Emília Tavares, inédito
Março de 2006
As reflexões teóricas e o trabalho de Ernesto de Sousa na área da Fotografia foram fundamentais para a instauração da contemporaneidade artística nacional. O médium que mais importância tinha tido, ao longo do século XX, para a reformulação dos conceitos artísticos modernistas, permanecera em Portugal, e por isso mesmo, uma das áreas mais arreigadas a um discurso visual propagandístico oficial, e completamente desvinculada de toda e qualquer actualização de pressupostos formais e teóricos.
Ernesto de Sousa adere às primeiras rupturas com o redutor ambiente de concursos e salões fotográficos, bem como das publicações a estes adstritas, ao lançar a breve mas fracturante revista PLANO FOCAL, na década de 50, em que se assistiam ainda às ressonâncias de um Surrealismo nacional inesperado. Ao longo de 5 números, a revista propõe uma actualização dos conteúdos fotográficos informativos e formativos em que, entre outras situações de relevância, a historicamente mais importante foi uma entrevista a Man Ray (1890-1976), publicada no número de Maio-Junho de 1953.
O caso português de aproximação à experimentação vanguardista fotográfica tinha acontecido em exposição apenas um ano antes, através dos trabalhos de Fernando Lemos (1926) expostos a 5 de Janeiro de 1952 na Casa Jalco, em Lisboa, na mostra surrealista conjunta com Marcelino Vespeira (1925-2002) e Fernando Azevedo (1923-2002). É dessa data o texto de António Pedro, também ele caso isolado, de reflexão sobre uma linguagem fotográfica derisória e experimental, inédita no panorama fotográfico nacional.
Ernesto de Sousa confessaria em 1978 ter sido uma entrevista conduzida com ingenuidade de época, o mais provável perante um Man Ray descrédito sobre a validade do Surrealismo e revelando a sua fotografia como um meio para fazer pintura. O sempre pintor Man Ray, tornado célebre fotógrafo surrealista, seria resolvido pela lucidez mais tardia de Ernesto de Sousa como o grande artista dadaísta.
As suas reflexões da década de 70 sobre a "nova fotografia" são no essencial sobre a transfiguração do olhar, e dessa aliança de memória e desejo que o olhar comanda. Para Ernesto de Sousa, a fotografia transporta em si todo o jogo universal e arcaico entre desejo e captura, o que ela transformou em relação a esse jogo cíclico foi a capacidade de registo, de contenção desse momento. A fotografia é assim um caminho do desejo, Olympia, Gradiva, Intimate Pieces, são percursos de uma busca entre ver e desejar, a que a reconceptualização psicanalítica de Freud e Lacan dão suporte teórico e ponto de partida reflexivo.
Ernesto de Sousa propõe, a propósito da capacidade repetitiva, reprodutível da fotografia e das artes gráficas em geral, a originalidade do social, uma reconfiguração do conceito de original e único da obra de arte, fundamentado em Bachelard, e nas suas proposições de intrínseca concepção da imagem no receptor, é quem recebe a imagem que a faz, é aí que ela cria raízes.
Os media de reprodução configuravam a possibilidade de sincretismo expressivo, que permitiria integrar a obra de arte e a actividade artística no contexto generalizado da actividade humana, um meio para a sociabilização do gesto artístico, e para a multiplicação da sua génese.
A partir da década de 70, Ernesto de Sousa torna transversais estas duas linguagens fotográficas, a do desejo e a do sincretismo expressivo, muito embora ambas confluam numa clara transformação do social. Almada, um nome de guerra, é a este propósito a obra multimédia em que a fotografia como instrumento catalisador de significados encontra a sua melhor expressão. Ao fundir todos os limites expressivos e formais entre imagem e texto, função e conteúdo, tradição e memória, originalidade e repetição, a obra torna-se a produção do instante e sobrevive apenas em função da sua reprodutibilidade, do seu dar a ver-se numa outra ordem social, num tempo diferente.
A fotografia no pensamento de Ernesto de Sousa será sempre o refazer, já que a reprodução, no sentido desmultiplicador, é a índole da mudança, porque o sentido da obra não está em si para ser transmitido ao outro, será sempre o outro a exponenciar a obra e a inclui-la numa linguagem quotidiana socializante.