Delfim Sardo, Ciclo Fotografia Alemã Fotografia Portuguesa, Lisboa, Goethe Institute
Fevereiro de 1992
J'ai enfin le droit de saluer des êtres que je ne connais pas.
APOLLINAIRE
A exposição de Ernesto de Sousa que o Instituto Alemão agora acolhe é aquilo a que habitualmente se chama uma exposição póstuma. Se o termo já é desagradável por si, no caso específico de Ernesto de Sousa torna-se particularmente inconveniente pelo carácter presencial que a sua obra possui. Particular do rasto que Ernesto de Sousa traçou é o efectivo desinteresse pela noção de presentificação e a absoluta preocupação com a presença-física ou moral, o que para ele seria o mesmo – do autor – ou da obra, o que para ele ainda seria o mesmo. Assim, mostrar fora do espaço da sua presença estas obras é uma mistificação e um simulacro que só pode ser compreensível se aceitarmos que a virtualidade do diálogo é a sua inconclusividade, ou que existe uma entropia permanente e irresolúvel em determinadas obras.
Nenhuma das obras que agora se apresentam é inédita. Este é o meu corpo foi apresentado em 1978 na exposição Tradição como Aventura na Galeria Quadrum. Olympia teve a sua estreia em Coimbra (CAPC) em 1979, tendo corrido Lisboa e Berlim – através de um contacto por Vostell. As Quimiografias foram exibidas na Galeria Quadrum em Março de 86, numa exposição intitulada Esse Ouro Dantes.
O facto destas obras serem já conhecidas não lhes retira qualquer premência estética. De facto, elas não só são significativas no contexto da própria obra de Ernesto de Sousa, com um especial destaque para Olympia, como são carismáticas pelo uso perverso do suporte fotográfico, sublimado ou banalizado segundo a função ontológica da obra.
Em Ernesto de Sousa torna-se evidente a importância funcional de cada momento da sua intervenção como operador estético, numa terminologia que ele próprio utilizou. A ideia de operação, de intervenção cirúrgica, indissociável da presença do próprio operador como actor de um acto estético é reflexo da profunda convicção moral que atravessa toda a sua obra. Esta carga moral, que não é puramente ética porque pressupõe uma dominância da acção prática encontrou a sua expressão numa permanente vivencialidade pedagógica. Quem ler os escritos dispersos que E. S. deixou espalhados por tudo quanto é (ou foi) publicação periódica encontra uma extraordinária paixão pela transmissão de saber ligada a uma crença radical na partilha.
Em 1972, E. S. entrevistou Joseph Beuys na V DOCUMENTA, em Kassel. Para além do fascínio pela vida/obra de Beuys, é notória a importância dada à vertente pedagógica do trabalho de J. B. em Dusseldorf, que surge ligado à sua obra como se de um só permanente esforço comunicativo se tratasse. O elo com o próprio trabalho de E. S. é significativo. Para além de os unir a mesma idade (nasceram ambos em 1921), é uma mesma concepção da Arte como Vida, uma mesma anulação do intervalo comunicativo que os parece unir. De facto, Ernesto de Sousa tem absoluta consciência desta inevitabilidade de aproximação, numa comum filiação em Duchamp, ou na sua inquietante estranheza. Apesar de tudo, algo os separa. Se Joseph Beuys encaminhou toda a sua obra na univocidade do problema comunicativo e na absorção da diferença pela reificação da metáfora – e não tratou tão pouco do problema da linguagem da arte, como alguns inflacionistas pretendem – E. S. optou sempre por uma via de transversalidade (nas palavras de Eduardo Prado Coelho, no catálogo de Itinerários).
