Gilo Dorfles, alfabeta e (In)Finda (Hors-Série da revista Fenda)
1983
Não é por acaso que, no catálogo do pavilhão português na Bienal de Veneza, a primeira imagem com a qual deparamos é a de Fernando Pessoa (ou tratar-se-á de Alberto Caeiro, de Álvaro de Campos, de Ricardo Reis, de António Mora, de alguma das muitas "encarnações" heteronómicas deste tão singular autor, que pode ser considerado como a expressão mais alta do Portugal moderno?).
Mas, a presença de Pessoa, como génio tutelar da exposição (tal como foi retratado por Almada Negreiros para o histórico café lisbonense "Irmãos Unidos"), onde se reuniam os poetas e os artistas de Orpheu), constitui também uma espécie de garantia da continuidade artística desta nação. E Ernesto de Sousa teve razão em escolher o mural de Negreiros como protótipo de uma sábia fusão de sinais gráficos e verbais presentes também no auto-retrato do pintor-poeta; porque esta mesma posição peculiar de Negreiros diz-nos algo mais: que o intercâmbio entre escrita e pintura, entre palavra e letra, entre elemento literário e plástico foi e é particularmente vivo na nação lusitana.
Sabemos hoje que os exemplos de poesia concreta, de poesia visual, de arte conceptual em geral, se multiplicaram na Europa e no mundo. Mas Portugal tinha "descoberto" este género particular já muito antes dos outros países (bastaria recordar os nomes dos artistas aqui presentes tais como: Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, António Sena, João Vieira, Lopes da Silva, Maria João Serrão e daquela outra poetisa visual, mas também e sobretudo poetisa tout-court, de renome europeu, que é Salette Tavares, infelizmente não representada aqui).
Esta curiosa atenção para os sinais da escrita que se transformam em sinais pictóricos e também para o valor ao mesmo tempo sonoro-musical de cada fonema e o seu significado semântico (pensemos tão somente na presença aqui de dois músicos tais como Maria João Serrão e José Lopes da Silva que desenvolveram de forma exemplar o problema da relação entre letra e som), pode ser considerada como a dominante deste pavilhão que – na sua limitação – goza, no entanto, de intensa vida em relação a muitos outros pavilhões venezianos, mais áulicos mas espacialmente bem menos interessantes (graças a Alvar Aalto, a quem se deve o projecto).
Veja-se, então, a obra decididamente imponente de Ana Hatherly que engrandeceu para proporções gigantescas a habitual dimensão gráfica de uma poesia visual ampliando-a para uma área de grandes dimensões, onde as diminutas caligrafias da sua execução adquirem uma força e uma dinâmica excepcional. Neste caso a escrita é considerada como "escrituração" mas também como "escravatura da escrita": como "escravatura por parte da escrita", o que nos leva até à dimensão derridiana de uma écriture como différence (ou diferença): uma escrita que é um adiamento e um diferimento da nossa maneira de estar no mundo.
E veja-se – numa acepção totalmente diferente – o uso que é feito do elemento "letra alfabética" (neste caso melhor que fonema) por um artista tal como João Vieira, o qual utilizou amplas orlas de poliuretano na construção de letras-gigantes que formam quási um "basso-contínuo" às outras obras do pavilhão. Entre as quais não posso deixar de mencionar o já referido mural de Negreiros, o painel de António Sena, os painéis serigráficos e o poste de sinalização de Melo e Castro – este último bem conhecido como sendo um dos mais afincados poetas visuais europeus.
Chegados a este ponto, dever-se-ia impor uma análise mais clara de cada obra e de cada artista; mas outros o poderão fazer muito melhor e com mais competência do que eu. A mim interessa-me antes sublinhar um facto: como das poucas obras expostas, e desta escolha de artistas certamente incompleta, pode já resultar a convicção de uma característica comum ao espírito do povo – ao «"Volkgeist" – de Portugal. Não a frequente veia dos Espanhóis, um tanto empolada e sensual; nem a refinada quanto decadente qualidade decorativa dos franceses (muitas vezes caindo francamente no kitsch), mas antes (e é uma característica diferencial desta nação neolatina) uma capacidade mais recatada e interiorizada para agarrar o lado profundo e escondido das coisas, tirando daí partido – tanto na escrita como na pintura – a fim de tornar mais activa uma mensagem muito submissa mas muito pessoal relativamente ao resto da Europa e do mundo.
(…)
O que significa também que o período de florescência da "escrita" poético-pictórica – que noutros países teve vida efémera, e que foi uma moda mais do que outra coisa – aqui deva ser entendida como algo de mais duradouro e mais conotado com a mentalidade do país. Uma expressão pictórica ou gráfica que continua a ser essencialmente simbólica. (Como simbólicas de longínquas terras de marinheiros eram as cordas, as amarras, as âncoras, que o estilo manuelino utilizava na sua turgida florescência marmórea). Este simbolismo do elemento pictórico-gráfico está presente um pouco em toda a produção de Portugal antigo e moderno. E é talvez isto que permite que o país esteja presente e ao mesmo tempo ausente, explicitamente ou de forma velada, no grande contexto europeu, e – como tão dramaticamente afirma Ernesto de Sousa na sua apresentação da exposição – "é preciso re-inventar as palavras e reconquistar uma pátria universal".