Eduardo Prado Coelho, Opção
10 de Março de 1977
Digamos de outro modo: a plasticidade do desejo
modulando-se sob todas as formas do imprevisto
Havia-se criado expectativa bastante para se temer a pior desilusão, o que não aconteceu. Ao cabo de alguns meses de existir e não existir, Alternativa Zero, manifestação cultural da vanguarda portuguesa surge em Belém, na Galeria de Arte Moderna, integrada no Mercado do Povo. Convém que disto se dê alvoroçada notícia.
Em primeiro lugar, de que se trata? Muito simplesmente, de uma exposição. Isto é, estamos naquele domínio que se convencionou chamar de "artes plásticas". Mas já aqui surgem dificuldades, porque esta exposição “de artes plásticas” é ela mesma uma interrogação sobre todos os domínios, um deslocar de fronteiras, um vacilar de campos definidos, uma indefinição da arte. Eles, os organizadores, eles dizem que é uma exposição aberta. Mas isto não chega. Porque é de uma abertura que a cada instante se abre ao acontecimento incessante da própria exposição em tudo o que nela arriscadamente se expõe. E esta palavra só a entenderemos por inteiro se incluirmos na exposição o risco imenso de algo se expor, de alguém se expor nisto.
Digo: nisto. Reparem que o não digo por este isto ser um atirar à cara seja do que for contra o academismo burguês e suas faces balofas. Esta vanguarda não provoca, porque a provocação é hoje o sono da vanguarda. Esta vanguarda alterna. Esta vanguarda revoga. Alternativa zero: e o zero é isto.
Isto quer dizer: menos que um quadro. Ou ainda: menos que uma visão do mundo. Ou mesmo: menos que urna alma. Antes algo de infinitamente mais pequeno, de desaforadamente menor. Digamos sem medo: um zero à esquerda. Isto e qualquer coisa que constitui, um ponto de vista que não é ideologicamente de esquerda, mas que, por ser disto, e apenas disto, só pode ser uma praxis de esquerda, a afirmação irradiante de um zero, de um vazio pleno, capaz de promover o infinito fio dos sucessivos números. O que se inaugura aqui é uma outra forma de contar, Frege e Russell poderão dizer alguma coisa.
Quer dizer que esta exposição se fundamenta em algumas regras: por um lado, subordina o objeto, o resultado estético pronto-a-consumir, ao processo estético. O que se expõe não é o imaculado produto, mas a persistente produção, E por isso mesmo aquele que se propõe visitar (direi, “habitar”?) esta exposição, é implicado no produzir da produção. Esta manifestação cultural não se vê de fora, vê-se de dentro: operatoriamente. Percorrê-la é aceitar-se cada um como um elo vivo deste trabalho inacabável. É fazer do espaço a casa. Fazer do olhar o encontro. Do encontro o jogo. E deste a cidade – por dentro iluminada como transparente. Alternativa para uma cidade – em última instância, cívica também. Se o quiserem.
Donde conheço Ernesto de Sousa, não me lembro. E se falo dele agora, é porque Ernesto de Sousa é quem imaginou isto. Não me lembro, repito, nem interessa. Sei que nos vamos cruzando ao sabor de acasos e colóquios, e doutras coisas que têm menos nome. E que às vezes nos surpreendemos em cumplicidade, Eu digo que a arte morreu, e há uma indignação que varre a sala. Na outra ponta, Ernesto de Sousa apanha a jogada e entra nela. Sei ainda que neste militante cultural a lucidez política é sempre desdramatizada, duma firmeza imensamente serena.
Quem o leu nas páginas da Vida Mundial (nos tempos em que esta revista existia sob a direcção inteligente de Augusto Abelaira), sabe como Ernesto de Sousa pensa a arte de hoje na sua formulação mais radical: corno qualquer coisa que a cada instante se desequilibra não para a vida, mas para o outro lado da vida. Como imagem imprecisa de uma alternativa do quotidiano. Como utopia prática, humilde, trabalhada. Como desejo disto.
Artes plásticas, que ideia! Digamos de outro modo: a plasticidade do desejo modulando-se sob todas as formas do imprevisto: o desejo que se premedita, o que se esconde, o que se máquina, o que se despe, o que se esfarrapa, o que se poupa, o que se gasta, o que se esquece, o que se enamora e multiplica. E por isso os poetas, os músicos, os cineastas, os desempregados e os distraídos se encontram neste espaço transformado para falar, ver, comer, discutir, cantar, adormecer.
É claro que Belém não é Beaubourg. Fica num extremo da cidade, e é escasso em transportes adequados. Chega-se de carro, e é longe. É claro que o povo de Lisboa já aprendeu este caminho nas tardes de sábado e domingo, quando o sol ajuda e o rio apetece. Mas isto não chega para dar vida a um espaço que a tradição polui e entorpeceu.
Alternativa Zero abre para Belém uma resposta fundamental: a de aproveitarmos este espaço que é o que temos à mão no possível, e fazermos dele lugar de intervenção, cultura outra, festa sempre.
Se isto não é irrealizável, trata-se agora de o começar a provar.