Bibliografia

O Cinema Novo em Portugal

Jacqueline Sieger, Témoignage Chrétien
18 de Janeiro de 1963

[Excerto]

Na sequência da presente entrevista, Ernesto de Sousa foi detido na fronteira quando se dirigia a Cannes. Na prisão do Aljube recebeu a notícia que o seu filme Dom Roberto tinha recebido dois prémios nesse Festival.​
Uma cópia de 
Dom Roberto foi adquirida pela Federação Francesa de Cineclubes e a F.F.C.C.J.
 


No marasma do cinema português, surge um jovem destemido.

Témoignage Chrétien (TC) – Sabemos acerca do cinema português, que é geralmente infantil e que reflecte o atraso político do regime de Salazar. É por essa razão que se deve saudar como um acontecimento o filme de Ernesto de Sousa Dom Roberto que constitui, tanto pela sua forma, como pelo seu conteúdo, uma notável excepção. Pela primeira vez no país do fado, uma câmara interessou-se pela realidade, pela miséria quotidiana de um povo que, vinte anos de ditadura e aberrações coloniais afundaram numa economia arcaica, medieval. O autor tem quarenta e um anos. Redactor-chefe da revista de cinema Imagem, fervoroso animador de cineclubes, contou a TC as circunstâncias em que realizou Dom Roberto.

Ernesto de Sousa (ES) – É a minha primeira longa-metragem. Quis descrever a miséria do povo através das atribulações de um bonecreiro ambulante. Depois de ter perdido um quarto minúsculo, que não consegue pagar, encontra um edifício abandonado, que ocupa com uma companheira de infortúnio.

Apesar deste novo alojamento estar em ruína, é uma espécie de lar, ao abrigo do qual tentam reencontrar coragem. É uma crónica de um pátio do edifício com os seus lados divertidos ou sórdidos que surge no filme, por detrás da aventura destes heróis exemplares na sua banalidade. Mas a estadia de Dom Roberto será breve neste refúgio de infortúnio e o fim do filme mostra a sua expulsão com a demolição do edifício.


Um ser marginal

TC – O seu bonecreiro é um sonhador, um poeta, pode-se dizer, um marginal: não receia que as suas dificuldades, no contexto um pouco irreal onde o colocou, nos toquem menos que se tivesse mostrado um operário ou um camponês?

ES – Sim, em Dom Roberto o sonho mistura-se frequentemente com a realidade, o que o transforma numa espécie de fábula, porque eu desejava que o filme fosse visto no me país.

Em Portugal, só o simbolismo permite aproximar a verdade. Nenhum encenador ousaria atualmente mostrar, por exemplo que muitas crianças andam descalças. Há uma outra razão: se o povo português tem grandes qualidades de modéstia, também é dado ao sonho, a esperar que as coisas se resolvam por elas mesmas. É o que traduz a expressão "esperar por Dom Sebastião", e é este lado um pouco apático dos Portugueses que eu quis mostrar em Dom Roberto. O tema pode parecer-vos banal. Em Portugal. fez o efeito de uma bomba. De facto, há uma dezena de anos que os cineastas realizam longas metragens onde entrecruzam um folclore pleno de vulgaridade: as eternas histórias de toureiros e de cantores de Fado, em cenários de cartão. Estes filmes (1 a 5 por ano) beneficiam de ajuda não reembolsável de fundos do cinema.

TC – Qual é o público dos filmes portugueses?

ES – Essencialmente o povo, as pessoas vão ver as caras que lhes são familiares, e ouvir falar a sua língua.

(…)

TC – Como foi assegurada a produção de Dom Roberto?

ES – Imagina que me teria sido impossível realizar o meu filme se tivesse de contar com os produtores oficiais. Decidi então passar para outra via: assim, Dom Roberto foi essencialmente financiado por uma cooperativa de espectadores. Do lado dos laboratórios, depositaram confiança em mim.

TC – Como foi acolhido Dom Roberto em Portugal ?

ES – É difícil julgar porque o filme está no início da sua carreira. No entanto creio poder dizer que as pessoas se interessaram. Entre os intelectuais que o esperavam com impaciência, suscitou imensa polémica, a tal ponto que vamos editar um livro contendo um balanço das críticas e das discussões.

TC – E qual foi a reação do público burguês?

ES – Dou-lhe um exemplo que me parece suficiente – na noite da estreia, uma espectadora levanta-se : "Devia fuzilar-se o cineasta que ousou fazer este filme. Para ver a miséria, não nos basta ver os filmes italianos?"


Um Espetáculo Total

TC – E para além desta crítica…radical, que defeitos lhe apontaram?

ES – A lentidão da acção. Sem dúvida, esta é, por vezes devida a uma certa inabilidade, mas o mais frequente é ser uma questão de princípio. Parece-me que a lentidão, na medida em que deve exasperar o espectador, incita-o a tornar-se activo. A minha finalidade não é aborrecer o espectador, mas torná-lo lúcido. É por isso que gostaria de chegar a um espectáculo total, compreendendo meios teatrais e literários, a diversificação dos géneros, tendo por efeito obrigar constantemente a uma nova tomada de consciência. Para mim, um filme de "esquerda" é sobretudo um filme que incita à acção. Creio que na nossa Europa Ocidental, só na acção é que há hoje espaço para o optimismo.