Bibliografia

O Seu a Seu Tempo (1)

Opção, n.º 110
1 de Junho de 1978

Ó pintores como vos amo (ponto de exclamação). Esta crónica poderia começar assim... E não me referiria, note‑se bem a Giotto, Courbet ou Cézanne; ou mesmo a Duchamp (também foi pintor sabem e dos grandes), Vostell (também é) ou Ângelo de Sousa (é). Era um amor referido às figurações fortemente delineados do Nikias, às bonitas e até belas pinturas do Baptista que primeiro foram de trapos, aos "reis" do Costa Ribeiro, às vagas "e metafísicas" paisagens do Hogan, aos perturbantes quadros de Paula Rêgo (que maravilhosos textos de Salette), e até a certos "gestos" picturais do Eurico, gestos musicais e ainda pintura do Jorge Pinheiro, (ulisses il percorso è Ia fuga, caro Pernes), enfim e ainda por exemplo, à luz desnorteada e desnorteante do Noronha da Costa (que não pinta só pintura)... Mas limitar‑me‑ei pela contrária: que não tenho nada, nadinha mesmo contra a pintura‑pintura. Isto embora certos clarins da guerra, certo rufar, certa alegria (viver é cada vez, mais...) possam levar alguns leitores de boa fé, e até da minha fé, a pensar o contrário. Eu só digo: demos o tempo a seu tempo. Aliás certas investigações mesmo actuais no campo da pintura‑pintura são de séria oportunidade e têm que ser entendidas em profundidade (não é por acaso que eu citei o Ângelo de Sousa, lá ao cimo desta coluna de texto; ainda cá dentro das fronteiras poderia citar o Pires Vieira, a Graça Pereira Coutinho, uma parte das "obras" do Palolo, riscos do  António Sena... outros). Aquela confusão é o preço que se paga quando se vai para a guerra, nem há tempo para limpar devidamente as palavras, cumprimentar como deve ser à esquerda e à direita, ter cuidado e não ferir as susceptibilidades pessoais, profissionais de classe e quase sempre de direito.

Vai‑se para a guerra... e a vantagem de atacar com força é descobrir que há reinos mais amigos do que julgávamos, Ali! é assim? Então façamos uma pausa para limpar algumas palavras, diminuir a confusão, deixar que assente o fumo das últimas granadas... ou petardos.


Qual é a minha guerra?

(porque evidentemente é de guerra que se trata – então havíamos de ficar no "casarão" enquanto a cidade está ardendo... com os pés no quente e a alma a escorrer em liquidação?) Comecemos também aqui pela negativa: a minha guerra não é a vanguarda. Pois que disparate: a vanguarda faz parte das tropas, como as patrulhas e as sentinelas e até... a retaguarda. É muito importante a retaguarda, a escola, o quadro (como poderia haver um exército sem quadros?), a caserna, o acampamento, as ordens e as suas palavras, o museu, a galeria e a paz final. Os momentos em que se não luta como este, bebe-se o café da manhã, ouvem-se perto-longe as sentinelas, e por entre os pinheiros no azul por enquanto tudo sereno, a paz. Isso sim ajuda a encontrar um sentido para a táctica, para a estratégia, os homens divididos, os amigos nem se sabe onde estão, e este corpo a corpo o ser e o cheiro (em francês é muito mais fino: ça où sent Ia merde ça sant l'être mas já agora não deixem de ler a belíssima tradução artaudiana da Luiza Neto Jorge e do Manuel João Gomes, & etc)... Um sentido para a guerra. Pois, e já agora que estamos com o Artaud (estamos quási sempre) vem lá quási tudo. Pergunta o Artaud: "E a que se deve tal abjecção de sujidade? (a guerra, a mérdia traduziria o O'Neill, a Fiama, já não lembro bem). "Ao facto de o homem ainda não estar formado, / ou de o homem ter uma vaga ideia do que seja o mundo / e de a querer conservar eternamente?" Artaud responde: "deve‑se ao facto de o homem / ter um belo dia / detido / a ideia do mundo."

Ora, aí está a minha guerra. Não há um Juízo de Deus, nem um Belo Ideal, nem sequer o Amor do Próximo que justifiquem esta sujidade. Há um "ínfimo dentro", uma ideia do mundo, batalhas que se perdem porque esta guerra não pode senão ser ganha. Pelo meu corpo, na minha putrefacta carne. Agora e aqui.

Às vezes a gente até põe uma palavra entre aspas, escreve-se por exemplo, "nova" fotografia ou coisas assim. Outras já nem vale a pena, jogam‑se certas palavras, o moderno, o polémico, a vanguarda; ou apoiamo‑nos nos advérbios, o absolutamente outro, o absolutamente moderno. Meus amigos, meus inimigos leiam nas entrelinhas ou nas entreletras, nas aspas que não estão lá e até nas gralhas possíveis: as pessoas só aprendem aquilo que já sabem, parece que dizia mais ou menos o Platão.

  1. Título do livro de Luiza Neto Jorge, de 1966.