Bibliografia

Espessuras do Pensar: Ernesto de Sousa e o Círculo de Kierkegaard

Miranda Justo, Ernesto de Sousa: Revolution My Body, Lisboa, FCG
1998

[Excerto]

 

1.

Espessura do pensar: a expressão é sugerida de múltiplas maneiras. Ernesto de Sousa chamava com frequência “transparentização teórica” ao discurso em torno das questões da estética. Ao seu próprio discurso, em especial. E se alguma coisa há para “transparentizar” será certamente porque há opacidades a vencer. Opacidade da obra plástica (pictórica, escultórica, performativa, instalatória, etc.), do facto estético bruto, das “operações” estéticas (fazer, dar a ver, etc.). Opacidade do estético, se o estético pudesse alguma vez ser considerado em si mesmo. Mas também opacidade como negação liminar da ideia de imediaticidade da experiência estética.

Assim, por um lado, a “transparentização” é uma fala-escrita que liga. Ou que re-liga. Liga o estético com as instâncias que o rodeiam: o ético, o conceptual. Com as instâncias de que o estético nunca se separa, mesmo quando uma ideologia prevalecente instituiu a separação. Ou seja, a “transparentização” não inventa a ligação: reitera-a, repete-a, restitui-a. É ao mesmo tempo tautologia e ritual, ambas as coisas tornadas necessárias pela ideologia burguesa da especialização, designadamente da especialização do estético. Ligar é, portanto, um trabalho político: uma discursividade dirigida contra a arquitectura sectorial do pensar e do viver separativos. A espessura que este discurso produz é a de uma organicidade na qual o estético, o ético e o conceptual não têm autonomia. A espessura do pensar é então, nesta primeira perspectiva, o próprio exercício (a praxis) da organicidade do viver-pensar.

Mas, numa segunda perspectiva, a “transparentização” é também um discurso a ligar o objecto estético ao sujeito da fruição-inteligência estética. Questão para uma “semiologia” ou para uma “hermenêutica”? Para as duas coisas, segundo Ernesto de Sousa. A opacidade a vencer seria então a das dificuldades de integração do objecto no vocabulário e na sintaxe (linguagem, sistema) a que pertence (ou a que pertençam as suas componentes) e a das dificuldades relacionadas com a respectiva polissemia. A integração semiológica e a redução hermenêutica só se processam por exercício discursivo. E a espessura que este discurso produz vem acrescentar-se à primeira: é agora a espessura de uma interposição activa, de um esforço de mediação, sem o qual não chega a haver recepção-eficácia da obra. Espessura mais complexa do que à primeira vista se possa crer: primeiro, porque este discurso não é mera pedagogia, tal como não é mera crítica; não se trata nem de avaliar, nem de explicar a obra, mas sim de a pôr a trabalhar; depois, porque a linguagem em que a obra se inscreve não é estática e, portanto, o discurso que faz essa inscrição está obrigado a refazer-se, a refazê-la e a refazer quem a faz; depois ainda, porque reduzir a polissemia é tarefa de escolhas e não há motivações estritamente estéticas para o acto de escolher.
Verifica-se então que esta segunda espessura está contida na primeira. Reconhecer que a obra de arte nada é em si mesma, reconhecer que é preciso pô-la “a trabalhar” num discurso que a coloca em comunicação com outras obras e com os sujeitos que dela se apropriam significa já atribuir-lhe estatuto cognitivo-conceptual: a obra não funciona sem conceito. Reconhecer, por outro lado, a impermanência das linguagens (estéticas ou não-estéticas, tanto faz), reconhecer o carácter sempre provisório da integração semiótica significa desde logo que não há uma verdade perene das linguagens, tal como não há uma verdade dos objectos. Ora a impossibilidade de uma verdade estável das linguagens estéticas coloca a questão cognitiva da construção provisória da verdade e a questão ética das decisões envolvidas na construção da verdade. Por último, reconhecer que não há decisão ou escolha que se processe em termos estritamente estéticos significa que os critérios hermenêuticos são ou conceptuais, ou éticos, ou talvez as duas coisas, mas não imediatamente dados.

