Seara Nova
22 de Junho de 1946
O PINTOR, como homem e como artista, resulta do meio. A sua obra deve ser o produto imediato da necessidade que ele tem de pintar. Quer dizer que em determinado momento histórico, o homem que é o artista (pintor no nosso caso), se situa na sociedade em que vive, nitidamente; não é um ser especial, aparte, depende integralmente das relações que ele, a sua família, a sua classe, o seu país, mantêm com as outras pessoas, famílias, classes e países que, com os primeiros, se interpenetram. Os estádios e perturbações, económicas, sociais, políticas, etc., que solicitam o seu país, a sua classe, condicionam a sua maneira de ser, o seu modo de encarar os problemas. Nada é imóvel: a sua moral, por exemplo, está em íntima relação com a fase evolutiva que atravessa a sociedade a que pertence. As suas atitudes e ideias, estéticas, filosóficas, etc., também. Seria todavia irreflexão supor que estas relações se processam em linha recta, que há paralelismo entre as várias partes.
Suponhamos, por exemplo, uma sociedade que se atrasa, em relação a uma ou várias com quem esteja em contacto, no nível económico, social, político, etc. (tudo aspectos de fenómenos essencialmente os mesmos). É evidente que as atitudes e ideias, morais, estéticas, filosóficas, etc., do pintor (o mesmo se diria do artista em geral) pertencente à sociedade em atraso, deixam de estar em relação imediata com o ambiente nacional (com os problemas económicos, sociais, etc., próprios), se ele quiser manter-se em contacto com a vanguarda artística das nações mais adiantadas porque começará a sofrer influências cada vez mais fortes, de ambientes estranhos, para os quais aqueles problemas são necessariamente diferentes. Por outras palavras, a obra do pintor deixa de ser um produto imediato da necessidade que ele tem de pintar. Ora, se era essa necessidade que o faria pintar de certa maneira, o quanto ela é realmente a razão da sua obra, é que determina a qualidade. Essa certa maneira classifica a obra do ponto de vista técnico-estético; a qualidade é o valor local e universal dela. A primeira explica-nos por que o pintor preferiu o claro-escuro ou o colorismo, a mancha ou o desenho, o volume ou a combinação linear de planos, por que parte dum conhecimento relativamente prévio das leis da pintura ou chega a elas empiricamente, porque é a sua obra uma construção intelectual ou essencialmente baseada nas sensações ; explica-nos ainda a preferência por certos temas, a tendência para a pintura abstracta ou o contacto mais íntimo com a realidade, independentemente dos meios de expressão usados; a qualidade, distância maior ou menor entre a necessidade de pintar e a própria pintura, é o expoente do seu interesse local e universal.
Resumindo: para que seja alta a qualidade da sua obra (para que, mesmo quando de interesse exclusivamente local, seja de valor universal), o pintor tem que ser sincero. É claro que isso não é, finalmente, um acto de vontade e, assim, a curva das sujeições ao momento histórico completa-se.
Entretanto, será bom adiantar alguma coisa sobre o que se refere à personalidade e à influência que ela pode ter e, principalmente, até que ponto o grau de consciência destas leis históricas pode influir na qualidade. A este respeito pode argumentar-se, em primeiro lugar, que o homem tem um grau de liberdade em tal sistema de coordenadas: as razões biológicas da sua maneira de ser... Porém, tal grau de liberdade não é mais que pura ilusão, porque por muito variado que o homem possa ser, biologicamente, nunca poderá sair fora de um extenso mas limitado domínio que a sociedade em tal momento lhe impõe: as suas qualidades ficarão subordinadas às possibilidades que determinado meio, em determinado momento, lhe oferece, e lhe limita o domínio dos actos, tendências, ideias, etc. As suas antecipações, causa aparente, por vezes, de novos géneros, escolas, correntes artísticas, são de facto o ponto de passagem necessário de uma transformação necessária. Quanto ao grau de consciência das próprias leis históricas, é evidente que, tanto quanto o resto, depende das mesmíssimas condições e assim alinhará ao lado dos outros factores; é verdade porém que a certa altura a sua importância poderá ser excepcional e então a quantidade transformar-se-á em qualidade...