É este carácter de transversalidade que confere à obra de E. S. a sua assistematicidade. Viajante da cultura, o seu interesse repartiu-se por inúmeros campos da sensorialidade – desde o cinema, o teatro, as artes plásticas, a crítica, a literatura, a antropologia – produzindo um tecido de relações unidos por uma pura e radical vivencialidade estética e comunicativa. Pôr informação na ventoinha, é assim que imagino. E é neste sentido que realizou a enorme quantidade de colóquios, conferências, conversas. Em 72 trouxe a Lisboa a sua DOCUMENTA. A sua, apropriada da mesma forma como a ofereceu a quem a quis ver, em 300 diapositivos no atelier de Eduardo Nery.
Esta ideia de apropriação e dádiva, ou como E. S. afirma em O Estado Zero–Encontro com Joseph Beuys, de indiferença e solidariedade veio a contribuir para o estabelecimento de redes de intercâmbio (de que a prática da Mail-Art é só mais uma metáfora) que culminariam num dos mais importantes statements produzidos na arte portuguesa, e que foi a Alternativa Zero. Num país onde não há tradição (muito menos em 77) de se realizarem exposições de curator, o evento conceptual que foi a Alternativa Zero, fazendo dialogar grande parte da mais dinâmica arte produzida entre nós à época – de permeio com a presença do Living de Julian Beck – marcou talvez o início da pós-modernidade em Portugal, embora de uma forma desviada e transversal. Peculiar será a miscigenação entre a figura do critico e do artista, indissociáveis na globalidade da acção cultural de Ernesto de Sousa.
Se tentarmos ter uma visão global da obra de E. S. esbarramos sempre na enorme dispersão dos meios que utilizou, reveladores duma posição pragmaticamente assistemática.
No entanto, esta posição de assistematicidade nunca põe em causa o sentido global que, embora não seja afirmado como sistema de pensamento – ou de acção, o que para ele terá sido equivalente – se impõe pela recorrência de formas operativas. A obra está, então, absorvida pela vida, não por um qualquer conceito de vivencialidade mas pela densidade da própria vida, do vivido. 0 que implica – e implicou – um grande respeito pelo valor da contingência, do acaso que, duma maneira ou de outra é um agente incontornável no resultado perceptivo e no próprio processo criativo. Esta união entre existencialidade e contingência, se funciona de forma centrípeta, provocando uma permanente integração na obra de todos os elementos, humanos e fácticos, que em seu torno giram – o seu amor, os amigos, os outros – acaba por ter o seu correlato na força da sua excentricidade, na forma como tudo e todos são envolvidos num turbilhão criativo.
Claro que esta forma de viver a vida e a arte revela uma maior preocupação com o processo do que com o resultado, uma espécie de conceptualismo existencial em que o conceito é a vivência do processo operativo, sendo o contrário também paradoxalmente verdadeiro.
Esta maneira de pensar e de agir só pode ser compreendida se cruzada com a ideia – que atravessou todo o seu trabalho – de que a cultura é um enorme cadinho de formas recorrentes e internamente permutáveis. Que a arte popular e a arte erudita correspondem só a formas sociológicas de apropriação de uma mesma multiplicidade que só pode ser afagada pelas expressões pontuais de apropriação, condensadas na arte. Os estilos, tendências e correntes não são mais do que momentos já parcialmente contidos noutros momentos e assim por diante, numa totalidade que se escoa nos próprios artistas.
Percepção radical, o seu trabalho é uma permanente procura de um grau zero da acção ou da compreensão, mesclado com uma cultura histórica que lhe permitiu encontrar essa radicalidade em múltiplos momentos da(s) história(s) da arte. Esta radicalidade acabaria por ter uma das suas expressões mais significativas na subsunção da alteridade, na anulação do seu espaço ontológico – o ciclo Este é o meu corpo, de que, nesta exposição temos exemplo.
A citação de Apollinaire que encima estas linhas foi colhida a uma anotação, à mão, feita por Ernesto de Sousa numa fotocópia da sua entrevista a Joseph Beuys. Resta-me esperar que quem, como eu, não o conheceu, tenha agora um pretexto para o saudar.