Vida Mundial
28 de Novembro de 1969
Salão Nacional de Arte Fotográfica, S.N.B.A., Lisboa, 1969. Um cavalo e respectivo cavaleiro erram ao transpor um obstáculo e caem ambos espectacularmente. “O fotógrafo estava lá” – como se diz nos quotidianos – “e bateu a chapa”.
A fotografia teve honras de salão e de um título: PETIT ENNUI. Dois trabalhadores ajustam o aro de ferro em brasa à roda de madeira. Bom assunto para fotografia a cores, salão e o inevitável título: COOPERAÇÃO. Uma Vénus de Milo, parte de uma coluna, estátua e colunas marcadas por sombras vigorosas... salão e título: FORMAS DA HISTÓRIA. As gaivotas ROMPEM A BRUMA e formam ESQUADRILHAS IMPERFEITAS. Há também JANELAS ABERTAS, NEBLINAS, ELEGÂNCIAS, castanhas QUENTES A SALTAR, OS TRÊS DA VIDA AIRADA, ASAS DE GIGANTES, HORIZONTES SOMBRIOS, e, claro, a eterna SINFONIA DA PRIMAVERA. O futuro inquieta grandemente os nossos “artistas” da fotografia: E AMANHÃ? INCERTEZA DO AMANHÃ, são alguns dos títulos. De resto, há SONHOS AZUIS, várias referências ao INFINITO, e, com extrema precisão, uma das fotografias chama-se FANTASIA. Precisão e simplicidade para o título de uma das fotografias, NU. Trata-se do nu mais despudoramente académico, símbolo castiço e fatal destes salões de arte. Um motivo novo, “caminhos não muito trilhados”, como se pode ler no catálogo, é constituído pela aviação, pelos “caminhos do ar” ou simplesmente, pelo AR. As intenções artísticas dos fotógrafos, ainda neste caso, são evidentes, e os títulos lá estão para não nos permitir a dúvida: AGORA VIRAS TU, BALLET (há dois ballets), BAILADO SOBRE O CASTELO DE ALMOUROL, BRINCANDO A 200 E TAL À HORA, etc. E, para que não haja também dúvidas de que os aviões e as gaivotas andam lá pelo céu: REI DOS CÉUS, ENTRE O MAR E O CÉU, CÉU E TERRA, NA IMENSIDÃO!
Não se sabe com o que nos devemos espantar mais: se com a ingenuidade literata dos artistas-amadores-fotógrafos; se com o total desfasamento destes salonnards relativamente aos problemas estéticos de hoje e à função da fotografia. Isto passa-se num tempo em que todo um importante grupo de artistas plásticos recusa até a designação de artista, preferindo-lhe outras como operador estético, operário estético, etc. – fundados na necessidade de afastar toda a definição apriorística do que seja ou não seja arte; conscientes de que aos trabalhadores estéticos o que interessa hoje é colaborar cada vez mais intensamente na investigação de novas formas de convívio e comunicação, num alargamento cada vez mais profundo da percepção do mundo, qualquer que seja o resultado artístico ou não do seu trabalho.
Apesar de todos os desastres do nosso tempo, vivemos numa época de euforia, em que se torna evidente a importância crescente dos acontecimentos, face à importância cada vez menor das obras… É neste contexto que se torna ainda mais delirante o desfasamento dos artistas da fotografia, ao isolarem a obra fotográfica de todo um processo a que ela eminentemente pertence. Arte média, assim foi designada a fotografia por Bourdieu, em conclusão de uma importante série de inquéritos sociológicos, jogando com os significados da palavra francesa moyen, que tanto pode ler-se média, como meio. Outro autor lhe chama, no mesmo inquérito, ambiguamente: arte mecânica, arte selvagem, e as suas conclusões poderiam servir de apoio aos argumentos de uma das mais importantes correntes da nova figuração, mais ou menos pictural, a mec arte (em tradução, precisamente: arte mecânica). Mas a fotografia dos nossos amadores está nos antípodas destas preocupações, já bem patentes em homens como Man Ray, dada e anti-artista, e Moholy-Nagy, que teve uma classe de fotografia na célebre Bauhaus, e aí estudou as relações da fotografia com a pintura, os têxteis, a arte dos cartazes, etc.; os nossos amadores entregam-se inteiramente à nostalgia da pintura académica e da obra isolada. A fotografia, “não é uma arte em si… – dizia-me em 1953, Man Ray, em entrevista que publicámos no Plano Focal – é um processo... mas exactamente como a escultura e a pintura.” As fotografias dos nossos artistas de salão reveladoras de rigorosas exigências processuais, resultam efectivamente desligadas de qualquer processo vivo, e, portanto, verdadeiramente criador.
Nesta mesma altura, alguns dos artistas plásticos portugueses mais conscientes investigam a destruição da pintura como quadro isolado, ilusão de (e dos) sentidos. As magníficas realizações de Helena Almeida, compararemos os preciosos (e preciosamente vulneráveis) objectos de Nuno Siqueira, e as perfeitíssimas (e por via dessa perfeição… vulneráveis) também anti-pinturas de Vítor Fortes. Estas, expostas na actualmente mais antiga das nossas galerias actuantes de arte moderna: enquanto os objectos de Nuno Siqueira se podem ver na mais recente, a Galeria Judite Dacruz. Quanto aos quadros-objectos de Helena Almeida penso que se imporia uma exposição retrospectiva e polémica da sua anti-obra, certamente uma das mais coerentes da nossa modernidade.