Bibliografia

Carta de Ernesto Veiga de Oliveira

Em resposta ao "relatório do quarto trimestre de 1966" de Ernesto de Sousa
11 de Março de 1967

Publicado em Ernesto de Sousa e Arte Popular: Em torno da exposição "Barristas e Imaginários" [catálogo], Guimarães, CIAJG, 2014.




Instituto de Alta Cultura
Centro de Estudos de Etnologia Peninsular

Lisboa, 11 de Março de 1967


Meu Prezado Amigo,

Junto devolvo o manuscrito do seu Relatório do Trimestre final de 1966 que li com o maior cuidado e interesse. Para lá das considerações puramente estéticas de uma arte naïve que tantas dúvidas suscita, a sua análise, extremamente lúcida e densa, incide sobre alguns conceitos fundamentais com que lidamos correntemente em etnologia (sem que, apesar disso, os tenhamos muitas vezes anotado com a precisão devida); e exerce-se, com luminosa penetração, a partir do uma larga experiência de dados, alicerçada em sólida leitura, que contudo não empana a originalidade da sua visão e especulação pessoais.

O equívoco da definição da “arte popular” (e até do “popular”' em geral) caracterizada no exagero expressionista de uma situação "ingénua" de primeiro encontro, e estabelecida em função de relações objectivas – o "homem do campo" e sobretudo a "situação cultural de oralidade" em que se move – é assim, no seu trabalho, enunciado em termos passiveis de ama delimitação maias rigorosa, e, por isso, melhor utilizáveis em ciência.

Do maior interesse me parecem as suas observações quanto à caracterização dessa "arte de expressão popular" nas suas relações com as formas cultas, e nos dois planos, sincrónico e diacrónico, que permitem uma abordagem mais esclarecida da tão incerta e fugidia definição do "primitivo".

Em especial, destaco a sua excelente crítica da "imitação" e do sentido mais fundo do seu papel na elaboração do produto popular e na questão das relações entre a arte e o artesanato populares, do qual ela tem sido proclamada, de certo modo, a chave. Nomeadamente, a sua afirmação do poder criador presente ainda na imitação do artesão rural, que contudo se exerce dentro dos limites de uma realidade objectiva e subjectiva perante a qual ele se comporta passivamente, e que corresponde ao que podemos entender por "tradição" ou “cultura" local. No seu trabalho, acentua-se pois, com particular acuidade, uma das facetas primordiais do problema das relações entre a personalidade individual, afirmada na invenção pessoal, e o elemento social do psiquismo, de tão fecundas perspetivas na explicação do homem.

É com toda a sinceridade que o felicito efusivamente por mais este seu trabalho, em que, me foi particularmente grato encontrar além da sua compreensão do nosso país e do seu povo à luz do horizonte mais largo do homem universal, muitas das minhas próprias preocupações e modos de ver. Aliás, se o seu objectivo último é “descobrir o fruste com uma das faces do infinito”, e o “infinito através dos caminhos da terra” – a “realidade rugosa” da sua magnífica citação de Rimbaud –, não é isso todo um programa de conhecimento total do homem, tal como o que buscamos paralelamente através dos seus comportamentos culturais?

Por tudo isto e por muito mais que o seu trabalho, ao trilhar caminho novo tão árduo, nos vai revelando e sugerindo nas perspectivas que em nós próprios desperta, aceite um abraço de admiração e de agradecimento.


E creia-me seu amigo muito dedicado,
Ernesto Veiga de Oliveira