Uma terceira perspectiva pode partir precisamente da não-imediaticidade do estético, mas encarando-a agora de uma outra maneira. A “transparentização” responde à opacidade material do “objecto estético” criando uma rede de materialidades múltiplas. Vejamos. O discurso de “transparentização” parte necessariamente de uma negação da possibilidade da intuição estética (e da “diferença estética” supostamente resultante da especificidade da intuição estética). Com isto não é negada a “experiência estética”, mas sim a sua autonomia, um em-si da arte. A partir daqui torna-se necessário admitir que a experiência estética anda disseminada por todo o conjunto da nossa experiência. Ela atravessa nomeadamente tudo aquilo que dentro da nossa experiência é o pensar a experiência. Sempre que na nossa experiência ou no pensar a experiência os factores materiais, sensíveis, significantes, se tornarem intencionalmente produtivos, sempre que esses factores forem manipulados ou jogados para a produção de um sentido que não se conhecia antes, sempre que essa descontinuidade da inteligência material2 se sobrepuser produtivamente à continuidade da generalização, então estamos em presença de uma experiência estética. “Experiência estética” deixa de significar um tipo de experiência especial e passa a ser um qualificativo que se acrescenta a qualquer ordem de experiência, cada vez que a materialidade da mesma se revela eminentemente actuante. Não se trata apenas de abolir uma diferença essencialista entre arte e não-arte: muito mais do que isso, trata-se de admitir que o “estético” (e a arte) irrompe em toda a nossa experiência, enquanto produtividade da experiência. E portanto também em todo o pensar, enquanto produtividade do pensar a experiência.

A espessura do pensar surge agora como presença intencionalmente perseguida da eficácia destas materialidades na experiência. Espessura já não apenas por via da tematização complexa deste efeito da materialidade, mas agora espessura do/no exercício desta produtividade material. Não se trata de desvalorizar o “conceito”, trata-se antes de compreender que ou o conceito é constantemente produzido a partir da materialidade da experiência e portanto reiteradamente renovado, ou então é meramente reprodutivo, cristalizado, ineficaz.

Nesta perspectiva, o conjunto da intervenção de Ernesto de Sousa, na sua multiplicidade aparentemente dispersiva, ganha contornos de uma unidade cerrada. Perseguição dos mais variados factores de materialidade da experiência tendo em vista a instabilização (interrogação, experimentação, denegação, etc., conforme os casos) da conceptualidade instituida e a respectiva superação numa conceptualidade em produção. Assim, ao estatismo de uma arte supostamente imediata (pintura, escultura), na qual a materialidade parece esgotar-se em si mesma, e à respectiva conceptualização num sistema igualmente estático das disciplinas estéticas, substitui-se uma intensa e extensa multiplicação das materialidades perceptivas e do respectivo efeito de conceptualização. Esta multiplicação perceptiva pode obter-se de diversas maneiras: utilização de materialidades tradicionalmente excluídas do âmbito das artes (ready-mades, arte povera, etc.); cruzamento de domínios de materialidade tradicionalmente dissociados (multimedia, etc.); descontextualização, contextualização, recontextualização de objectos (“estéticos” ou outros); inversão/subversão das condições de exibição (arte na rua, etc.); exibição de materialidades alheias (desde filmagens de manifestações políticas até à actividade de “curator”); evidenciação dos meios (acção sobre as películas, poesia visual, etc.); tematização/utilização de materialidades recalcadas (o corpo) ou socialmente desqualificadas (“arte ingénua”); e assim por diante… Todos estes processos evidenciam o que há de mais produtivo na atitude experimentalista de Ernesto de Sousa: suspensão da conceptualização instituida, abertura a possibilidades insuspeitadas da experiência material, consequente necessidade da produção de uma conceptualidade simultaneamente outra e não-definitiva.

Se acrescentarmos que todos estes processos, precisamente porque se situam (e agem) do ponto de vista da superação da “imediaticidade estética” (superação de um suposto “silêncio” da fruição/produção “estritamente estética”), são eminentemente comunicacionais, então teremos, na acentuação da respectiva dimensão social e política, conflitual e convivial, “polémica” e “festiva”, o aspecto mais radicalmente operativo destas espessuras do pensar.

