Rui Eduardo Paes, Almada, um Nome de Guerra, Lisboa, ACARTE/Fundação Calouste Gulbenkian
Abril de 1994
Incluído nos programas de apresentação no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e na Universidade de Évora em 1995.
Podia ser esta a melhor das definições de uma arte multimédia, mas Ernesto de Sousa falava com as palavras a seguir citadas, na verdade, da vida tal como a via o olhar abrangente de Almada Negreiros: "Sentir tudo de todas as maneiras viver tudo de todos os lados / ser a mesma coisa de todos os modos possíveis / ao mesmo tempo / Realizar em si toda a realidade de todos / os momentos / num só momento difuso profuso completo e / longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com que simpatizo."
O pioneiro do multimédia português nunca filmou ou fotografou Almada considerando-o um objecto passivo. Compreendendo a dupla caracterização do Mestre enquanto interprete da realidade o enquanto visionário, entregou-lhe o papel, teatral necessariamente, do ancião que tudo absorve, com a sua lente perspectiva. Numa conversa registada em fita com o autor do mural Começar, de que poderemos acompanhar, algumas passagens nas presentes sessões, Ernesto de Sousa afirma claramente: "O Almada é que tem a resposta". Explicou-o, aliás, todas as vezes que teve ocasião de dissertar sobre os objectivos últimos de Almada, Nome de Guerra, dizendo do filme, o do complexo multimédia que à sua volta foi estruturando, tratar-se de "uma revisão crítica da cultura e da arte portuguesas, com base numa das mais extraordinárias das suas personalidades primeiras", e quem senão o romancista, poeta, pintor e ensaísta que o ano passado celebrámos no centenário do seu nascimento.
Ernesto salientou que o filme Almada, Nome de Guerra, em si, não interessa, ou que pelo menos interessa pouco, não constituindo um fim, mas um principio, ou um “processo” de estudo e intervenção. Daí a sua preocupação em apresentá-lo como um não-filme ou até um anti-filme, obra aberta que a si mesma sobrevive, sempre diversa e renovada, multiplicando sentidos e ilações consoante os vários componentes do multimédia se associam, as leituras que dela queiramos fazer ou ainda a variação temporal dos contextos em que a vimos, lemos e ouvimos. Uma das características mais curiosas desta obra é, precisamente, a sua mutabilidade.
Almada, Nome de Guerra já existia em embrião no multimédia Nós Não Estamos Algures, de 1969 (ano em que foram realizadas as suas filmagens), baseado na estrutura da Invenção do Dia Claro), de Almada Negreiros. A sua primeira apresentação pública com esse título foi em 1979, com a música daquela obra inicial, assinada pelo compositor Jorge Peixinho. Luiz Vaz 73, de 1977 e estreado em Gande, Bélgica, no qual a figura de Almada é associada à de Luís de Camões, recicla imagens de «Almada, Nome de Guerra. Em Ultimatum, de 1983, mostrado na Experimental Intermedia Foundation, em Nova lorque, foi novamente utilizada uma sequência do filme.
De uma obsessão, portanto, se trata. Nem podia ser de outro modo, pois, segundo Ernesto de Sousa, "devemos utilizar o cinema para lá do cinema, numa acção-cinema que nos ponha de modo evidente (…) em face de nós próprios, como actores totais, totalmente responsáveis". Um projecto assim só pode ser conduzido a longo termo, ainda que tal signifique ultrapassar o limite imposto pela morte. O artista já não se encontra entre nós, mas o seu propósito continua vivo e actuante.
Desiludido com o cinema tradicional, após ter realizado Dom Roberto, Ernesto de Sousa optou por desenvolver no teatro as suas coordenadas para a elaboração do espectáculo total. Em 1965, com o Gebo e a Sombra de Raul Brandão, já contando com a colaboração de Jorge Peixinho e, nos então inovadores cenários, do artista plástico José Rodrigues, esquematizara a noção de globalidade que evidenciaria na sua mais decisiva obra, homenagem à resistência de Almada contra as “classificações fechadas dos géneros e dos meios artísticos”. Se o multimédia evoluiu rapidamente nos últimos dez anos – o intervalo de tempo que separa a mais recente apresentação de Almada, Um Nome de Guerra aqui mesmo, no Centro de Arte Moderna, em Setembro de 1984, e a actual – modificando os dados com que era definida, é com o teatro, combinatória de disciplinas por excelência, que ainda lidamos. Homem de Teatro, tanto no que à práxis como à teoria respeita, Ernesto de Sousa está na origem de tudo o que, neste país, vem acontecendo em território das artes performativas. Injustamente o esquecemos… Há duas décadas, concebeu o multimédia como uma simultaneidade de diferentes modos de expressão artística, o cinema, a poesia e a música encenados em complemento e relacionados no momento do espectáculo, ou como preferia dizer, da festa. A tecnologia permite-nos hoje o que antes era impossível: a interacção da imagem com o som e o movimento, implicando o definitivo derrube das fronteiras que separavam a visão do ouvido. E se na altura era natural que a arte multimédia fosse feita por criadores em ruptura com os sistemas estéticos convencionais Ernesto de Sousa recusando os dogmas do cinema e do teatro e Jorge Peixinho os do academismo musical português , não estranha que, nos anos 90, os jovens praticantes do multimédia tenham outro posicionamento e percursos bem diferentes. As referências do passado, seja como for, permanecem. Para Almada Negreiros, "o importante é a memória", sendo certo e sabido que a arte não nasce do nada. Preferindo o vídeo ao cinema, dada a sua maior manuseabilidade operativa, e tendo uma ligação umbilical ao rock, música autodidacta por condição, os novos artistas multimédia seguem as pistas abertas por Ernesto de Sousa para se dirigirem a regiões só vislumbráveis agora. Porque nunca seguiram Escolas não precisam, de contrariar as fórmulas instituídas basta-lhes ser o que são e prosseguir caminho à sua própria custa. João Paulo Feliciano, Rafael Toral (ambos contemplados nas duas primeiras edições da Bolsa Ernesto de Sousa, destinada a incentivar a criação multimédia em Portugal), Vítor Rua, Nuno Rebelo e outros têm a possibilidade de, individualmente, cruzarem na sua actividade imagens e sons, serem músicos e artistas visuais, porque dispõem dos meios que lhes permitem tal, meios esses que determinaram novos parâmetros. Não pôde acrescentar Ernesto de Sousa, aos seus muitos dotes, o fazer musical. Verificamos de qualquer modo, que a arte dos sons está na essência do seu entendimento do multimédia, e se o lugar que em Almada, um Nome de Guerra deu à banda sonora de Peixinho, rica em timbres e cores, é esclarecedor o suficiente, a música foi pensada por si de maneira mais profunda do que podaríamos imaginar. Num texto que dedica a Serres, Vesalius e Artaud, exalta a qualidade transcultural e de transcomunicação da música, designando-a inclusivamente como coisa “originária, primária, inaugural”. Seria caso para concluir que, na sua concepção multimédia, antes do cinema, antes mesmo do teatro, está a música, Não uma anterioridade valorativa e hierárquica, mas mítica, isto é, fundadora. E outra vez encontramos o fantasma de Almada. Voltar ao princípio é, irremediavelmente, voltar a ele.