Lisboa
15 de Janeiro de 1969
[Excerto]
Publicada em Ernesto de Sousa: Revolution My Body [catálogo], Lisboa, FCG, 1998.
Tudo me impressionou muito, e favoravelmente, na recente viagem a Londres, aonde não ia há onze anos. Francófilo por fatalidade geográfica e cultural, conservava de Londres uma indiferente e fria imagem de museu – e fui agora encontrar uma cidade activa e surpreendentemente jovem. Neste conjunto sem mácula, algumas coisas me terão iludido, e principalmente um Sol, excepcional; um clima de lazer confiante, em que se projectava também a minha provisória situação de viajante. Mas várias outras coisas, e em particular a visita à tua despretensiosa Oficina, me deixaram funda curiosidade por outros aspectos – o Trabalho, nomeadamente, que só quando é criador e euforizante, me interessa. (Todas as outras formas de trabalho são uma chatice – por agora irremediável, mas adiante...) Falando de Trabalho (aquele que me interessa, com T grande), sabes como isto é por aqui, normalmente, mísero e mesquinho. Como estou sempre a nadar contra a corrente, muitas vezes verifico que muitos dos meus esforços se reduzem a isto: manter-me à tona de água, sem avançar grande coisa, ou nada. Outras vezes, o avanço é tão súbito e surpreendente, que me é difícil tirar todas as vantagens do caso. Foi o que aconteceu que aconteceu com a realização do D. Roberto, a publicação do álbum sobre escultura portuguesa, etc. O filme parece ter aberto a via ao que para aí se chama Novo Cinema português, e o álbum, sg. escritura assinada, reconhecida e publicada pelo nosso grande legislador José-Augusto França, é "a primeira obra moderna da historiografia de arte portuguesa contemporânea"... Mas depois destes arrancos parece que fico a ver navios, pioneiro e tal e coisa. Tenho agora sido professor de um Curso que também devia ser pioneiro, e com dois anos de bolsa da sacrossanta Fundação, tenho entre mãos um trabalho gigantesco (talvez gigantesco de mais a que só falta dar a concretização final, um ou dois livros a publicar).
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EXPOSIÇÃO-HAPPENING NA QUADRANTE
Porventura saberás que a Galeria Quadrante, dirigida pelo arquitecto [Artur] Rosa, tem promovido exposições orientadas por críticos, com uma problemática proposta por estes e entendida como significativa da portuguesa arte contemporânea. Assim fizeram exposições o J.A.F. [José-Augusto França] (tema: "Imagem não Imagem"), o Rui Mário Gonçalves (tema: o desenho), o Francisco Bronze (tema: o "Objecto"). A próxima será da responsabilidade do Pernes. O Rosa convidou-me também. Mas como tenho a fatalidade de complicar as coisas, eu não farei só uma exposição, mas algo mais ou diferente, com a colaboração do mesmo Rosa, do Noronha da Costa, do Jorge Peixinho, da Ana Hatherly, etc. O tema desta manifestação que durará 15 dias, é esquisitinho: OBSOLESCÊNCIA. Obsolescência das definições de modernidade, obsolescência das vanguardas – e por outro lado – se quiseres, "diálogo das vanguardas", para empregar uma expressão do Pernes num dos seus momentos de lucidez. Este tema terá três aspectos, envolvimento (incl. coisas como expanded cinema, participação etc.) revivalismo (sincronia das vanguardas ...), contestação (e muita água no bico). Se as coisas correrem razoavelmente, haverá uma exposição mutável (o próprio público se encarregará das mutações), acontecimentos (com tiros, "música", etc.) – e isto será um ensaio para coisas maiores (utilização – por assalto? – do salão grande da SNBA) e o acto inaugural de uma coisa a que o França propôs a bem acolhida designação de Oficina Experimental, "clube" de multi-moda, actividade inter-disciplinar, internacional, inter-vanguardistacional, etc. Para te informar: as tuas obras terão um lugar de honra no sector destinado ao estudo do psicadélico, do revivalista ou coisa parecida. Depois te darei mais detalhes. Este ano será, um pouco, um ano Almada Negreiros (ou seja, um ano de meditação sobre a nossa resistência – pois não é verdade que a dele se espalhará na nossa e vice-versa?), com o filme, o curso de Sociologia da Arte, as minhas lições de estética do cinema e do teatro.
Estes dois ciclos fazem parte do Curso de Formação Artística, único foco de actividades da SNBA. Foi o curso que te visitou o ano passado. (…)