Carlos Morais, Diário de Lisboa
15 de Agosto de 1971
Em Vigo um grupo numeroso de pessoas (Ernesto de Sousa, Carlos Gentil-Homem, Isabel Alves, Bicha [Maria Manuel Torres], António Manuel Calvet, Filomena Fernandes, João Luís Gomes, José Calvet, etc.) prepara neste momento uma festa.
Uma fase dos trabalhos de Almada, Um Nome de Guerra decorre agora em Vigo, depois de Lisboa, Londres e Madrid. Um acontecimento novo no cinema português. Filme, happening, anti-filme, festa?
Um espaço. Neutro tanto quanto possível.
Um aspecto primordial é o espaço onde iremos agir.
Ao todo, em lugares diferentes, quatro projecções simultâneas. É possível que cada olhar não consiga abranger duma só vez mais que um ecrã. Mas isto não é um filme. É necessário criar envolvimentos em que as pessoas se encontrem — o contrário do que o cinema geralmente faz, que é a dissolução de qualquer espaço social e ético na néantisation da sala escura. Trata-se também de reensinar as pessoas a serem ousadas. É uma provocação.
Num dos ecrãs uma projecção fílmica propriamente dita. A filmagem de Almada, Um Nome de Guerra está já pronta. Estamos neste momento a tratar da parte gráfica. Filmamos o grafismo aqui em Vigo numa oficina, a Color Print, em condições muito especiais. A parte gráfica consta de legendas com frases do Almada, palavras, poemas, uma investigação gráfica centrada na palavra. O Carlos Gentil-Homem inventa um grafismo fundamental. Tem uma importância extrema a palavra (escrita, falada, cantada), tudo a partir de elementos do Almada.
Não há a preocupação de reconstituir ou documentar seja o que for. Cria-se um envolvimento através dum exercício gráfico. Não se vê o Almada a fazer nada, excepto entrar e sair do atelier. Há sequências em que o material de filmagem foi decomposto de forma a sugerir um gesto. Tudo isto é elemento constituinte da música, que tem uma função integradora e primordial. Em Setembro gravamos a música do Peixinho. Os elementos de música estão quase todos compostos: uma parte é gravada, o resto é improviso dos executantes. A projecção do filme e dos diapositivos pode, eventualmente, constituir uma parte da sessão. A seguir funcionará um arquivo que contém a parte da obra de Almada susceptível de ser reduzida a diapositivos; todos os seus quadros, desenhos, gravuras, frases, gravações.
Com as perguntas dos participantes à “memória” do arquivo, podem confundir-se novas projecções de filmes de amadores, venda de posters e de bocados de filme, programas livres, etc. O que de mais importante irá acontecer neste envolvimento visual e sonoro assenta na imaginação e na capacidade criadora de um número indeterminado de pessoas num espaço.
Pretende-se que seja uma festa.
Ernesto de Sousa fala ainda da festa, das ceias, do convívio. Aqui em Vigo, com muita chuva, a alegria é a coisa mais séria da vida.
— Há quanto tempo começaste a fazer este filme?
— Creio que comecei este filme (anti-filme?) há muito tempo, há uns dois anos, há uns séculos. Não se pensava em morrer e ainda hoje ninguém, nenhum de nós, pensa em morrer. O filme começou porque eu tinha de esclarecer certas dúvidas sobre o Almada, talvez sobre mim. Nisto tudo, o Almada era (tentávamos que fosse) um companheiro. E ainda o é. Apenas de modo transformado; é com grande alegria que todos os dias trabalhamos as suas frases, a sua voz, a sua imagem. Não é porque queiramos documentar ou descrever seja o que for. É que, sobre um vazio profundo de significações imediatas, queremos que a alegria seja (a alegria é) a coisa mais séria da vida.
— É possível falar de ficha técnica ou artística em relação a Almada, Um Nome de Guerra?
— Olha, lembro-me que eu escrevo e dirijo filmagens e uma ideia geral; o Costa e Silva fez belas imagens-cinema, eu faço o que posso em fotografia; o Carlos Gentil-Homem inventa um grafismo fundamental (já foi co-autor em Algés, no Nós não estamos algures, ensaio para o Almada, Um Nome de Guerra) e Jorge Peixinho também preside a tudo isto (todos somos presidentes), e já “escreveu” o que havia a escrever de uma música indispensável. A Filomena Fernandes, padronizada pelo José-Augusto França, continua a velar pela subsistência disto tudo. Os laboratórios e oficinas são vários, em Lisboa: a Ulyssea Filme, aqui a Color Print, em Londres e um pouco em toda a parte, a Oficina Experimental. Ficha técnica? Verdadeiramente ainda é cedo para fazer justiça.
