já noutro lugar foi assinalado por Marcel Martin. Em segunda parte, o "CineClube Action" apresentava um filme português, Dom Roberto, acerca do qual não tinha qualquer referência. Preocupado com longa viagem a fazer no dia seguinte, estava resolvido a esquivar-me desde as primeiras sequências ...
Visivelmente, o filme tinha sido realizado com pequenos meios. O seu ritmo era lento. Procurava as chaves do meu 2CV e preparava-me para partir quando, subitamente, uma espécie de encanto se produziu, e eu vi o Dom Roberto até ao fim, sem voltar a pensar no sono em atraso. A fadiga apenas voltou com a última imagem, mas suficientemente forte para apagar durante vinte e quatro horas qualquer impressão do filme. E depois... durante oito dias, senti a necessidade de falar da minha descoberta, de contar o argumento aos amigos, com grande quantidade de pormenores, e frequentemente com muita emoção. Quando uma obra nos obceca assim, é porque ela se reveste, para nós, de grande importância. Com efeito, o mesmo tempo passado, a minha memória não reteve de O Dia Mais Longo, por exempIo, senão algumas sequências de grande espectáculo; mas ela não esqueceu os humildes heróis de “Dom Roberto” e as suas tocantes aventuras.
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Nos bairros populares de Lisboa, o pobre João (Raul SoInado) ganha a vida, tostão a tostão, mostrando pelos cantos das ruas um reduzido espectáculo de guignol (ou seja de robertos, nome que tem em Portugal o homólogo da famosa marionnette de luva lionesa).
Os espectadores infantis têm pouco dinheiro e de marionnettes vê-se em breve expulso do quarto de hospedaria... por falta de pagamento. João sobraça o teatro-biombo, e os poucos bonecos e vai instalar-se ao ar livre. Mas na rua encontra a jovem Maria (Glicínia Quartin) que não é bonita nem elegante, uma rapariga da província: que procura na capital um pequeno emprego. João tem piedade de Maria e, como lhe restam alguns escudos no fundo da algibeira, leva-a para uma pequena pensão, destinada aos casais de passagem. Mas depois de pago o magro aluguer, deixa-a sozinha no quarto mobilado e vai dormir na sua improvisada instalação.
De manhã, ao procurá-la de novo, João verifica que Maria desapareceu, sem deixar endereço. Triste e decepcionado, encontra um cão perdido e protege-o... recomeça a mostrar o seu Teatro "Dom Roberto", e faz projectos de partida para as praias, com o Verão e as férias que se aproximam. Mas eis que, surpreendido, reencontra Maria, que ainda não arranjou trabalho. Apenas vagas promessas. Continua a dormir onde calha.... porque não há-de vir com ele para um grande prédio em ruínas, descoberta recente? Quartos grandes não faltam...
A rapariga não esconde o seu encanto pelo prédio maravilhoso; nunca tinha visto nada tão belo em toda a vida.... e que importam as telhas a cair, as paredes arruinadas?! João cede-lhe a cama de rede e vai dormir no chão escangalhado.
No dia seguinte as promessas concretizam-se e Maria lá encontrou o pequeno emprego. A gente de um pátio próximo começa, entretanto, a conhecer e a estimar o rapaz e a rapariga, e uma noite, ao entrarem em casa, eles deparam com uma surpresa: uma cama, preparada para eles, tomados por um "casal"...
... Mas não era assim, os dois inocentes não tinham tido essa ideia. E não é a cama que os aproxima, mas os dois pratos, postos em cima do leito para uma refeição comum, na falta de uma mesa. Ao "pôr a mesa", e através de um certo embaraço, acabam por compreender que são um "casal"…
Mas entretanto volta o mau tempo. E o Natal. João e Maria decoram o quarto para a noite festiva. São felizes. Mas, durante a noite, chove sobre a cama... e depois vêm os demolidores, e começam a deitar abaixo o "seu" tecto. é necessário partir...
Reúnem os pobres haveres, atravessam o pátio. Os respectivos habitantes dizem-lhes adeus, gentilmente, mas toda a sua atenção vai para um milagre: um automóvel, "fabricado" durante vários meses, e que se pôs, finalmente a andar... a dar meia dúzia de voltas no meio da alegria dos grandes e dos pequenos.