Pois bem. Dito tudo isto, sobrevem(-me) incontornavelmente a ideia de que o que está exposto é apenas exploratório: uma espécie de mero levantamento de algumas dificuldades e de outras tantas peças de um jogo cujas partidas não estaríamos ainda propriamente em condições de acompanhar. Há no pensamento de Ernesto de Sousa um desafio que começa precisamente aqui e que é o de procurar para o conjunto destas espessuras uma ordenação racional dos factores até aqui levantados, mas de tal modo que essa racionalidade não seja nem limitativa das componentes material (estética) e ética (política) deste jogo, nem limitada pela estreiteza de um fechamento empírico sobre a materialidade ou de um fechamento moralista sobre o ético. Por outras palavras, a questão que aqui centralmente me atrai é a de saber se se consegue “re-construir” um modelo do funcionamento deste pensamento.
Haveria certamente várias maneiras de ensaiar essa “re-construção”. Escolho uma via razoavelmente indirecta que nasce afinal de uma antiga perplexidade minha. Recordo-me de, ao ler pela primeira vez o texto de Ernesto de Sousa no catálogo da Alternativa Zero e ao deparar-me aí com algumas citações de Hegel e de Kierkegaard que desembocavam numa valorização de Duchamp, ter achado que me não eram suficientemente claras as múltiplas implicações dessa constelação. Ao mesmo tempo era evidente que esse entrelaçamento de referências não tinha nada de circunstancial ou acessório na economia daquele pensar. Quase vinte anos depois, ao trabalhar sobre um conjunto vasto de textos de Ernesto de Sousa encontrei várias vezes o mesmo alinhamento de referências e, como é natural, reencontrei a minha perplexidade. Ora acontece que na invocação de um tal triunvirato o que se joga é precisamente uma articulação das três instâncias que acima esbocei: o estético, o ético e o conceptual. E assim, se há alguma resposta para a minha antiga perplexidade, ela passa afinal necessariamente pela detecção dos elementos que Ernesto de Sousa possa ter ido arrancar a Hegel, Kierkegaard e Duchamp no sentido de estabelecer uma articulação funcional entre as três instâncias referidas.


2.

No texto de apresentação da Alternativa Zero, Kierkegaard desempenha nitidamente o papel de um conector entre Hegel e Duchamp. Por isso mesmo, mas também pelas próprias características do pensamento do autor dinamarquês, vale a pena começar por caracterizar em traços gerais os vestígios de Hegel na argumentação de Ernesto de Sousa5.
Nesse texto encontram-se três ideias centrais na invocação que é feita de Hegel.

Primeira ideia: “a idade do Espírito, a que está para vir, corresponderia à vitória do Conceito sobre as tiranias do sensível.”6 Este seria para E.S. o aspecto mais lúcido do pensamento de Hegel, o que apontaria para “uma certa desmaterialização do objecto”, antecipando uma precisa interpretação do “conceptualismo”.

A segunda ideia é-nos dada logo pelo título atribuído por E.S. ao bloco intermédio do mesmo texto. Citando Hegel, diz esse título: “O desejo devora os objectos”.  Retomando esta citação, escreve E.S. depois: “[…] mas quanto aos objectos estéticos, o autor da Fenomenologia do Espírito reservava-lhes morte mais nobre, nas margens da ‘morte de Deus’. Na verdade, compreendemos cada vez mais lucidamente e nem sempre sem melancolia que só o desejo conduz à eternidade, à eternidade profunda… (Assim falava Zaratustra).” Por um lado, é óbvio que se trata da mesma “desmaterialização”; mas, por outro lado, temos aqui mais qualquer coisa. Aquele “na verdade” parece significar “ora, o que acontece é que…” Tratar-se-ia então também de um distanciamento relativamente à “morte nobre” dos objectos estéticos, por via de uma valorização do “desejo”, valorização que não só se faria contra Hegel, mas sobretudo por intermédio de um outro elo de ligações: Nietzsche. A terceira ideia é um programa (agora) explícito de uma “crítica à filosofia hegeliana”, conduzida na base de uma certa ideia de “comunicação” e de “pragmatismo”. Escreve E.S.: “Quando […] Bruno Munari afirma: ‘Não nos interessa saber se o resultado das nossas investigações é artístico – queremos apenas aumentar a capacidade de comunicação entre os homens’, confirma de maneira pragmática um dos aspectos mais salientes da actividade estética dos nossos dias, a importância crescente de um trabalho sobre a comunicação; não sobre as coisas mas sobre as relações entre as coisas, não sobre os objectos mas sobre os acontecimentos. As concepções de uma arte aberta, de uma arte-participação[,] continuam nos nossos dias as descobertas dadaístas. Seria fácil demonstrar que uma obra de arte aberta (isto é, transformável de acordo com a liberdade, enfim concedida ou conquistada, ou ainda… em perspectiva) não corresponde à ideia de que a obra de arte contém em si o seu próprio fim. Isto seria já a crítica à filosofia hegeliana.”

Vejamos estes três pontos com algum pormenor na sua articulação. Articulação obviamente não-hegeliana.