— Entre outras coisas, foi inventada uma forma de produção que parece ser inédita, processando-se à margem dos círculos de produção convencionais (subsídios, produtor, mais subsídios). Tens alguma coisa a dizer sobre este aspecto?
— Nós pensamos que um anti-filme assim deveria ser feito sem dinheiro, e se possível, somente com amor ou as suas traduções pudicas: camaradagem, espírito de grupo, interajuda, etc. As “obras” (depois leiloadas ou “trocadas” por dinheiro) deveriam equivaler assim a um acto de amizade e entusiástico — ou, se quiseres, de amor. E creio que o foram mesmo, na maior parte dos casos. Isto não impede que alguns filhos da Família-Sistema não fiquem a pensar que deram esmola ou compraram uma acção patronal e até gostassem de poder fazer exigências que eu nem a um produtor encartado consentiria... Quanto à Esmola, o meu homem é o Gaudí que pedia esmola propriamente dita e de mão estendida para a sua catedral. Quanto aos pobres aspirantes a patrões, deixemos que se consumam no inferno da respectiva miséria “material e espiritual” como dizia o nosso Mestre Gil [Vicente] que nisto de arrogâncias sabia o seu bocado. Leilões não houve propriamente (os leiloeiros, as salas, todas agiram graciosamente, isto é, pela graça que ainda há nestas coisas). Tratou-se, e ainda se trata simplesmente, de trocar algo por algo, sem comparação ou compensação mercantil: como dotação.
Queria-se “massa” — que se podia ter ido buscar a muitos sítios mais. Mas principalmente (e isto está em curso) queria-se começar desde o princípio um trabalho ou uma provocação à participação.
— O que deverá chamar-se a cada sessão de exibição? Exercício fílmico, sessão de envolvimento, happening, elementos para um programa livre...
— Eu desejaria que se lhe chamasse FESTA. Mas isto tem muito que se diga. E há-de ser dito. Veremos, quando todos souberem o peso e o alívio da participação na alegria séria de uma festa autêntica: encontro da razão com a euforia, redescoberta: “quando se nasce segunda vez, assiste-se ao próprio nascimento”.
— Há em todas as FESTAS música improvisada in loco?
— Parte da música é fixa, quer dizer, é gravada de antemão. Nas sessões “pobres”, não haverá outra música. Nas outras, nas autênticas sessões-FESTA-participação, sim, haverá música aleatória, e em certa medida imprevisível. A este respeito, devo dizer que a colaboração com o Peixinho é uma das razões de ser deste trabalho. É uma colaboração fecunda, e já antiga, desde a encenação de O Gebo e a Sombra, no Porto, ao Nós Não Estamos Algures, em Algés. Com a música, e o resto (grafismo, cinema, imagens fixas, efeitos mais óbvios de participação — a que muito gente gostará de chamar happening, etc.), assumimos o domínio de obra aberta; que não diz apenas respeito a uma forma em movimento (o contrário da forma cristalizada com antecedência), mas também a uma investigação ética, uma investigação, e em certos casos uma denúncia, de responsabilidade. Marginalmente (estamos em Portugal!), trata-se também de um esforço pedagógico. Ora, a música é neste método, veículo e agente fundamental, não só pelo seu valor operatório mas também por propostas que confluem naquilo a que Almada chamava o heroísmo moderno: o heroísmo quotidiano. No primeiro aspecto, julgo que o Peixinho concordará comigo em que a música criará silêncios (ou vazios) nos quais tanto poderá correr outro meio estético com suas significações e sentidos, como a vida bruta. Quanto às propostas, elas estão para o Almada como para um nome de guerra: não se metam na vida alheia, será esse o seu heroísmo.
— Para quando as primeiras sessões de exibição do anti-filme?
— Não sei. Se não tivesse outros compromissos, isso demorava ainda largos meses. Penso que ainda este ano faremos exercícios, ensaios para esta festa que se quer grande.
