Imagem, n.º 2, 2ª série
Fevereiro de 1954
[Excerto]
É realista como o diabo!”– diz o livreiro com intenção no canto dos olhos ao enaltecer as qualidades dum romance em segunda mão, e cujo título tem todas as probabilidades de ser qualquer coisa como: “Amores proibidos “Sejamos realistas !”– repete o amigo velho ao amigo novo, sem nenhuma experiência da vida.
“Realmente ...”– dizemos nós todos os dias quando queremos iludir uma questão.
Em tudo isto. como se comporta. em que interfere a realidade, propriamente dita?
ECLETISMO E PAIXÃO
É possível discutir com recurso exclusivo e definições e conceitos imediatos, embora provisórios, ou temos fatalmente que tomar como referência ideias e categorias pré-definidas?
O mal pode residir em que o método histórico em geral, ou as afirmações de tal Autor em particular, seja tomado não como um ponto de partida vivificador da crítica, que não exclui do primeiro plano a espontaneidade de apreciação; mas como um colete de forças, donde resultará uma esquematização das intenções e das obras, Tais definições, como neo-realismo, servem com frequência, mais para limitar do que para alargar os horizontes ...
É evidente que quando comparamos com um critério normativo, obras de arte e "personagens-tipo” pertencentes, quer a estádios diversos da consciência humana, quer a diferentes sociedades, estamos claramente a cair na esquematização, O contrário disso não é necessariamente o ecletismo ... a compreensão é compatível com a paixão e até com um certo fanatismo, O importante é que tal fanatismo seja. conforme a frase célebre de Baudelaire: aquele que abre mais horizontes.
É necessário também falar de necessidade quando consideramos uma obra de arte, e sobretudo um filme – resultado de tantos factores contraditórios e limitativos. Isso corresponde em parte ao que limita o criador, no campo da sua consciência talvez, mas sobretudo (…) no quadro da realidade económica, social e política do Mundo de hoje... Tais limitações levam com frequência o criador a exprimir o que é directamente inexprimível, a fazer arte de contrabando, a fazer o elogio da loucura contra a loucura: a realizar um filme aparentemente pessimista para exaltar o homem!
UM EXEMPLO...
Tomemos como exemplo um ou dois filmes do mais discutido dos autores-cineastas contemporâneos: De Sica.
Poderíamos igualmente citar um Chaplin (Luzes da Ribalta ou Mr. Verdoux, precisamente). Ou Ladrões de Bicicletas, por exemplo, não é um filme apenas realista; não é uma tranche de vie, um corte cegamente objectivo e neutro operado na realidade quotidiana.
Não é uma obra exclusivamente naturalista. É uma obra de arte composta do princípio ao fim, onde todavia a composição é imperceptível à primeira vista. (Poderia estabelecer-se um paralelo com a pintura profundamente composta, e todavia naturalista dum Brueghel, v. g.). Até aonde poderíamos ir se, para a sua compreensão, utilizássemos apenas o critério rectilíneo das definições e dos conceitos pré-estabelecidos? Cada uma destas obras profundamente impregnadas do seu tempo (e que todavia procuram superá-lo) tem uma dramática e um vocabulário próprios. É necessário, ou muita simplicidade de coração, ou muita sabedoria, para lê-las correta e profundamente.
Vittorio De Sica não é um realizador indiferente. Os seus filmes, depois de Sciuscià, revelam uma tal unidade de pensamento que não hesitamos em considerá-lo um autor, se bem que outros possam colaborar profundamente na obra coletiva que é o cinema, como o foram as Catedrais Góticas ou as pinturas Pré-Históricas. Sciuscià, Ladrões de Bicicletas, Milagre de Milão, Umberto D, trazem em si o peso dos problemas e das realidades mais profundas do nosso tempo; fossem estes filmes apenas pessimistas como alguns pretendem (até no voo das vassouras de Milagre de Milão houve quem se lembrasse de ver "um claro símbolo da morte"...), eles teriam já o mérito de nos arrancar ao círculo empobrecedor dos nossos hábitos, das nossas relações e conhecimentos mais ou menos reduzidos. Quanto a isso, nenhuma resistência é eficaz… Por essa razão estes filmes impressionantes, que apaixonam as pessoas simples, e sem mancha, são também com frequência a presa das más vontades, e sobretudo das interpretações tortuosas.