O primeiro ponto recupera – dir-se-ia que por metonímia, uma vez que E.S. não apresenta propriamente uma síntese das etapas da fenomenologia do espírito – o quadro mais geral do pensamento hegeliano: a possibilidade de pensar o homem na sua totalidade implica o abandono da perspectiva subjectivista e a descoberta da objectividade na história. Dentro deste quadro, a “sensibilidade” (“Sinnlichkeit”, o domínio do “sensível” e dos “sentidos”), ou seja, a permanência na materialidade dos objectos, é um arcaísmo: a história é para Hegel precisamente a história da progressiva libertação do espírito face à sensibilidade. Do ponto de vista da Estética hegeliana – ela mesma intermédia, porque superada (ou a superar) no plano da Religião e, por fim, no da Filosofia – este trajecto do espírito reconhecer-se-ia na sequência “arte simbólica”, “arte clássica”, “arte romântica”, sendo que na primeira dominaria a “sensibilidade”, na segunda se encontraria um equilíbrio (necessariamente instável) entre a ideia e a respectiva expressão, entre o conceito e a sensibilidade à forma exterior, e na terceira ter-se-ia atingido o domínio do “espiritual”. Deste ponto de vista, o “desejo” é ainda a forma prática de um domínio da “sensibilidade” e, portanto, “devora os objectos”, no sentido em que não os deixa funcionar como imagem antecipada da “liberdade” do “espírito”, ou seja, não permite que a “obra de arte” surja como tendo “em si mesma o seu próprio fim”.
Como facilmente se percebe, há na síntese produzida por E.S. dois factores maiores de rompimento com o quadro hegeliano: uma compreensão decididamente não-hegeliana do “desejo” e uma rejeição da finalidade auto-contida da arte. Ora, estes dois factores correspondem, como se vê, a uma única questão: a da “liberdade”. Em Hegel o “desejo” opõe-se à “liberdade do espírito” e essa mesma “liberdade” encontra-se prefigurada na auto-referencialidade da obra de arte. Ora se, pelo contrário, o “desejo” não for pensado como um obstáculo, mas antes como um motor dos processos de transformação, então surgirá necessariamente como modo preferencial do exercício da “liberdade”. Se, por outro lado, a “obra” é tida por “aberta” às sucessivas determinações históricas, e se esta abertura é identificada com um desinteresse pelo objecto artístico em si mesmo (inclusivamente na sua conceptualidade imanente) e com uma deslocação do interesse para os “acontecimentos” (esses sim, entendidos como eminentemente conceptuais), então é de novo a “liberdade” que ocupa o centro das atenções, uma vez que o sentido de tais acontecimentos está sempre parcialmente indeterminado, para lá de toda a determinação histórica.

Hegel desempenha então neste pensamento um papel crucial, embora desde o início condenado ao apagamento, à superação. Em primeiro lugar porque é o próprio Hegel que coloca a questão da “liberdade” em termos simultaneamente políticos e históricos. Em segundo lugar porque coloca a questão da objectividade do pensar como questão central da história, como produto da história. Em terceiro lugar porque desenvolve um conceito de “conceito” que, depois de convenientemente virado do avesso, permite sair do auto-confinamento do objecto artístico para a conceptualidade do “acontecimento” estético. Torna-se evidente – embora não me seja possível desenvolver esse tópico no presente contexto – que a superação do pensamento hegeliano corresponde aqui à substituição da ideia hegeliana de uma racionalidade necessária pela ideia hermenêutica de uma racionalidade sempre em reconstrução.
Pois bem. Chegados aqui o que temos? A liberdade, o desejo e a conceptualidade do acontecimento. Em certo sentido é pouco… Há aqui, por assim dizer, uma falta de orientação. Como orientar a liberdade? Como avaliar do desejo, para que não seja mera sujeição à irracionalidade? Como determinar a interpretação do acontecimento, se o que se eliminou foi o “finalismo” (universal) da obra e do conceito? A recepção marxista de Hegel resolveu tudo isto de uma forma muito simples: instituindo um outro finalismo (e um outro universalismo), que é o da “sociedade sem classes”, em função do qual seria supostamente avaliável cada particular, fosse ele acontecimento, obra, acto individual, etc. Não é este o caminho de E.S., e é por isso que o conector que encontra para ligar a descoberta hegeliana do “conceito” com a “conceptualidade” contemporânea não é Marx, mas sim Kierkegaard.
Kierkegaard oferece à partida a grande vantagem de colocar o problema da “liberdade” em termos radicalmente não-abstractos. A existência concreta da “liberdade” é a “escolha”8. Mais ainda, a “escolha” são os actos de escolha, são os acontecimentos singulares em que se decide: “ou…, ou…”