João e Maria partem pela estrada fora, sem saber se poderão reencontrar um tecto. Mas, ouvimos em conclusão, ainda não é o fim, o fim é só para os que desistem.
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O realizador de Dom Roberto, Ernesto de Sousa, estudou cinema em França, fundou no seu país activos cineclubes e uma excelente revista, a Imagem. Com o apoio de jovens cinéfilos e de amigos, pôde fundar uma "Cooperativa do Espectador", que ajudou a financiar o Dom Roberto. O filme não deve ter custado mais de uns mil contos... mas era necessário encontrá-los! Porque, este jovem realizador, não deve ter tido a sorte, como aconteceu a alguns da nossa nouvelle vague, de encontrar para o financiamento do seu primeiro filme (ainda que modestamente) um mecenas na própria família: o dinheiro da esposa, dos pais ou do sogro...
Mas não bastava a Ernesto de Sousa juntar o modesto capital, escudo a escudo. Esperavam-no outras dificuldades…. fazer aprovar o filme. São conhecidas as dificuldades dos primeiros neo-realistas italianos, culpados de mostrar a miséria de Roma ou de Nápoles. É fácil imaginar que as coisas não tenham sido fáceis para a construção de uma história cujos heróis são um vagabundo e uma desempregada. O filme pôde no entanto ser realizado, e viu-se assim desabrochar esta flor fresca e encantadora, no deserto…
Porque Portugal (testemunham-no as estatísticas da U.N.E.S.C.O. e os filmes apresentados nos festivais) é uma zona cinematográfica quase deserta. A frequência é uma das mais baixas da Europa: dois ou três bilhetes por ano e por habitante, no máximo. A produção limita-se com frequência a três ou quatro longas metragens nunca exportadas, mesmo que seja para o Brasil.
Em 1930, Leitão de Barros, vindo do documentário, realizou, segundo me dizem, um filme muito belo, Maria do Mar, ao qual sucederam duas honrosas réussites. Mas em seguida, vieram as encomendas oficiais e caiu na mediocridade. Restava como único realizador português de classe internacional (a meu conhecimento) Manoel de Oliveira, um independente e um individualista que, desde Douro, Faina Fluvial à Caça, pôde, durante trinta anos, realizar três ou quatro obras muito honrosas e de alta qualidade ...
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Eis agora com Ernesto de Sousa uma "nova vaga portuguesa" e um novo realizador de classe internacional...
Alguns, a propósito de Dom Roberto se espantarão que se realizem ainda em Lisboa filmes segundo a fórmula já antiga do Ladrões de Bicicletas. É não ter apreciado neste filme mais do que certas aparências. A obra deve muito pouco ao neo-realismo italiano, mas muito a Chaplin, a quem Ernesto de Sousa presta directamente homenagem com a última imagem verdadeira citação cinematográfica do final dos Tempos Modernos, quando Charlot parte pela estrada longa de mão dada com Paulette Godard.
Mas não se pense que o novo realizador português plagiou de alguma maneira a Chaplin. Fá-lo tão pouco quanto Jean Vigo ao pedir a Jean Dasté para "andar a Charlot", no seu Zero de Conduite; ou François Truffaut relativamente ao mesmo Vigo ao citá-lo nos seus Quatre Cents Coups cujo espírito se afasta tanto do Zero de Conduite. De Sousa, esse, aparenta-se estritamente a Chaplin pelo espírito, pelo seu calor humano calor humano, pela sua atenção voltada para os humildes, pelo seu gosto orientado para os ambientes mais quotidianos. O seu filme é nostálgico sem nunca ser amargo ou desesperado. As respectivas subtilezas e por vezes a profundidade, o realizador encontra-as nas coisas e nos objectos mais banais, nos sentimentos mais comuns, Não procura nunca utilizar um gag para criar um efeito, qualquer coisa de sensacional, mas apenas para dizer algo...