É precisamente porque... "Bom Dia" nem sempre quer dizer "Bom Dia", numa sociedade doente, onde até as palavras adoecem... até as coisas simples e evidentes precisam ele ser defendidas: e como já disse um poeta, é necessário, por vezes, "descobrir o sol ao meio-dia"– é por isso que não basta aplicar correctamente os mais claros conceitos, que excluam toda a contradição. É necessário por vezes não seguir em linha recta, para que dia queira dizer dia. e paz queira dizer paz:
assim a obra de Vittorio De Sica, tão clara de humanidade como a de um Chaplin (para não falar senão desta novíssima forma de expressão que é o cinema), precisa de ser defendida, esclarecida na sua simplicidade, compreendida naquilo que ela compreende fundamentalmente, a força e o enriquecimento do Homem quando se encontra com o Outro Homem. Isso é mais importante que tudo o que se disser sobre género, escolas, definições e mais definições.
(…)
Em o Ladrão de Bicicletas a vida (humana) continua, e o Homem é exaltado, mesmo através duma derrota. provisória. A solidariedade manifestada do filho e do pai, a volta à família e à luta quotidiana (depois daquele Domingo onde todos os desenganos e humilhações não conseguem destruir o Herói), são a continuação da luta por uma vida humana possível. Tal como a estrada de Charlot é a volta à vida, como o voo das vassouras em o Milagre de Milão é o caminho para o futuro. Como ainda. por ínfimo que pareça, o desejo de provar pela primeira vez o sabor do rum, na hora da execução de Mr. Verdoux, constitui uma última afirmação da alegria de viver.
(…)
Totó, a Pomba, a Fada, são Mitos?
Eis o que não pode esclarecer o sentido desta legenda. Tal como para a Tragédia, e para que as palavras adoeçam, o conceito de Mito tem sido devidamente virado do avesso. Ora os Mitos foram criações colectivas espontâneas. Para o homem de então, eles exprimiam a realidade: da luta do Bem contra O Mal; da Lei contra o Caos; e... da libertação do Homem.
Os personagens de Milagre de Milão não são mitos porque todos nós sabemos que, se exprimem a realidade, o fazem apenas indirectamente – como é próprio das legendas. Mas também não são meros símbolos. Há aqui. uma criação colectiva. É assim que, alegoria, legenda, alusão ou símbolo para a grande maioria das pessoas simples a mensagem do filme dispensa qualquer comentário. Nenhuma dúvida sobre o significado da Fada. a Pomba (a Esperança!) não é uma dádiva do céu; os anjos perseguem a Fada. tal como os Deuses perseguiam Prometeu. amigo dos Homens. O Bem e o Mal. o valor da Solidariedade são ditos no filme, mas forjados no coração dos homens. É por não terem o coração aberto e tranquilo que alguns não compreendem. De resto, foi sempre essa a condição das grandes alegorias: o não serem compreendidas por quem não pertence ao grupo das pessoas simples. Se não fosse assim, a família real espanhola tinha compreendido e Goya jamais teria desenhado os Caprichos; Miguel Ângelo teria ido impedido de pintar o teto da Capela Sistina; e talvez Charlot nunca tivesse existido.
Também O Milagre de Milão é um filme que nos situa bem no nosso tempo, no nosso mundo, que não é o melhor dos mundos... Os homens-sandwich, os velhos comendo avidamente uma galinha, e o silêncio fúnebre... existem. Mas todo o pesadelo, todo o insólito, mais ou menos provisório, terão a sua resposta. De Sica não esconde as dificuldades. Porém. o caminho em frente fica apontado: "Um país onde Bom Dia queira dizer verdadeiramente Bom Dia".
NADA É MAIS PRODIGIOSO DO QUE O HOMEM
E quando um tal caminho não tivesse sido apontado. e se tivesse apenas ficado na afirmação da dignidade humana. já não seria possível falar em forma cíclica” ou em "epílogo idêntico ao prólogo".... Tampouco em pessimismo. Porque a dignidade de um homem que se fez a si próprio, que não é já o homem natural, mas um homem evoluído e em evolução – eis o princípio, a linha mestra da esperança. É só depois de termos entrado assim no mais significativo do conteúdo de um filme, como de uma obra de arte em geral. que é possível situá-lo: no Tempo, e respectivas condições sociais e económicas; nas diferentes correntes de opinião e suas definições; e sobretudo, em função das restrições que se impuseram à sua eclosão. E assim limita-lo, sem o diminuir.
"Este filme é realista; é neo-realista...". É uma tragédia! Uma pura tragédia clássica!. Nele os personagens são Mitos. Charlot é um Mito. Totó e a Pomba são Mitos...". É "metafísico".... Talvez, talvez ... mas dizei-me em primeiro lugar se ele exalta ou diminui o Homem?