Ora acontece que no texto de que me venho servindo, a apresentação da Alternativa Zero, E.S. introduz a referência a Kierkegaard, à “escolha” e às “relações entre a estética e a ética” por intermédio de uma ligação à questão do “desejo” (que constitui simultaneamente uma significativa aproximação entre Kierkegaard e Nietzsche, por um lado, e entre Kierkegaard e Duchamp, por outro). Imediatamente após aquela alusão ao Zaratustra de Nietzsche (“[…] só o desejo conduz à eternidade, à eternidade profunda… (Assim falava Zaratustra).”), lê-se o seguinte: “Assim falava também […] o dinamarquês Kierkegaard que em toda a sua obra põe numa visão inteiramente actual o problema decisivo das relações entre a estética e a ética: ‘porque a estética não é o mal, mas a indiferença…[’] e a ética ‘corresponde à escolha’10. Ao propor um equilíbrio (‘ou bien… ou bien’) entre a estética e a ética define responsavelmente a total liberdade de existir, ‘eu nasci pelo facto de me ter escolhido a mim próprio’. Aqui a estética e a ética equilibram-se dialecticamente. A consciência da necessidade da escolha é o que precisamente viria a ser proposto mais tarde por Duchamp, a par da indiferença estética […].”
Antes de prosseguirmos na análise destes entrelaçamentos, convirá clarificar o problema. É que a simples invocação dos nomes de Kierkegaard, Nietzsche e Duchamp para assinalar a rotura com o pensamento de Hegel obriga desde logo a compreender que é fundamentalmente de uma rotura com a ideia de “método” que aqui se trata. Por muito que a ideia hegeliana do “método” seja a de um trajecto de descoberta11, não deixa de ser claro que um tal trajecto, por muitas deambulações e re-pistagens que possa envolver, das duas uma, ou se mantém balizado pela própria “descoberta” hegeliana do “espírito” e da sua “fenomenologia”, e então é um trajecto de descoberta da “verdade”, ou sai fora desse encaminhamento (simultaneamente prévio e finalista) e situa-se por inteiro no domínio do “erro”; a “liberdade” do trajecto pessoal de investigação é, portanto, fundamentalmente diferente da “liberdade do espírito”, mas essa diferença coloca o próprio desafio da investigação como adequação progressiva à trajectória do espírito em direcção à sua “liberdade”. Seja como for, esta noção de “método” envolve um direccionamento que não pode ser outro, um direccionamento fixo e rectilíneo, por muito que da prática hegeliana do pensar filosófico possa estar arredada a ideia de um ponto fixo inicial, de um “começo” do filosofar12. Ora, aquilo que, para lá das diferenças óbvias, há de comum entre o Kierkegaard de Enten-Eller, o Nietzsche do Zaratustra e o Duchamp dos “ready-mades”, do “hazard en conserve” e dos textos da Caixa Verde é o facto de se tratar em cada um dos três casos de um pensamento que se desenvolve à margem de uma linearidade desse tipo. O que significa, em cada um deles à sua maneira, a substituição da linearidade rectilínea (e da ideia de fundamentação que o linerismo transporta consigo) por uma imagem mais ou menos explícita do pensar como percurso circular.
Em Duchamp, por exemplo, o instante conceptual da instituição do “ready-made” como obra não pode ser homogeneizado numa sequência linear do tempo. Nem resulta sequencialmente de uma acumulação anterior, nem desemboca num tempo universal do qual esse instante fosse a origem. O instante rompe com a sequencialidade temporal, inaugura uma ordem meramente probabilística de compreensão do objecto e, por assim dizer, auto-anula-se, na medida em que não entra em nenhum encadeamento necessário com a sua própria posteridade13. Tal instante, radicalmente finito e singular, quando integrado na sequência do tempo, é estruturalmente igual a qualquer outro instante de instituição de um outro “ready-made” e, nesse sentido, a infinitude do tempo torna-se absolutamente circular, uma espécie de espera pelo novo instante de instituição de um novo “ready-made”. A liberdade é aqui a imprevisível resposta a esta espera.14
(…)Mas a diferença de perspectiva é rapidamente notável: onde Nietzsche faz da “vontade” (que E.S. lê, e bem, como “desejo”) a motricidade de uma “redenção do passado”, Kierkegaard fala de uma “escolha” (ética) que inaugura uma “existência” (distinta da existência estética). Vale a pena recuperar o contexto da expressão usada por Kierkegaard.
(…)
À primeira vista, dir-se-ia que é este o momento certo para nos desviarmos de Kierkegaard e avançarmos directamente para Duchamp, para o cepticismo produtivo de Duchamp. Não quero fazê-lo, contudo, sem primeiro sublinhar dois aspectos que aqui me interessam particularmente. Primeiro aspecto: o papel diferenciado da ironia e do humor no trajecto imaginado por Kierkegaard. Segundo aspecto: o significado do plano “religioso” e da “angústia” na concepção de Kierkegaard e o que esse significado contribui para a ideia de circularidade (ou de “repetição”, como dirá o próprio autor19).
(…)
Deste modo, e para concluir, podemos dizer que em Kierkegaard a instância do religioso é idêntica ao “conceito” hegeliano… menos a linearidade finalista (ou seja, menos o absoluto do “conceito” hegeliano). Se quiséssemos transpor o círculo kirkegaardiano numa linguagem inteiramente laica, diríamos que (a) a experiência estética exige escolhas que não podem ser de ordem estética, (b) essas escolhas, de ordem ética (ou política) não são determinadas por um fundamento de ordem conceptual, mas exigem a possibilidade de uma conceptualização racional, caso contrário não se sustêm, e (c) a conceptualidade hermenêutica que justifica as escolhas não encontra qualquer possibilidade de se ver a si mesma como absoluta, é portanto provisória e necessita de se reabrir à experiência estética, sob pena de se autocongelar num dogmatismo improdutivo.
Quando Ernesto de Sousa invoca Duchamp como ponto de chegada da leitura que faz de Kierkegaard, não está a fazer outra coisa que não seja laicizar radicalmente o círculo do dinamarquês. Laicizar Kierkegaard significa afinal substituir a “dimensão de infinito” que caracteriza o “estado religioso” por uma dimensão que, sem deixar de se apresentar com o mesmo grau de “conceptualidade”, mantenha o mesmo nível de impossibilidade de controlo, obrigando portanto a procurar de novo na materialidade da experiência estética a continuidade do pensar. Essa dimensão de conceptualidade está abundantemente documentada em Duchamp sob a figura do “acaso”. O “acaso enlatado” (ou “em conserva”)21 é a transformação em conceito da impossibilidade de auto-sustentação integral da escolha ética que qualquer “ready-made” obriga a fazer: quando o “acaso” da escolha se revela, a vontade emerge em toda a sua plenitude, não para negar dogmaticamente o acaso, mas para o conceptualizar e, depois, uma vez que essa conceptualização não se basta a si própria, para o re-utilizar, reconduzindo-o ao plano da materialidade da experiência estética, que por sua vez exige uma escolha/decisão obviamente não estética, e assim por diante…

