Bibliografia

Moro na Travessa do Fala-Só

Leonel Moura, O GLOBO (suplemento semanal de cultura)
1980

[Excerto]


Esta entrevista não explica nada. Esta entrevista é uma conversa programada, com um objectivo condenado a ser defraudado. O que fica escrito, em letra de imprensa Times corpo 10, não corresponde ao original. Não contém os silêncios, as hesitações, os olhares. Quanto muito, os leitores ficam a saber que se passou “qualquer coisa”, que se avançou um passo na estrada de uma intimidade reconhecida. Só isso importa. Essa demonstração poderá levar outros a pensar no entendimento possível, no estabelecimento de falanstérios muito pessoais, restritos e produtivos.
De Ernesto de Sousa fica a saber-se que não fala como um político, não pensa como um professor e não vive como nenhum intelectual da sua geração.

Leonel Moura


“O difícil não é entrar na história, é sair dela.”

Leonel Moura – Na tua casa de banho há um letreiro que diz – Ars Erótica; aí na parede, por detrás de ti estão várias fotografias e desenhos eróticos; no teu trabalho referes frequentemente o erotismo. O que tens a ver com o sexo?

Ernesto de Sousa – Há uma relação estreita, óbvia, indiscutível, entre sexo e morte. Como sabes eu sou contra a morte. Até naquela exposição “A Tradição Como Aventura” tinha lá uma defesa contra a tanatocracia, contra a ditadura da morte.

L.M. – E onde é que tu vês a tanatocracia?

E.S. – No fascismo, no nazismo; querer impôr a nossa vontade aos outros; querer que os outros pensem como nós; na intercomunicabilidade, etc… Tanatocracia é a televisão portuguesa, com aquela… está tudo bem! Acontece não sei o quê, mas… isso é uma forma de aceitar a morte lenta.

L.M. – Cineasta com o Dom Roberto, divulgador de arte africana e de arte popular, teorizador do neo-realismo. Depois surges a defender as teses da vanguarda e ultimamente assumes-te como artista…

E.S. – Nunca me pensei senão como artista. Fazer um filme, uma pintura ou uma fotografia é a mesma coisa. O que me interessa é o acto da criação. Eu até te vou mostrar, tenho já aqui à mão, um dos meus primeiros desenhos. Quando eu fazia estes desenhos, muito antes do Dom Roberto já estava a fazer a Olympia (mostra cartazes da instalação Olympia), já estava na plena criatividade, não há distinção entre uma coisa e outra.

L.M.  – Mas tens um período em que te assumes mais como teórico, como crítico.

E.S.  – O acto de criação não é um acto isolado. A teoria vem daí. Da necessidade de estabelecer pontes. Não vejo contradição nenhuma entre a minha atitude actual e quando eu defendia o neo-realismo. Quando defendia o neo-realismo, por um lado defendia uma vanguarda, a questão da vanguarda não está agora a pôr-se… mas eu continuo a ser neo-realista, num certo sentido… por exemplo, os neo-expressionistas são neo-realistas, são figurativos.

L.M.  – Mas o neo-realismo não se define por ser figurativo.

E.S. – Pois não! É muitas coisas mais. Historicamente, há diferentes níveis semânticos, mas historicamente o neo-realismo tem limites; esses limites corresponderam ao tempo em que eu escrevi sobre o neo-realismo. Mas há uma acepção mais geral, que é realmente aquela que sempre adoptei e que se confunde hoje, para mim, com o pragmatismo. Com a eficiência daquilo que se faz, ir direito às coisas, “quando as palavras se tornam coisas” é o título de um ensaio de um grande filósofo inglês. E de toda a filosofia americana.
Não é por acaso que os primeiros mestres históricos do neo-realismo eram quase todos americanos, brasileiros ou mexicanos. A Europa é que tende para as grandes teorizações.

São necessárias; a mim interessam-me. Mas eu acho, para mim… eu cada vez escrevo textos mais curtos. Quando escrevo. Aquele em que estou agora a trabalhar para o José Barrias, confunde-se… nem sequer há aquela desculpa de dizer: ah, é poesia! Estou a escrevê-lo directamente em italiano porque é só feito de citações. Só! Cito-me a mim, próprio, cito o Portoghesi (que é o director da Bienal), cito o Calvesi, cito José Barrias, cito o Guia Turístico de Veneza e tudo isso vai ficar numa prosa única. Com o título exorcismo que foi também o título que dei ao texto relativo à Helena, há dois anos. Primeiro fiz uma instalação que se chamou A Palavra e a Letra, onde eu também mostrei um vídeo, depois o exorcismo número um, o da Helena, e agora o exorcismo do José Barrias.

L.M. – Vais exorcizando os artistas…

E.S. – Vou exorcizando, por um lado para que seja possível continuarmos e estarmos cada vez mais juntos, vencermos estas distâncias geográficas e outras… o José Barrias é estupendo nesse aspecto; eu cito-o a ele, toda a vida do José Barrias se reduz numa expressão “Elle est une certaine errance”. Ele anda há uma data de anos a ver navios… eu termino com essa frase...

