Bibliografia

Performar

Opção, n.º 101
3 de Março de 1978

[Excerto]

Republicado em Oralidade, Futuro da Arte?, São Paulo, Escrituras, 2011; 
Ernesto de Sousa: Revolution My Body [catálogo], Lisboa, FCG, 1998 e Ernesto
de Sousa: Itinerários
 [catálogo], Lisboa, SEC e Galeria Almada Negreiros, 1987.


 

                                               O estado do meu corpo é o Juízo Final.
                                               — Antonin Artaud


A palavra inglesa performance (v. to perform) vem do italiano performare. Hoje os italianos mais ou menos cultos, como os restantes europeus, dizem performance para designar um certo número de fenómenos ligados ao desempenho‑de‑um‑desígnio um "papel", no teatro, no circo ou na vida. A expressão é muito utilizada nos meios de vanguarda, com frequência substituindo ou referindo um passado ilustre: os happenings e os events (houve uma batalha entre defensores de uma e outra áreas respectivas de significação, ambas denotadas com o acontecimento... e sua fortuna), o comportamento como arte, o processo como arte... Tudo isto se refere no conjunto ao que poderíamos chamar performing arts ou artes da acção, lúdicas, ou ainda da Festa, considerando esta última palavra no sentido muito exigente e profundo: se um jogo de futebol (football) pode ainda considerar‑se um descendente degenerado, da Festa porque passivo e banal para a maioria dos participantes a mim deveria ainda sê-lo em sentido inteiro... É uma longa história: o Carnaval, por exemplo, talvez que no Brasil (mais perto de África), apesar de toda a distorção espectacular, tenha ainda acentos de uma autêntica Festa, e por aí seja uma realidade (também) estética que interessa ao estudo das performings arts. Indiscuti­velmente o Maio 68 em Paris, a acção dos "provos" em Amsterdam, aspectos da Revolução Cultural na China e até certos "Maios" de Portugal, foram acontecimen­tos que revelaram de uma existência esté­tica, independentemente desígnios mais ou menos conscientes e lúcidos dos partipantes (“A poesia deve ser feita por to­dos" “A poesia deve ter por fim a verdade prática". Dir‑se‑ia que durante dois anos (e será um período "mais longo" da história moderna) se viveu em certos meios de Portugal, em autêntica performance; em acto de performar... cumprir o que se pensara ou sonhara agora e aqui (paradise now). Como se o acontecer contivesse todo o acontecimento, todo o consenso, todo o futuro. Era aquele "escrever no chão e deixar‑se inscrever pelas paixões da rua – a que se refere Maria Velho da Costa: "casas sim, barracas não", "o poder a quem trabalha" foram versos mais densos, mais estéticos, que toda a literatura que os estudantes de Belas-Artes e outros espalharam pelas paredes de Paris em 68.

Performing arts. Artes da acção. Artes do comportamento. Envolvimento e assemblage. Mixed‑media. Simultaneismo. Teatro Livre. Teatro de Guerrilha. “Quando as atitudes são forma". Arte processo. Arte aberta. "Tudo é arte". Arte pobre. Arte vida. Happening. Events. Performance. O acontecimento como arte. Arte lúdica. Arte ritual. Arte – participação e acção. Arte política. Arte sociológica. Prop-art. Concertos fluxus. Arte-na-cidade. Arte‑na‑rua. A Nova Dança e a Arte-do-corpo. Arte total e Land art. Arte ecológica. Estes termos e seus referentes estas expressões têm áreas de significação próprias, contíguas por vezes, opostas também. E uma história diversa.

 (…)  

Mundo catastrófico

...Mas não há outro. É também aqui que vai vindo a Primavera, e aquela saia travada desenhando "as mais belas nádegas do mundo", a macieza do olhar da desconhecida rapidamente entrevistada na rua, tu enfim, amigo ou não, mas tu, a quem olha nos olhos, muito para além de tudo que posso contar por agora (ou ver), tu exiges de verdade. O que nos liga, o que liga tudo é a memória, a Memória. Há catástrofes, mas há catástrofes ao contrário também. Por exemplo, o registo magnético (magnetofone, video-tape, ou magnetoscópio) é uma das maravilhas do nosso tempo. A diferença entre nós e os construtores de menires, ou os gravadores da gruta do Escoural ou do Vale do Tejo, é enorme... em termos de memória, mas também em termos de registo. A nossa capacidade especular já atingiu uma certa perenidade. Ficarei contigo.

Ficarei? Há uma actividade estética que é também uma investigação dos limites. Do que nos limita, agora e aqui. Como atravessar o espelho (o registo) e entrar no país das maravilhas? Digamos para resumir que este é o sentido comum das performing arts, quer se recorra a ensaios directos da grande Festa antiga (e aí as técnicas da magia não são indiferentes: não é, Georges Bataille? Mircea Eliade? Marcel Mauss?), como no happening: quer se investiguem as técnicas do corpo (outra vez, Mauss, meu companheiro), como na body art e em certas performances.

A memória e o seu registo – a revolução que nesses termos se pode ler, inevitável, tanto quanto nas derrotas políticas. No futuro. Lá estarás com o teu olhar límpido. Utopia.