Bibliografia

O Exotismo e o Conhecimento Científico da Época dos Descobrimentos

Revista do Conselho da Europa, 17ª Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura: Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento, Estrasburgo
1983

…Jamais I’humanité n’avait connu aussi déchirante épreuve, et jamais plus elle n’en connaitra de pareille, à moins qu’un jour, à des millions de kilomètres du notre, un globe ne se révèle habité par des êtres pensants, encore savons-nous que ces distances sont théoriquement franchissables tandis que les premiers navigateurs craignaient d’affronter le néant.
Claude Levi-Strauss, Tristes Tropiques.

Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alargamentos da emoção!
Fernando Pessoa, Livro Do Desassossego.


No ano de 1513 o rei D. Manuel de Portugal enviou ao Papa uma luzida embaixada que grande espanto provocou nos Senhores e Povo de Roma, sobretudo pelo muito exotismo dos seus personagens, atavios e estranhas espécies humanas e animais. Entre estes contavam-se algumas das famosas onças caçadoras do rei de Ormuz e um elefante. Há ainda referência a um rinoceronte. Provavelmente tratar-se-á daquele exemplar que se tinha ficado pelas águas do Tejo durante um desembarque infeliz: o célebre desenho de Dürer foi feito segundo uma descrição tanto quanto possível "fidedigna"… exemplo paradigmático daquilo a que chamamos exotismo.

Quási um século antes o rei da Boémia enviara a alguns países da Europa, (entre os quais Portugal), em missão secreta, um seu Barão. Muito bem recebido pela família real, ao despedir-se fez um pedido ao rei: que o presenteasse com dois negros. A isto foi-lhe respondido pelo irmão do rei, segundo o relato do próprio Barão: O irmão do rei que presenciara este pedido, entrou a rir dizendo: "Isso que pedes, amigo, não vale nada: pede cousa mais importante e decente que dois negros. Mas já que tanto os queres aceita uma dádiva minha, que é um macaco, e assim irás para tua terra egregiamente presenteado. E de crer que nas tuas regiões não haja negros nem macacos, vista a instância com que pedes estas cousas".

…ginetes, macacos, camelos, onças, papagaios, gatos de algália, pavões, elefantes e rinocerontes constituíam a moeda miúda com que se satisfazia a curiosidade do «mundo civilizado» suscitada pelas descobertas. E porventura preparada, desenvolvida nos espíritos esclarecidos por questões bem mais graves: haverá uma anima mundi, mas qual mundo? O de Ptolomeu? Ou um outro mundo, desconhecido? Outro mundo: outro homem? …os animais, as plantas exóticas, os "simples", não só satisfaziam aquela legítima curiosidade: eram um testemunho, uma prova real "d’os feitos do mar Oceano". Por isso eram generosamente enviados ao mundo. Cadamosto relata em sua "Navegação Primeira" que na caravela de regresso da Guiné viajavam com nada menos que 150 papagaios. Dürer, na segunda viagem à Flandres conta minuciosamente os obséquios de feitores e comerciantes portugueses, e descreve como lhe foram oferecidos três papagaios…


O secretismo das viagens
Estes testemunhos tinham uma vantagem: não revelavam cartas e métodos de marear, nem roteiros; não faziam perigar o secretismo que sempre, mais ou menos fora preocupação principal de quem organizava e planeava as viagens. Também tinham uma vantagem relativamente ao homem exótico: eram mudos quanto ao grande problema que se punha a uma nação e uma Europa cristã: o do Outro Homem; e de facto, o da escravatura. 

Foi perante esta dificuldade real, teórica e prática, que se pôs desde muito cedo o problema do selvagem, como outrora se pusera o do bárbaro: o selvagem era para Jaime Cortesão o homem nu – o que é um pouco ingénuo… Mas segundo nos parece, e no essencial, as intuições do grande historiador estavam certas. Inclusivamente no que diz respeito à respectiva representação plástica, na qual quási sempre o selvagem é já transformado em símbolo, por vezes heráldico: um homem nu com o corpo coberto de pêlos. Mas nem sempre: leia-se a crua descrição de Pero Vaz Caminha, certos pratos lavrados (Palácio da Ajuda), o mapa de Mécia Viliadetes: uma interpretação verista seria antiga e remontaria aos primeiros contactos com os habitantes das ilhas Canárias.

