Celso Martins, Expresso
1998
A compilação de textos dispersos de um artista
que testemunha a recepção das vanguardas
dos anos 70 em Portugal.
SER MODERNO... EM PORTUGAL
Ernesto de Sousa
Assírio & Alvim, 1998, org. e apres. de Isabel Alves e José Miranda Justo
310 págs.
Depois da celebração crítica quase unânime que acompanhou "Revolution My Body" a exposição homenagem a Ernesto de Sousa no CAM em 1998, seria de esperar que a recolha em livro dos seus textos teórico-críticos suscitasse algum eco na Imprensa escrita portuguesa, fazendo jus ao papel central que uma percentagem considerável de artistas, comissários e críticos lhe atribuem na conjuntura artística portuguesa do início da década de 70. Este silêncio absoluto (salvo maior desatenção minha) parece-me paradoxal. Primeiro, pela desproporção da atenção mediática entre exposição e livro, sendo que ambas se reportam prioritariamente aos anos de adesão ao conceptualismo; depois, porque o livro reúne um grupo de textos, ao tempo publicados em revistas e jornais de modo disperso, cuja compilação constitui um relevante subsídio para a história da arte portuguesa nos anos 70 e para o pensamento de E.S. em particular. O responsável pela organização do volume, José Miranda Justo, tratou essencialmente de completar um projecto do artista, cuja intenção de reunir em livro estes escritos se encontra documentada.
Ser Moderno... em Portugal testemunha a recepção e divulgação, em Portugal, das práticas artísticas conceptuais do final dos anos 70, a que o nome de E.S. está intimamente ligado, e um momento de chegada na sua trajectória pessoal enquanto crítico e animador cultural. Figura activa a partir dos anos 40, E.S. haveria de revelar-se uma personalidade com interesses culturais diversificados. Inicialmente conotado com o neo-realismo, que defende até aos anos 60, desenvolverá durante os anos 50 e 60 estudos sobre arte popular e etnográfica. Paralelamente, prossegue actividade como cineclubista e intenta uma falhada carreira de cineasta, cujo momento alto é a realização do filme Dom Roberto, concluído em 1962. É no final da década que se dá, nas suas concepções uma rotura em relação ao realismo, em favor de práticas experimentais que a visita à Documenta de Kassel, de 1972, e o encontro que travou com Joseph Beuys viriam sedimentar. A partir daí Ernesto de Sousa desmultiplicar-se-á na organização de exposições, na animação de actividades e na intervenção polémica em tomo das práticas conceptuais, actividade para a qual podemos eleger a exposição colectiva "Alternativa Zero" (1977) como momento culminante.
Movimento heterogéneo e multi-localizado, o conceptualismo reanimou a ideia das vanguardas, recuperando a concepção subjacente aos ready-made que Marcel Duchamp havia praticado durante a década de 10, num pressuposto de desmaterialização da obra de arte. Enquanto movimento cultural, participa do mal estar político e social que conduziu às lutas estudantis em França em 1968 e aos protestos contra a guerra do Vietname nos EUA. A desmercantilização da arte e a desfetichização do objecto artístico, aproximando a prática artística da vida social, são alguns dos seus objectivos transformadores. A introdução destas ideias em Portugal coincide com a derrocada do Estado Novo e acompanha o período revolucionário subsequente. A coincidência histórica entre as aspirações vanguardistas de transformação simultânea da arte e da sociedade e o momento revolucionário português são um caso feliz, e porventura raro, de empatia entre a conjuntura internacional e a situação portuguesa.
Foi pois num chão de efervescência utópica que surgiram alguns dos textos agora reunidos, e que funcionaram como a defesa de uma nova geração e de uma nova atitude na arte portuguesa. Num estilo polémico, por vezes derivativo, E.S. reflecte sobre alguns artistas surgidos nos finais dos anos 60 e cujas carreiras se consolidarão na década seguinte. A este nível é particularmente relevante o texto sobre Helena Almeida, cuja figuração do próprio corpo é definida como uma dádiva e comprometimento exterior a qualquer narcisismo, indissociável de um corpo social, "um envolvimento; como a casa, a família, a cidade." (p. 164). Na arte ecológica de, Alberto Carneiro sintonizada com a Land Art internacional, E.S. identifica a convivência entre um pendor lírico e a direcção conceptual. Ana Hatherly é outra artista a merecer uma reflexão: "A escrita automática de Ana, como toda a exploração moderna da escrita, não é um recôndito separado do gesto; um pensamento anterior ao corpo; uma ingenuidade ou alegria sem morte, um discurso sem método (...) É um questionamento para a resposta. Resposta inexorável e inevitável, mesmo quando feita de silêncio e de ausência" (p. 204).
Dois textos sob Almada Negreiros, uma defesa de sempre de E.S., testemunham o seu apreço pelo artista e elegem-no como figura simbólica de rotura cultural e atitude vanguardista contra uma tradição cultural periférica e anquilosada. Outro sinal de permanência é o texto sobre Franklin Villas-Boas Neto, artista popular, que exemplifica o interesse de E. S. pela cultura popular, valorizando a ingenuidade e a inocência numa análise que não se confina à abordagem antropológica e que desvaloriza a hierarquia entre a arte "culta" e arte popular. Textos sobre a actualidade artística internacional, que então E.S. acompanhava avidamente, outros sobre alguns dos seus protagonistas com quem possuía afinidades electivas (Filliou ou Vostell por exemplo) e sobre as actividades em que se ia envolvendo completam o panorama.
A história das vanguardas da segunda metade do século é uma história de vitórias e de fracassos. Se por um lado não conseguiu desmantelar o sistema artístico internacional, nem alterar a sua feição burguesa, o conceptualismo alterou de modo radical as condições de produção artística.
Se é verdade que nos seus piores momentos legitimou o absoluto primado da ideia sobre a sua consequência conduzindo a meros enunciados de intenções e voluntarismos político-ideológicos, por outro lado alargou o campo de possibilidades criativas (Land Art, Body Art ambientes, instalação, etc.), alterando a relação da arte com o "público", adensando a fruição da arte para além do ver e legitimando acções não directamente dependentes de um restrito entendimento do "fazer".
Ser Moderno... em Portugal reúne precisamente alguns dos textos que impulsionaram esta transformação entre nós e reflecte as suas virtualidades e contradições, pelo que o seu interesse documental para a história da cultura portuguesa contemporânea é incontornável.