Opção, n.º 100
23 de Março de 1978
[Excerto]
...que a liberdade deve ser coisa de terra e de raiz
sabemos isso
sabemos que sem terra e sem raiz a liberdade não passa de vento
Vento uns charcos fumados ao acaso modos professorais senhoriais imitação sem apoio científico de um amigo ou de um livro um miúdo ou miúda que vai-paro-a-cama por engano modas decepções frustrações vento.
A terra e a raiz – um programa e uma origem, uma estrutura, um projeto. A liberdade da palavra, da forma cada vez mais possíveis, cada vez mais dependem de uma escrita (uma construção, um programa)... o que, por sua vez depende irremediavelmente cada vez mais da fala criadora e livre.
...como falar-te livremente a Ti, Fallorca, Luísa, Concha, Joaquim, Carlos (o da arqueologia), Lena, João (o da fotografia, Capitão de Abril) e... à Teresa, à outra João? E a ti Vostell, meus amigos, Filliou, Marianne, Judith, Rafael de Barcelona, Núria, Isabéis, Mercedes...? Ou a ti, amigo que me escreve de Kioto? Ou vós, da Galeria Sudurgata, cujas novas me vêm do Islândia? Ou a Ti, meu absolutamente outro?
Encontramo-nos todos um dia e falaremos livres enfim "embarcados num só barco para lá das portas de Hércules"? Essa utopia dantesca faz-nos sorrir, mas por vias e cominhos tão diversos e dispersos, alguns de nós ardentemente, rigorosamente, procuramos.
Cada vez mais
Cada vez mais
Viver em comum orgiasticamente (Mircea Eliade: ...“para o homem arcaico, uma das suas descobertas essenciais consistiu em verificar que tudo o que o que frutifica em comum tem melhores resultados").
Frutificar em comum, falar livremente.
A comunicação difícil e exemplar
A qualidade formal de uma obra (de arte, anti-arte ou não arte) é hoje, e cada vez mais, uma categoria relativa, uma dependência. A obra é cada vez mais-não-obra. (Mas deixemos essa discussão, outra altura ou lugar). A qualidade (ou a obra mesmo) dependem do programa da estrutura, do conceito – que definem e são definidas pela respectiva produção ou meio produtor: contexto nacional e regional, coerência do "artista" consigo próprio e com aquele contexto. Relações de produção; capacidade de comunicação. (Não confundir com a comunicação fácil que essa é a que se verifica através dos mass-media, meios de comunicação de massas; pelo kitsch ou pela reiteração académica... e que verdadeiramente se deveria chamar incomunicação). Na prática principalmente na nossa prática, a obra, deve ser exemplar. E nenhuma obra é exemplar senão em relação com um programa determinado, mais ou menos definido. Por outras palavras: um projecto significa o FIM (que se aproxima) da ditadura formal, perceptiva – qualquer seja a sua escrita... O que, em rigor, anuncia efectivamente o fim de qualquer ditadura mas adiante…
(…)
Há um programa a delinear… a fórmula está por encontrar
Até agora, neste domínio, ignoramos tudo ou-quase tudo uns dos outros! Mas é assim: mal se publicou a última Opção em que era referida a participação de Julião Sarmento no "espaço falado" da Galeria Gäetan de Genève*, – recebo um telefonema do Porto a informar-me (a mim – e eu agora aos leitores) – que o Alberto Carneiro também iria participar do dito "espaço". Os cruzamentos de informação vã permitir-nos prever e estar-a-tempo. Um pouco mais. Mas insistimos nos programas (terra e raiz da liberdade e) vai ser através deles e em todos os sentidos que tentarei superar a inoportunidade desta comunicação semanal. Programas das Galerias dos indivíduos (artistas, técnicos), dos estúdios, das escolas e instituições… Para não se perderem as nossas palavras em vento. Mas repetimos: a fórmula está por encontrar.
Outro exemplo
...a Galeria Quadrum. De que sei um pouco mais, até porque lá exerço semanalmente o "meu" curso: há um Programa que se delineia, e em parte um Programa até acontecimentos únicos (o leitor fica desde já prevenido) à roda de dois temas; por um lado um exercício sério da "performance” e da fotografia "conceptual"; e por outro, uma iniciativa singular, a promoção ou a confirmação de novos valores. (Assim: atenção! Em Abril e Maio estarão entre nós alguns dos mais notáveis operadores estéticos da performance, da vídeo-arte e da foto conceptual: Gina Pane, Défraoui, Dany Block, Ülricke Rosenbach. Depois, em Dezembro-Janeiro, a fotografia novas tendências; exposições e performances de Ernesto de Sousa, Irene Buarque, Leonel de Moura, José Conduto e Mário Varela).
Como este tratarei de outros programas e problemas. Acontecimentos exemplares. E sobretudo interrogações (toda a interrogação válida é exemplar). Interrogações como, ao caso:
O Centro de Arte Contemporânea, a Cooperativa Árvore e a ESBAP, três importantes centros de trabalho do Porto, qual o programa? Qual o Programa de trabalho, por exemplo, do Calhau, do Julião, ao Álvaro Lapa, da Ana de Mello e Castro? Qual é o programa do Grupo de Évora, denominado agora “Grupo dos 8"? Como é que se vai definir a Cooperativa Grafil? Qual é o escândalo (programático) da Cooperativa Gravura? Como se explica o marasmo da S.N.B.A., a inutilização da Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém? Porquê a maioria dos jornais não têm programa ou – só académico e pobre) neste domínio da comunicação visual? Porque não há boletins, jornais... sequer inquietação (visível) sobre vanguarda estética ao nível escolar, universitário? E a Gulbenkian e a S.E.C. têm um programa? Qual o porquê das "desventuras” no estrangeiro de Alberto Carneiro, um dos nossos mais pertinentes investigadores estéticos? Porquê simultaneamente a presença "não oficial” do nosso país em Milão e Malpartida? E ainda: o que deve (e pode) fazer um jornalista, radiofónico por exemplo, interessado, nestas aberturas? E funalizando ainda, outro caso: porque razão o José Luís Porfírio voltou as costas, ao que parece, à modernidade? E a TV? Alguns assuntos serão tratados por serem exemplares na sua mera positividade: o programa e atividade da Módulo, a "carreira" fora de portas de Helena Almeida... Exemplo, exemplo, exemplaridade.
O objectivo fundamental, neste domínio será sempre conhecermo-nos enfim (um pouco) uns aos outros.
*Ernesto de Sousa participou entre 23 e 29 de Outubro 1978 no projecto Un espace Parlé, promovido pela Galeria Gaetan de Genebra. Tratou-se de um ciclo de exposições – cada uma delas gravada e difundida durante oito dias através de um atendedor de chamadas telefónicas – que incluiu a participação de Antoni Muntadas, Ben Vautier, Charlemagne Palestine, Lawrence Weiner, Robert Filliou, entre muitos outros.