Rui Mário Gonçalves, Jornal de Letras, Artes e Ideias
11 de Outubro de 1988
A primeira vez que o vi, foi na antiga Faculdade de Direito. O Sebastião Fonseca disse-me que ele era um profissional de cinema. Estava ali a falar de arte moderna, a propósito de uma exposição de jovens artistas que eram meus amigos: o Bértholo, o Escada e outros. A exposição foi organizada por um estudante, o Agostinho, que é hoje o cartoonista Vasco. E eu era estudante de Ciências. Foi há mais de trinta anos.
O mundo dava as suas voltas. Em 1963, Ernesto de Sousa participou numa série de colóquios sobre o tema "O Povo nas Artes e nas Letras", ainda no âmbito das associações de estudantes. No Instituto Superior Técnico, a sala estava à cunha. Ernesto de Sousa falava de cinema, mas fez muitas referências à pintura, defendendo o neo-realismo. Eu preferia o abstraccionismo. Naqueles tempos de agitação estudantil, numa reunião provocada por aquele tema e centrada no discurso de um notável cineclubista, as minhas opções estéticas não eram cómodas. Com o seu instinto de animador cultural inato, Ernesto de Sousa desafiou-me. Eu não queria falar de cinema, nem de nada. Ele insistiu para que eu falasse de pintura abstracta. E logo uma rapariga levantou a voz, apontou-me a dedo e declarou à massa estudantil que era necessário saber se, sim ou não, fulano (o meu nome de crítico) achava que a arte devia ser feita para o povo. Respondi apenas: "Tal qual como a Medicina". Brusca tensão na sala, que me surpreendeu. Disseram-me que a rapariga era de Medicina. Suponho que era a Isabel do Carmo. Nunca tirei isso a limpo. Dando-me uma razão e outros tirando-a, a tensão aumentava na sala, até que, com voz de sargento, Ernesto de Sousa dominou a situação e declarou que, mau grado as divergências de ordem estética, as nossas posições políticas eram semelhantes.
De novo fiquei sem o ver, durante três anos, os meus três anos em Paris, onde me tornei, para ele, "um amigo de Francastel". Não tanto...
O doce sabor da amizade e do companheirismo em acções culturais desenvolveu-se a partir de 1967, no Curso de Formação Artística, na SNBA. A Isabel Alves fez, no âmbito da História da Arte, que eu leccionava, um apaixonado trabalho sobre o Dadaísmo. E ele todo orgulhoso...
O Dadaísmo era uma redescoberta, constituía uma nova faceta do Ernesto de Sonsa. Redescoberta também, a personalidade de Almada Negreiros. E a arte conceptual. E Joseph Beuys.
Era preciso espaço para a vanguarda e para o civismo cultural. Ernesto de Sousa foi o grande animador de uma assembleia geral que mudou a direcção da SNBA. Pôs-me esse "menino" nos braços. E foi pregar para outras freguesias.
O seu gosto de agitador, de mutante associativo, de incansável viajante, não se saciava. Foi um dos críticos que mais ligou o Porto a Lisboa. Crítico militante, procurou uma osmose com artistas, em várias modalidades.
Voz livre, os seus artigos na Vida Mundial foram, em 1975, a expressão imediata da revolução cultural necessária. Em 1977, "Alternativa Zero" constituiu o modo de forçar os governantes desentendidos a darem um passo público fundamental. Constituiu um ponto de não retorno da acção cultural oficial. Atingido esse ponto, até os partidos políticos passaram a ser capazes de indigitar os seus membros para o posto de secretário de Estado da Cultura. Até então, eram apenas independentes a ocuparem esse posto.
Caloroso e pródigo, só a doença o poderia travar. Entusiasta, tinha mais fogo do que disciplina. Ele era sempre o centro energético, qualquer que fosse o grupo em que aparecesse.
A medida que foi surgindo a doença, cuja fatalidade ele conhecia bem, muitos embaraços e angústias provocou nos seus amigos. O disfarçar dos sintomas, a ocultação da sua evidência, o adiamento da terrível verdade: tantos códigos entrecruzados nas mais simples conversações, após muitos anos, décadas, de frontalidade, de sinceridade, de energia intelectual. Qualidades que ele possuiu sempre e que o corpo passou a servir mal. Talvez por ter tido sinais deste seu possível final, ele foi a tempo tão presente. A tempo. E por isso nós podemos dizer-lhe: obrigado.