Verdadeiramente, eu gostei muito deste filme modesto, que evita a eloquência, mas que nos submete à sua confidência, com o seu murmúrio lento e fascinante, como uma melopeia que evoca, para lá das palavras, todo um povo, toda uma cultura, sem recorrer ao falso brilho folclórico, ao pitoresco, ao exotismo... De Sousa evita cuidadosamente os efeitos fáceis, mostra-se inimigo de todos os excessos. O seu tom é o de um perfeito classicismo, apto a saber vibrar o espírito do povo.
Os dois comediantes mostram-se também impregnados pelo espírito deste povo cativante. Raul SoInado formou-se (como os intérpretes do Toni de Jean Renoir) na sólida escola do teatro de variedades, e mantém-se constantemente emocionante na sua simplicidade. Glicínia Quartin, vinda da televisão, aparece inicialmente devastada pela miséria e como que assexuada. Depois, pouco a pouco revelam-se a sua feminilidade, o seu encanto, carácter e beleza.
Dom Roberto marcará o começo de uma nova vaga portuguesa? Não o poderia afirmar. Não basta uma obra de qualidade para que nasça ou renasça uma escola nacional. Mas Ernesto de Sousa não é o único jovem cineasta português, segundo sei, que tenha a inteligência, o gosto e a paixão pela arte do filme. Que lhes permitam exprimir-se, e amanhã Portugal tomará o lugar que merece na arena internacional, mas que até agora os seus filmes ainda não conquistaram... Pela, minha parte, estou convencido de que aqueles que hoje aclamam II Posto, um filme da nova vaga italiana, farão amanhã o sucesso do Dom Roberto. Mas ainda vai ser preciso encontrar uma sala... (não nos esqueçamos que Olmi, o realizador de II Posto, teve que esperar dois longos anos).
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Como os dirigentes do "CineClube Action", preferirei sempre o gosto pela descoberta ao conforto intelectual.
Em que posição cómoda não se coloca, todavia, muito crítico ou cinéfilo, ao limitar o seu horizonte a alguns países e a alguns realizadores consagrados, para, os admirar sem reservas, ou com a mesma facilidade os queimar como se se tratasse de escandalosos velhos ídolos?... Durante os anos em que estiveram na moda, certos realizadores como Fellini, Bergman, Antonioni, Losey ou Misogushi, recentemente descobertos ou desenterrados, nem quase era necessário ir ver os seus filmes, parar de falar deles com ares de entendido, em boa sociedade... Para professar uma admiração incondicional por tal ou até tal grande personalidade, basta ler dois ou três artigos, e fazer uma razoável provisão de epítetos como: "válido", "incomunicável", "brechtiano", "barroco", etc., etc... e em seguida repeti-lo com um ar entendido e um bocadinho pasmado. E assim, retomando os processos daquilo a que, numa expressão feliz, Louis Marcorelles classificou de "crítica pelo revólver", já nem era preciso ir ver O Eclipse, falar La Dolce Vita ou De l’autre côté du Miroir, o último de Bergman, para declarar com ar fatigado que se trata de grandes estopadas tão insípidas quanto inclassificáveis...
Recusamo-nos a esta espécie de conforto intelectual quando preferimos o gosto peIa descoberta; é certo que mil perigos ameaçam o explorador... sobretudo quando avança através dos terrenos assim amaldiçoados. Pode enganar-se, um tal aventureiro; mas sobretudo arrisca-se a pregar no deserto: com efeito, a quantos cinéfilos patenteados dos Campos Elíseos faremos nós acreditar que há um cineasta de valor em Portugal, no Ceilão, no Brasil, na China, no Paquistão, ou em qualquer outra terrae incognitae, até então em branco no seu atlas mental? Falai-lhe do Minelli, se quiserdes chamar a sua atenção e desencadear-lhe o júbilo. Porque, por enquanto, é evidente... que o autor de Gigi e Madame Bovary não produziu senão imortais obras-primas...
No que diz respeito a Dom Roberto, não pretenderei que se trata de um dos "cinquenta mais belos filmes da história do cinema" como um agente de publicidade ou um desses críticos "de revólver". Não. É, simplesmente, um acontecimento na história do cinema, que tenha vindo até nós um filme emocionante, sincero, verdadeiro, dum País demasiado tempo silencioso e ausente.