Fica claro que, à semelhança do que acontecia em Kierkegaard, é a partir do plano de conceptualidade que se pode ter uma visão de conjunto da circularidade, sem que essa visão de conjunto possa significar nem uma ultrapassagem da circularidade, nem que se tenha encontrado um ponto fixo exteriror à circularidade (o que seria aliás a mesma coisa): a “conceptualidade” atingida neste plano, não sendo auto-suficiente, é simultaneamente a evidência de que o movimento do círculo não se deve à pura racionalidade do pensar, mas precisamente à multiplicidade complexa do pensar, dentro da qual a racionalidade se articula (e se choca) nomeadamente com as dimensões desejantes (pulsionais) e imagéticas (materiais) do viver. Uma multiplicidade transversal aos três planos, aos três “estados” do círculo.
Desejo, imagem e conceito são, pois, em última instância, os instrumentos com que se faz, a todo o momento, em cada ponto do círculo, a espessura do pensar. Ernesto de Sousa substituiu a “angústia” de Kierkegaard pela respectiva face luminosa, um “desejo” erótico feliz. Substiuiu o “conceito” hegeliano pelo seu reverso não-absoluto, na “transparentização teórica”. E substituiu a domesticação duchampiana do acaso pelo “experimentalismo” da acelerada multiplicação da materialidade das imagens. O que resulta é, por exemplo, uma intervenção como a “Gradiva”: a simultaneidade do desejo, da imagem e do conceito…, e a necessidade de entendermos essa simultaneidade dentro da circularidade do estético, do ético e do conceptual.