Colóquio Artes, n.º 14
Outubro de 1973
[Excerto]
Republicado em Oralidade, Futuro da Arte?, São Paulo, Escrituras, 2011.
Para lá dos seus aspectos administrativos e associativos, esta Assembleia da AICA teve um carácter peripatético. Não só nos seus imediatos aspectos geográficos, frequentes deslocações em autocarro ou de avião que nos levaram de Zagreb a Hlebine e Koprovnic: a Ljubljana, Belgrado e Dubrovnik; das margens do Danúbio ao Adriático; mas também a variedade das suas temáticas em que solicitava a nossa atenção para as mais diversas regiões daquilo a que poderemos chamar, grosso modo, as artes visuais do nosso tempo. (…)
Tudo isto tende – como em geral, nas reuniões deste tipo – a fazer de nós "turistas culturais", para me servir de uma expressão um pouco ácida de Gillo Dorfles. Mas na verdade, houve nestes dez dias, quase sempre um programa alternativo e uma série de possibilidades originais de investigação. Isso nos fez correr – a alguns de nós – fora de horas e fora das andanças mais comodamente programadas, para as discussões de design e contra-design para as casas de artistas pós objectivos, para as “horas de trabalho” das principais exposições desta Assembleia: a “T5” (construtivistas, computadores e conceptuais) em Zagreb, e “Documentos sobre as tendências pós-objectivas da arte jugoslava 1968 a 1973” em Belgrado. Por outro lado, a não ser em Zagreb, nunca mais houve confrontação entre os elementos mais vivos da realidade artística jugoslava e os intervenientes principais nas manifestações programadas. Os jovens – quer os do sector design, quer os do sector pós-objectual, prosseguiam o seu programa alternativo, e só apareciam à noite nas recepções oficiais, aqueles últimos com os seus blue-jeans e camisolas decotadas que tão bem se harmonizavam com os vestidos compridos, e de cerimónia de algumas senhoras, e o vestuário estrito e correcto dos “oficiais” e dos “designers” (….) Pelas suas características e contradições talvez a Jugoslávia se apresente como um dos países mais favoráveis ao estudo daquilo a que chamo uma vasta operação de rotura (…)
"A arte construtivista pertence ao passado. O seu âmbito corresponde ao que poderíamos chamar o período Paleocibernético..." Esta declaração do arquitecto brasileiro Waldemar Cordeiro tem um agudo significado no quadro das discussões que se programaram em Zagreb, sob a designação geral "T5" (Quinta manifestação de "Novas Tendências"). Com efeito, as "novas tendências" foram precisamente, desde 1961, o construtivismo, o cinetismo, e de um modo geral aquilo que classificamos de tendência tecnológica da arte moderna. A de este ano foi programada de maneira a permitir uma comparação entre o construtivismo, a arte pelo computador e (elemento novo, não ou anti-tecnológico e assaz mal definido) a chamada arte conceptual. Mas a crítica de Waldemar Cordeiro, iria mais longe: a) Manifestando-se polemicamente contra a tendência de utilização da "computer art" no sentido da fabricação tradicional de objectos artísticos em substituição do seu verdadeiro papel que deverá ser o fornecimento de algoritmos para pensar a cidade e o envolvimento humano, b) Propondo uma divisão clara entre artes de estrutura analógica e artes de estrutura digital, correspondentes aos dois sistemas em que se diferencia o conhecimento: o sistema analógico-físico e/ou o sistema matemático-lógico.
A estas observações do arquitecto brasileiro não se deu talvez suficiente relevo: a partir delas se poderá porventura fundamentar uma epistemologia do conhecimento por e para qualquer actividade estética (1).
Mas, por agora, as novas tendências confinam-se em geral numa situação de rotura e não de síntese. Daí que o diálogo seja extremamente difícil. Mas não impossível. Para o provar bastaria meditar o texto de François Morellet, publicado no âmbito do "match of ideas" proposto para as "T5". Texto generoso de um artista que sabe reconhecer no território que excede a sua própria investigação, a verdadeira mudança possível: "se os artistas se transformassem (como o tentou Filliou no Stedeljik Museum de Amsterdão) em alertadores, promotores da participação do grande público, o qual não sabe ainda que é artista ele próprio..."
Mas realmente o diálogo é difícil. E como seria de prever não se realizou neste encontro (onde tantos e tão generosos meios foram postos à disposição) senão marginalmente, aqui e ali, e como resultado de um esforço puramente sectorial. Além do que podemos apontar como limitações e dificuldades comuns a todas as reuniões deste tipo há neste caso que pôr em relevo duas características fundamentais: por um lado a extrema riqueza de opções estéticas e culturais jugoslavas; por outro, a inadequação da critica e do ensaísmo ditos "modernos" a uma situação realmente moderna.
Os debates e as teses propostas no programa principal foram, como é lógico, condicionados pelas personalidades que os orientaram – excepto talvez a discussão sobre a arte "naive", dirigida apenas como moderador pelo crítico jugoslavo Boris Keleman. Ausente Germano Celant que também tinha sido convidado, as outras discussões foram orientadas por personalidades que apresentam na sua obra um largo contencioso relativamente a qualquer situação de vanguarda: Abraham Moles, Giulio C. Argan e Gillo Dorfles. Destes, só o último tentaria abordar os problemas mais ardentes da vanguarda numa exposição brilhante e algo confusa. Diga-se de passagem que Abraham Moles, cujos estudos sobre o kitsch e a "computer art" constituem material precioso para qualquer consciência da modernidade, foi um excelente companheiro; e constituiu exemplo raro de como uma grande personalidade pode saber aceitar a rejeição das suas propostas sem animosidade.
