Bibliografia

Olympia: Fragmentos do Meu Discurso Amoroso

Sema, n.º 1
Primavera de 1979 

[Excerto]

Republicado em Oralidade, Futuro da Arte?, São Paulo, Escrituras, 2011
Ser Moderno em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.



eu falava‑te sempre

...no meu português sem cuidados maternal      e tu respondias‑me antigo      árabe ou berbere      re‑vestido de velho patriarca      figura solene da minha bíblia menino

enfim abraçámos o nosso entendimento e eu despedi‑me inocente      só depois      rodeando as velhas muralhas de rabat eu descobri que o nosso diálogo profundo estivera sempre aquém da maldição de babel      falámos meu amor

eu falava‑te sempre      o tempo passava
...fora do tempo      jochen (gerz) e eu      recordámos‑descobrimos o teu diálogo com o turco
video‑tape: jochen fala em alemão ao amigo turco que responde em turco      o diálogo é apaixonante      e entende-se      é uma fala de amor

eu falava‑te sempre      o tempo passava      nós rejuvenescíamos      foi a "trad(i/u)ção como aventura"      changement de genre      manipulação de textos
e o nosso encontro em colónia      ulrich rosenbach      o tempo o tropo a met(r)onímia      o negro todas as cores      tempo de meditação      ventre maternal      eu disse      amo-te

foi em genève      um espaço falado      e eu disse‑o défraoui

com artaud

                     o reche modo
                   
                     to edire
                     de za
                     tau dari
                     do padera coco

podia ter dito com hugo baal e os dadaístas do cabaret voltaire
                     gadji beri bimba giandridi laula lonni cadori

ou

                     zimzim urallala zimzimurullala zimzim zanzibar zimzalla zam

(…)

a canção de Olympia (não há dois sem três)
quem conhecer a ópera de Offenbach terá uma pálida ideia do autómato‑mulher do conto de Hoffman      tê‑la‑á no entanto visto,

em máquina‑e‑osso, e cantando: "les oiseaux..." a voz bem timbrada em cadenza, a voz do amor para Nataniel‑Hoffman:
máquina celibatária, viva enquanto a corda tende, as molas funcionam, os rodízios acertam e tudo parece seguir repetindo: não‑há‑dois‑sem‑três, não‑há‑dois‑sem‑três... O que é o princípio mesmo de todas as máquinas, com ou sem cibernética.
Mas quando o outro grande relógio dá a badalada romântica, e começa a faltar corda a Olympia, a voz estrangula, a bela máquina celibatária reduz‑se a simples máquina, a máquina a simples coisa... Nataniel é o único, porque o amor sabe que tudo o que se vê é falso: continua amando... até à loucura (como tu Artaud, como tu Beck: paradise now).

as máquinas em liberdade
são homens como máquinas em liberdade? que liberdade?

(…)

Em 76, um grande animador Harold Szeemann ("Quando as atitudes tornam forma", "Happening e Fluxus", "Documenta V") organizou uma exposição notável, e indispensável para pensar este assunto, As Máquinas Celibatárias. Aí se estudaram desde os célebres Três Esquemas do Aparelho Psíquico segundo Freud até à não menos célebre A Noiva desnudada pelos seus celibatários, eles próprios, de Marcel Duchamp; desde os autómatos do século XVIII até à obra de autores como Alfred Jarry, Raymond Roussel ou Kafka.

Este fascínio da máquina, que atravessa grande parte do movimento Dada, informa e enforma quasi todo o futurismo; que pela via da química e da teoria das cores já apaixonava Goethe (Afinidades Electivas, por exemplo) é afinal um dos grandes temas do homem moderno; e nosso, agora e aqui, se queremos ser homens e mulheres modernas.

De facto o mecanismo coincide com os grandes sonhos do século XVIII (a felicidade, o progresso... ), e até hoje. Hoje: a crise do mecanicismo, a difícil revolução cultural... 

Uma pergunta com muitas respostas: O Homem, a humanidade são máquinas, com tudo o que isso tem de pejorativo, como rodas dentadas num relógio, repetindo os mesmos movimentos, voltando ao mesmo, o destino? Mas então alguma coisa se desarranjaria neste mecanismo. Vagamente, obstinadamente, a morte, Porém, desde que a morte está incluída num projecto, uma vontade, cessa o seu caracter final, é transitiva. A máquina, a escrita (essa outra máquina) desarranja‑se. O destino é não ter um destino certo?

Sem metafísica, e respondendo apenas a uma preocupação existencial, o Gebo‑Raul Brandão, afirmaria: "O homem é um S.F. ligado ao universo" S.F. – a máquina maravilhosa do tempo em que foi escrito o Humus: a telefonia Sem Fios. Almada evocaria a electricidade‑para‑se‑ser‑milionário...

o homem e o seu destino individual      o universo      a diferença      a noiva celibatária      a palavra      a porta para o outro      um amor sem fios 
eis a poética e o risco (não fruteiras surrealistas ou vanguardistas      não mais jogos de salão ou quadros para pendurar nas paredes      nem paz podre nem ilusões)

a máquina      uma porta para o outro      exactamente no ponto – como sugere Lévi Strauss – onde tradução já não signifique necessariamente traição; tradução sem fios

nenhum temor
...essa porta      a dos românticos "il faut qu'une porte soit ouverte ou fermé" a do 11 da rue Larrey ou a porta para Gradiva de Duchamp na palavra de Freud
a entrada para uma velha moradia da creatura humana      o lugar onde cada um de nós esteve alojado      alguma vez      a primeira

por aí
continuarei a falar‑te      mesmo depois da catástrofe      Olympia


P.S. Mesmo que me arranquem os olhos: tudo o que se vê é falso... 
Nota para a maioria: arrancaram os olhos a Olympia, mas foi esse também o fim voluntário de Édipo      até à sua mortal vitória "política" em Colona.