L.M. – Relativamente ao meio artístico e crítico tu podes ser considerado um irreverente; uma pessoa que não tem relações institucionais muito fortes…

E.S. – Moro na Travessa do Fala-Só!

L.M. – Não tens poder de decisão, não tens tachos… Consegues manter-te do lado de fora de toda uma conjuntura institucional. Isso deve-se a uma decisão tua, assumida, ou és mais difícil de recuperar do que os outros?

E.S. – Eu sou difícil de recuperar por mim próprio. Devo dizer-te que não tenho nenhum objectivo especial de ser irrecuperável ou coisa do género. Pelo contrário, quero recuperar-me e integrar-me. De certo modo e com aqueles que em vez de elípticos, querem ser integrados. Quanto aos meus colegas a AICA quase todos são meus companheiros ou coisa parecida, tenho imensa simpatia por eles, como o  Porfírio, que é uma maravilha (…) Eu tenho a impressão, e muitas vezes penso nisso, que nós perdemos infância; não é o paraíso perdido que me preocupa de momento, é a infância perdida. Penso que é importante recuperar a infância.

L.M. – Nessa ordem de coisas não achas que a minha geração está a tornar-se um pouco séria demais?


E.S. – Concordo contigo absolutamente, está-se a tomar a sério. Como. Os (..) animais “d'homestiques”. escreve o Lacan, não se tomam a sério. Às vezes até precisam duma sapatada do dono, senão (…) que o dono não gosta deles(..)  Eu isso acho uma das coisas fundamentais.

L.M. – Onde estão, na arte portuguesa, aqueles que ainda não caíram nessa armadilha, da seriedade?

E.S. – O amigo, companheiro, talvez colaborador, aquele moço das Belas Artes que falou em transcomunicação nos debates do “Depois do Modernismo”…

L.M.  - O Pedro Proença.

Ernesto de Sousa – O Pedro Proença, por exemplo. Nas (…) que não estão contaminadas... por enquanto! E repara, o Pedro Proença é um tipo que está em todas, na exposição de Letras, vai à exposição dos Cómicos, vai à Diferença, vai às Belas Artes, vai a toda a parte, isso é para dar um exemplo. Eu um dia dirigi-me ao Rui Mário Gonçalves directamente e perguntei-lhe porque é que nunca fazia referência à Diferença. “Por uma questão de opção!” Há pessoas que se compartimentaram, voluntariamente, castraram-se, (…) São extremamente autistas, mas… Todos nós temos uma certo lado de autistas… mas…

L.M. – Tens tendência de te rodeares de uma série de artistas necessariamente mais jovens (…) protegidos. Até que ponto é que (…) significa que procuras continuidade para o teu pensamento, se é que se pode falar disso...

E.S. – A maior parte das pessoas, são assim precisamente como tu dizes, tentando (…) não morrer, de maneira a continuarem nos outros, nos discípulos. Efectivamente, a mim, o que me chateia não é morrer, é não saber o que é que acontece depois. Isso é que é importante, como o Buñuel nas memórias diz: eu queria era vir de dez em dez anos, comprar os jornais que estivessem no quiosque e voltar outra vez para a tumba , para saber o que é que vai acontecer. O que chateia é realmente isso, nem discípulos nem ninguém poderá suprir essa falha. Portanto eu faço o possível por compreender bem as coisas e naturalmente as pessoas por quem eu tenho estima e posso dizer nomes (…) Não vou também preocupar-me excessivamente com isso, isso seria uma obsessão mortal.
Não sei se ficou bem esclarecido, essa conversa sobre o neo-realismo. O França escreveu um artigo no dicionário da pintura, que eu agora tinha melhores opiniões, tinha melhorado as minhas opiniões. Ora eu não melhorei nada a minha opinião, continuo é a ter as mesmas opiniões. De facto, tu fazes os descontos do tempo, enfim, muitos, há muitas coisas a reduzir e a transpor, mas no fundo a questão é a mesma. Por exemplo, eu quando leio o artigo de Helena Vasconcelos sobre a moda, interessa-me profundamente, mas ela depois pergunta: e em Portugal? e farta-se de falar nas esquinas líricas de Portugal… Ora o lirismo é um dos temas do Rui Mário Gonçalves, há aqui coisas que eu gostava de discutir. O lirismo português é realmente um lugar comum.

L.M. – É um sebastianismo…

E.S. – É um sebastianismo… o Rui Mário Gonçalves diz que os artistas precisam da sua terra, não sei quê, não sei quê… líricos. Ora o neo-realismo não era lírico, era uma tentativa, de pelo contrário, assumir as coisas, a situação social…

L.M. – Era pragmático…

E.S. – Era pragmático…

L.M. – Uma coisa que nos falta ,em termos de sociedades: o pragmatismo. De certa maneira o Rui Mário Gonçalves tem razão quando diz que somos uns líricos…

E.S. – O Rui Mário Gonçalves é para mim um caso dos mais apaixonantes, primeiro sou muito amigo dele, segundo acho que ele anda um bocado frustrado… o que não me admira, foi ele que fez a Galeria Bucholz, foi ele uma das primeiras pessoas a expôr o Álvaro Lapa… o Areal.(...)