Se passarmos em revista rápida as fases da nossa pintura, creio que colheremos confirmação do que ficou dito. Ao contrário do que muita gente ainda julga, a pintura portuguesa da segunda metade do século XV e a primeira do século XVI não foi simples "eco de correntes artísticas nascidas e criadas lá fora"... porque pode haver influência e até adopção de processos e estilos sem que haja submissão. Nuno Gonçalves é um caso absolutamente inédito na sua época – outros se lhe podem juntar; e, todavia, foi de facto um curto momento de independência. Ora, não é por acaso que tal florescimento da pintura portuguesa é contemporâneo de acontecimentos nacionais de importância decisiva universal: a conquista de novos mercados está nas premissas do desenvolvimento posterior da sociedade europeia. Nessa altura, em que os acontecimentos nacionais são acontecimentos de importância universal – compreende-se que, pelo menos em certos sectores da arte (pintura), as obras fossem o produto imediato da necessidade que o artista tem em sê-lo. Entretanto, os problemas nacionais passaram a segundo plano, ou talvez ainda para mais longe, como factores decisivos na evolução económico-social; e, até hoje, o valor universal da nossa arte diminuiu e desapareceu. O que representa para a história da arte europeia e da humanidade, em geral, a nossa pintura dos séculos XVII, XVIII e XIX? E, podemos aventurar já, a destes primeiros anos do século XX? A nossa arte passou de facto a ser eco, e pouco mais. Para não ir buscar exemplos senão à pintura, creio serem bem característicos os casos de Columbano, Pousão e os chamados artistas modernos portugueses, desde Sousa Cardoso, Almada, Domingues Alvarez, até António Dacosta, por exemplo. O que significa de facto um Columbano ter atingido a qualidade excepcional de Concerto de Amadores e pintar tão inglórios quadros como S. António? Pousão, ter chegado a ponto de aflorar alguns dos problemas técnicos nascentes da sua época, ao mesmo algumas das telas de maior vulto a obras puramente académicas, no que isso significa mero respeito pelo já feito? Considero, sem sombra de dúvida, Columbano e Pousão pintores de um interesse extraordinário: mas por que não tomaram eles decididamente uma atitude universal? porquê, possuindo as necessárias possibilidades técnicas e o mais a que chamamos, por comodidade, talento, porquê não se situam entre pioneiros numa época de pioneiros? Porque são solicitados pelo meio, porque em ambos, esse meio, mesmo quando trabalham no estrangeiro, é o dos homens e das coisas em que foram criados – ora, os problemas económicos, sociais, desse meio, são de diminuto interesse universal, o artista não sente nos conflitos que o solicitam a força suficiente (a necessidade), e assim vai aprender em ambientes estrangeiros, não só fórmulas e processos, mas a própria essência da sua arte... e mesmo quando antecipa na sua obra fórmulas e processos, continuará no resto igual ao já feito ou voltará a ele. O caso de Pousão, com sua precocidade e meteórica existência, é muitíssimo significativo: tudo nele indicava um grande pintor cuja obra atingisse valor universal, mas vamos vê-lo, em França, não ao lado dos que nessa época representam o futuro, mas dos que representam o passado, e vamos vê-lo, depois, a pintar quadros como Esperando o sucesso, que apesar de certa maneira bem pessoal, é uma obra inteiramente académica e em nada supõe o mesmo artista de certas pequenas paisagens impressionistas ou quadros como Senhora vestida de preto – em que parece decididamente na vanguarda... Por isso parece-me que Pousão, enquanto pintor português, nunca seria um artista universal, como se não pode pretender que o tivesse sido Columbano.
O caso da plêiade de artistas portugueses dos primeiros anos do nosso século, é idêntico. A distância que aumenta entre os artistas europeus do século XIX em diante, e a sua classe, isto é, a sua realidade, e que vai desde a indignação de Cézanne e Manet por não serem admitidos no "Salon" oficial, até à confissão de Lotte: "a pintura não se vende, a pintura está salva",... não se deu cá ou não tomou as mesmas proporções. Por isso, talentosos artistas embora, os nossos pintores fingiram sobretudo, consciente ou inconscientemente, a sua arte, não no aspecto restritamente técnico, claro: Almada, Alvarez, António Pedro, Dacosta, etc., são cada um à sua maneira, excelentes "virtuosos". É por isso também que artistas que eu diria mais modestos, como Botelho, Dórdio Gomes, etc., apresentam uma obra mais coerente, porque mais consequência imediata da sua necessidade de pintar...
Parece-me todavia que hoje, numa altura em que o atraso se continua a verificar em quase todos os sectores, um factor inédito altera os dados do problema e consequentemente as relações entre estes e os factos (soluções) tal como os estamos estudando. Um número cada vez mais numeroso de jovens pintores (quase desconhecidos do público), embora ainda muito sujeitos a fórmulas e processou de fora (ou aparentemente), começa a conseguir, com felicidade vária, apresentar obra sua e diferente, em conjunto, muito diferente do que antes conhecíamos... Eu penso que, a dar-se o caso de esse movimento ser de facto uma realidade, ultrapassar, por tanto, simples fervura logo arrefecida pela tentação de tantos caminhos mais fáceis – que o tal factor inédito é o nível atingido por aquele grau de consciência das leis históricas que os condicionam.. como homens, como artistas. Tudo me leva a crer que sim, as suas obras (ainda: primeiras obras) as suas ideias, a sua atitude perante a dura vida que os cerca (tanto mais dura quanto mais consciência têm dela)... Parece pois não estar longe o dia em que, no que respeita aos pintores, a quantidade se transformará em qualidade.