Os cronistas e outros escreventes não eram muito rigorosos na nomenclatura: mouros, sarracenos, canários, negros, negros da Guiné, índios (abexins, e mais tarde, nativos da América do Sul), azenegues e selvagens… em graus diversos eram o Outro Homem. Mas enquanto o mouro, por exemplo, podia ser o inimigo, e por essa via objecto até de um certo respeito; o selvagem contradizia tudo o que se elaborara durante séculos como definição do Homem. Era o Outro – e este é um dos grandes problemas da Renascença: ao Inimigo podia ter-se respeito; ao Outro só extremo ódio ou extremo amor.


O "Outro" Homem
O problema ter-se-ia posto ao inverso para os "civilizados" do reino de Benim; mais tarde, e com uma outra agudeza, para os japoneses, etc… Mas isso é já uma outra história. Hoje diríamos: uma história intercultural. O brilhante estudo de Jaime Cortesão foi considerado "discutível" por Vitorino Magalhães Godinho. Na verdade a iconografia e a iconologia do "homem silvestre" pertencem a um vasto campo semântico ou semiológico que atravessa a cultura ocidental desde a antiguidade clássica, ora relacionadas com a descrição expressiva do exótico, ora com uma simbólica dialéctica do alheio. O seu estudo relaciona-se com o dos monstros, a teratologia; revela um imaginário social, com a sua história própria, opondo a ordem à barbárie, o real ao poético.

Nas lendas dionisíacas, surge o "homem selvagem" representado depois por Marsias em oposição a Atena. Aí trata-se de um sileno humanizado, o que lhe confere um sentido dialético: o Homem Selvagem é o Outro Homem. Toda a Idade Média é atravessada pela obsessão do Outro Homem, como pela oposição anjo-demónio. Os Bestiários, os Livros das Maravilhas, as Imagens do Mundo, as descrições fantasistas como as interpretações da mitologia cristã, nomeadamente do Apocalipse, refletem aquela metamorfose, através de influências orientais; por um lado "multiplicando o homem na fera e a fera no animal impossível" (Focillon); por outro, erguendo a "epopeia asiática do diabo" (Baltrusaitis).

Deste vasto campo, destacar-se-ia num estudo sistemático a mitologia das águas que vemos representada na ourivesaria portuguesa dos séculos XV e XVI. "Não é fácil exagerar a importância daquela literatura na imaginação da época", escreve Baltrusaitis que nos dá notícia de uma edição de Anvers do Livro de Marco Polo, com 366 anotações do punho de Cristovão Colombo! O que é de assinalar nas representações portuguesas do "homem silvestre" é a sua humanização. Em certos casos, isto culminará com a simples narração descritiva, verista, plástica e literária. É curioso observar que Eugénio d’Ors, com evidente desconhecimento dos exemplares portugueses, e também sem, proceder a uma relação de conjunto, dá interpretação idêntica à do historiador português aos dois "homens selvagens" do portal do Colégio de S. Gregório, de Valladolid (Ferdinand et Isabelle, Paris, 1932). De um modo geral pode dizer-se que a polissemia destas e doutras figurações, simultaneamente esconde e impõe um sentido às respectivas culturas. E através de significados discutíveis que terá de ser abordado o respectivo conhecimento científico.

Na verdade, entre o índio do Brasil representado com rigor quási etnográfico num quadro quinhentista do Museu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa, e situado no lugar do Diabo presidindo ao Inferno, e o "personagem" Adão-e-Eva no Paraíso Terrestre, pintado segundo Vasari para o Rei de Portugal por Leonardo da Vinci, duas concepções opostas, duas teologias se afrontam – que elas também denunciam o contacto cruciforme a que se refere o autor de Os Factores Democráticos na Formação de Portugal. Na verdade, tratar-se-ia apenas dos primeiros sentimentos ou sinceras convicções de uma diferença mal definida, mal enquadrada. Quando muito, isto teria dado lugar em certos casos a uma consciência dilacerada, (A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto por exemplo). E aí sim, Portugal se abria à Europa, à dialéctica do Senhor e do Escravo… E às "luzes" (de Diderot).