Imagem: Revista de Divulgação Cinematográfica, n.º 8
Setembro de 1954
Partindo de uma observação um pouco simplista do cinema, poderíamos dizer que este é sempre uma história, ou um acontecimento contado em imagens (inclusivé imagens sonoras). Mas, sem falar no teatro, no ballet, na ópera, na pantomima, que também nos contam os acontecimentos em imagens, restringindo-nos apenas às artes que se servem de um meio indirecto para representar e contar, verificamos facilmente que há muito se contam histórias pela imagem: num capitel românico, numa iluminura, nas gravuras populares, nos frescos, nas séries de quadros ou dentro do próprio quadro, com frequência os artistas plásticos nos ofereceram a sucessão de acontecimentos de uma narrativa. Mas o cinema oferece também as diversas fases dos movimentos efectuados pelos objectos ou as personagens de um acontecimento, uma acção. Também se encontram precursores plásticos: os pintores egípcios, por exemplo, ou recuando mais, o pintor pré-histórico que ao desenhar um bisonte nas cavernas de Altamira, representou sobrepostas posições sucessivas do respectivo movimento. (O que mais tarde os pintores futuristas iriam fazer mais conscientemente).
Mas o cinema tem outras afinidades com as artes plásticas, e pode mesmo dizer-se que alguns dos seus elementos constitutivos (falamos "em média", e não em condição, sem a qual não houvesse cinema), foram inventados muitos séculos antes da invenção, propriamente dita, do cinema. Assim, reparemos em primeiro lugar que cinema supõe o enquadramento de uma parte da realidade representada (já o plano em profundidade e o cinemascópio, oferecem aspectos novos do problema). O enquadramento distingue-se daquilo que, vulgarmente, se entende por composição, em pintura. Segundo esta, um certo equilíbrio se deve estabelecer dentro do quadro, onde a cada elemento deve corresponder um outro como os pesos numa balança. Ora o cinema opera um corte no real, o espectador cinematográfico é constantemente solicitado por um mundo de coisas fora do enquadramento (off, como dizem os técnicos de som), e o que nos é apresentado através de essa janela especial que é o écran, só encontra o seu equilíbrio no total do universo (já se lhe chamou "universo fílmico") não representado. Tal como no universo real, trata-se de um universo a três dimensões (com ou sem 3-D...): efectivamente, repare-se que os movimentos no cinema se verificam não só transversalmente como em profundidade. Em cinema, as pessoas e as coisas "saem e entram em campo" (segundo o expressivo calão dos técnicos), em todas as direcções. Pois acontece que alguns pintores foram extraordinariamente "cinematográficos" recorrendo a uma composição que se aproxima mais do enquadramento do que da composição clássica, mais frequentemente pictural, onde todos os elementos se equilibram dentro do quadro, onde (influência da estética teatral) os movimentos se fazem exclusivamente da esquerda para a direita e vice-versa. É interessante comparar um quadro de Rafael, v. g., com o que se passa dentro de uma peça de teatro. Efectivamente em teatro, os movimentos em profundidade são poucos intensos para o espectador que esteja, pelo menos a meio da sala; por outro lado, os actores olham-se e falam-se, de preferência, de modo a ficarem de perfil ou de frente para o público. Vamos encontrar todos estes "princípios" num quadro de Rafael. Uma outra observação interessante é a que diz respeito à colocação da linha do horizonte. No teatro esta encontra-se à altura da estatura humana. No cinema isso só acontece como caso particular, simultaneamente com os planos em plongé e contra-plongé. Em Rafael, para citar apenas o exemplo deste pintor típico e significativo, também sob este aspecto acontece como no teatro. Porém em Mantegna já vemos personagens a saírem do enquadramento, e no célebre Cristo Morto do Museu de Brera (Milão), o corpo estendido de Cristo é ousadamente colocado no sentido longitudinal, enquanto duas figuras chorosas mal acabam de "entrar em campo" à esquerda. Mas é Tintoretto, que sob muitos aspectos anuncia os tempos modernos, quem definitivamente conquista para a pintura o espaço cinematográfico. "Um monstro autêntico" – é como Elie Faure classifica este pintor–, e... "presciente", "...dispondo apenas de meios imóveis, esboça, trezentos anos antes do cinema, a sinfonia visível que todos esperamos deste". Esse espaço, aliado a outros elementos, vai encontrar quase a sua estrutura definitiva em Caravaggio, que influencia todo o século XVII. O naturalismo de Caravaggio está intimamente relacionado com a utilização do claro-escuro, com a definição rigorosa das fontes luminosas, a expressão do relevo no detalhe. E naturalmente, faz também parte desse naturalismo o corte do real, a utilização de todos os ângulos (no S. Paulo em Damas), na Crucifixação de S. Pedro a linha do horizonte está ao nível da linha de terra; em Deposição no Túmulo, abaixo). E este naturalismo plástico é uma das características do cinema ("realismo congénito" chama-lhe André Bazin, insistindo na sempiterna confusão entre realismo e naturalismo) – de um cinema "médio", insistimos. Outras afinidades, relacionadas com a própria análise do movimento em cada instante, surgiriam com o impressionismo.