— O aspecto que irá ter a apresentação pública de Almada, Um Nome de Guerra teve origem na preocupação de encontrar a forma fílmica mais adequada para exprimir a pessoa-obra de Almada, ou resulta de uma investigação à margem da temática do filme?
— Não há uma forma de a apresentação pública, mas como se disse uma tentativa de forma aberta. Diria ainda que não haverá apresentação, mas presentação, ou presentificação… Tudo isto supõe uma necessidade profunda e uma luta deliberada por todo e qualquer oportunismo. Assim, há uma investigação à margem da temática, e há uma temática que obriga a essa investigação, etc., como num jogo de espelhos paralelos…
— Há uma relação entre as várias projecções fixas, ou entre elas e o filme?
— Íntimas relações, cuja riqueza, aliás, dependerá dos respectivos operadores, a quem se dará grande liberdade dentro de um programa anteriormente acordado. As projecções fixas desempenharão um papel fundamental, comparável, em parte à música aleatória. Com frases do próprio Almada e outros elementos constituirão uma das bases fundamentais do que se pretende: o grafismo, que é totalmente independente da obra plástica de Almada, constituir-se-ão envolvimentos ópticos que fundamentarão uma espécie de edifício não sólido, um espaço estético e social.
— Qual a razão da importância que a palavra (escrita, falada, cantada, gritada) assume no filme?
— A palavra é a mais importante ferramenta para comunicarmos. Mas não uma palavra de antemão disciplinada em prévio discurso gramatical. A palavra-objecto. De resto, nisto limitamo-nos a aprender a lição de Almada e a de todos os grandes escritores. Com a vantagem para o Almada — e isto não tem sido suficientemente dito —, que foi um mestre de oralidade. Ora, a oralidade aparecerá até nas nossas realizações gráficas.
— Dado que cada Festa tem um carácter de exercício e sessão de trabalho, haverá naturalmente alterações de sessão para sessão. Até que ponto as modificações possíveis poderão afectar, ou mesmo pôr em causa, a estrutura primária de Almada, Um Nome de Guerra?
— A não ser em sessões absolutamente “pobres”, é impossível deixar de haver alterações que dependerão até — e aspecto primordial — do tipo de espaço onde iremos agir. As reacções do público mais ou menos participante, darão a cada sessão-festa um clima próprio, etc.
A segunda parte das sessões consta ou constará de consultas ao arquivo dos slides, poemas, gravações, convívio, retrospectivas, programas livres...
Isso tudo ou parte disso, e eventualmente, quermesses (é uma das coisas que preparamos, com mais cuidado), ceias, discussões e o desconhecido. Haverá sempre, claro está, exercícios de filmagem, fotografia, gravações, etc., etc.
— Almada, Um Nome de Guerra é um anti-filme porquê?
— Por muitas razões. Todas, ou pelo menos as mais sérias, de uma atitude anti-arte que me parece consanguínea com o nosso tempo. Mas falemos só de razões específicas. Há bons filmes e eu consumo-os, e acho que toda a gente o deve fazer... Há a luta contra o mau filme e acho que é uma luta justa. Não impede que, bom ou mau, o film se tornou (antes, e agora com a televisão) num poderoso meio alienante do homem moderno. O que era para despertar serve é, de várias maneiras, para adormecer. É preciso despertar o cinema, dissecá-lo e torná-lo apto a um outro uso, mais corrente e generalizado... No futuro, os namorados escreverão as suas cartas em cinema (ou enfim, em cassettes TV)... Mas isto não é só questão tecnológica. Trata-se também de reensinar as pessoas a serem ousadas. No futuro, todos farão cinema, como todos tendem para saber escrever hoje... Mas não o triste cinema amador que se faz para aí, imitação invejosa do cinema profissional. Há ainda outras razões particulares, há tantas! É necessário criar envolvimentos em que as pessoas se encontrem a si próprias — o contrário do que o cinema geralmente faz, que é a dissolução de qualquer espaço social e ético no néantisation da sala escura. Quem melhor detém estes processos de fascínio (cinema, música, grafismo...) tem a obrigação estética e, sobretudo, moral, de os denunciar como elementos alienantes e de os reinventar como ferramentas de liberdade. Isto também é a modernidade como eu a entendo. Desta liberdade e desta modernidade, Almada é a melhor figura de prosa portuguesa, um nome de guerra.