(…)
Mas na altura em que o proferia já o programa alternativo absorvia as atenções mais jovens e combativas. Numa outra sala da mesma cidade (na Galeria dos Estudantes de Belgrado) discutia-se o problema do contra-design; e uma hora depois inaugurava-se a exposição da jovem artista conceptual Marina Abramovic. A estes acontecimentos a grande maioria dos participantes da 25ª Assembleia ficaria completamente alheia.
Ora...
...febrilmente, nessa noite ou noutras, até altas horas da madrugada, a longa viagem esboçava-se. O aparelho de projectar (modelo russo muito antigo, e preso com arames) do casal Nusa e Sreco, teimava em não organizar as imagens. A falha era na cruz de malta ou no mecanismo de arrasto! Nervosa, Nusa ia explicando ao pequeno grupo de críticos e operadores estéticos que nada daquilo era perfeito, "de resto, a arte conceptual não tem nada a ver com a perfeição"... o...o primeiro filme é sobre o A-PE-TAI-TE...", "como apetite é evidentemente uma das bases da comunicação, e o nosso trabalho, todo o nosso trabalho, é sobre a comunicação"... Mas as imagens, enfim, organizam-se... um prato, uma salsicha... um tempo infinito, olham-nos ou somos nós que os olhamos? Depois um rosto, um prato... a salsicha... e assim quase sem mudar, enquanto no magnetofone ao lado nos assaltam os sons distanciadores e a voz, neutra e íntima num inglês do outro mundo: a pe tai te...
a... pe... tai... te... Os filmes sucediam-se assim, um conceito, uma alegria, uma profunda ingenuidade.... o silêncio e o "olhar das coisas" a que se refere Nietzsche. Nós sorríamos no espanto de estarmos enfim juntos, porque o espanto precede... eu ia dizer a arte, a comunicação: que importa? a consciência, a ciência antiga e ainda muito jovem de estarmos realmente a viver as metáforas com que antes apenas nos embalavam. De cada vez, uma palavra (um conceito) arriscava destruir todos os cursos, toda a codificada linguagem entretecida ontem, outrora. Deste zero, podia surgir uma nova linguagem. E é disto que se trata, quando se trata da viagem para um novo ostinato rigor, uma "nova serenidade" no sentido nietzscheniano: "Oh! Quão repugnante, vulgar, sombrio, cinzento é o disfrute tal como o entendem os que disfrutam, os nossos intelectuais! Como é cómico o bulício de feira com que deixa violar-se, nos nossos dias, o homem culto da grande cidade, através da arte, do livro, da música e outras bebidas espirituais... Não! Se nós outros, os convalescentes, ainda necessitamos de arte, é de outra arte que se trata: uma arte irónica, evanescente, efémera, divinamente espontânea, divinamente concebida, que arderá como uma pura chama num céu vazio!". De nada valerão as actuais (pretéritas) noções, como valor estético e outros códigos tranquilizadores. "O que não é artístico hoje pode vir a sê-lo amanhã"... diz Gillo Dorfles. Esta presunção baseada nos cataclismos da semântica é ainda a esperança de que amanhã as verdades eternas (de ontem) subsistam. Esta esperança – kitsch nada tem a ver com a vanguarda – que é rotura e passagem efectivamente única ao depois. Para a vanguarda, como diriam Cage ou Kaprow, o passado é apenas encarado como material idóneo. Só assim nos livraremos de toda a entropia, reencontraremos o tempo único e o espaço da festa na liberdade evanescente mas total e totalmente responsável de cada gesto, e do seu silêncio (ético). Só assim (como se deduz de toda estética corresponderá uma total capacidade de opção, um máximo empenhamento moral. É exactamente o que já tinha formulado Kierkegaard: "a estética não é o mal, mas sim a indiferença; e eis porque entendo que à ética corresponde a capacidade de escolher (livremente)". Vivendo e reflectindo um universo dilacerado, fruindo de uma preciosa tolerância, é isto que investigam e procuram os jovens operadores estéticos jugoslavos, com uma coerência que excede certamente a imediata consciência. Porque eles tentam abrir o ("abismo do futuro", com sua ("aterradora simplicidade", para empregar ainda as palavras de Nietzsche.
- Dentro desta problemática devemos lembrar a extrema importância dos ordenadores numa futura civilização do video-tape. Citarei a este respeito o cineasta de vanguarda Dan Graham: "Sendo simultaneamente cinestésico e óptico, o vídeo parece muito próximo dos novos sistemas de ordenadores que são sistemas ópticos e não mecânicos Na minha opinião, trata-se de algo diferente de simplesmente substituir bibliotecas e ordenadores ultrapassados; haverá, graças ao vídeo, uma nova forma de intercomunicação que será muito mcluhanista e dará lugar a transformações tão radicais quanto as que se verificaram com a invenção do livro". A propósito deste assunto será interessante referir a excelente revista Bit International, editada em Zagreb, por um vasto corpo redactorial encabeçado por Bozo Bek. Foram oferecidos aos participantes da Assembleia da A.I.C.A. os números 7 (Dialogue with Machine) e 8/9 (Television today). Além do Manifesto de Zagreb sobre o papel dos computadores na sociedade futura, estes números contêm excelente colaboração entre outros de Vera Pintaric, Schaeffer, A. Moles, Dorfles, Umberto Eco, Alexanco, Mestrovic, etc.. Margolies, de New York, faz um útil relato das mais revolucionárias experiências utilizando como media a TV e o princípio do simultaneísmo. Um pouco à margem desta nota, mencionemos a escola de animação cinematográfica conhecida por Escola de Zagreb. Alguns filmes foram exibidos durante uma das sessões da Assembleia. O cinema de vanguarda também não foi esquecido por Dorfles, que trouxe alguns filmes de Itália.