(In)Finda (Hors-Série da revista Fenda)
Janeiro de 1983
[Excerto]
Republicado em Ser Moderno em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
"O projecto para o Pavilhão Alvar Aalto(1), a utilizar pela participação portuguesa na Bienal de Veneza-Artes Visuais 80, está já delineado com rigor matemático; será uma instalação e intitular-se-á A PALAVRA E A LETRA".
A seis meses de distância e numa reunião internacional de conspícuos Comissários, esta afirmação não queria ser provocatória mas pró vocatória…
(…)
Participaram com as suas obras e colaboraram na montagem, António Sena (pintor), Ana Hatherly (poeta visual e crítica), João Vieira (pintor, autor de performances), E. M. de Melo e Castro (poeta visual e crítico); Maria João Serrão (cantora e compositora), Lopes da Silva (guitarrista e compositor) e eu próprio (neste caso: concepção geral e performance-vídeo) – com a presença tutelar de Fernando Pessoa e Almada Negreiros (de quem se reproduziu fotograficamente o painel COMEÇAR, F. Gulbenkian, Lisboa, 1969). Começava-se com esta obra uma perspectiva (particular) dos anos Setenta em Portugal…
A propósito de precisão matemática poderíamos desenvolver aqui o problema da administração cultural e do rigor que exige o passar do artesanato à indústria, indústria cultural neste caso. (…) A sua revelação seria o ponto final de uma aposta tinha que ser um segredo quási iniciático. Digamos simplesmente o nome dessa chave a relação 9/10 de Almada Negreiros. A certeza matemática era afinal poética. A sua força vinha da melhor e mais forte tradição recente portuguesa, e através desta – Grupo Orpheu, questão dos painéis – de toda a tradição portuguesa. Porque sem tradição não há aventura, apenas mediocridade, importação e imitação. Por isso declaramos também aos ilustres comissários reunidos na sala napoleónica da Cá Giustiniani: "Nós não discutiremos a (in)fabilidade de um júri qualquer ao perspectivar os anos 70 (era a discussão vigente) porque Nós temos a nossa própria perspectiva". Antes de comunicar rapidamente os termos da chave da minha chave. (…)
A relação 9/10
Há ainda quem não tenha percebido que Almada é um percursor, que é talvez o maior percursor da modernidade. Inseparável num certo plano de Pessoa (obra profética e cada vez mais coesa à medida que se descobre e estuda, na aresta da crise da identidade, crise do Um ou soberania da escritura: A minha pátria é a língua portuguesa); Almada é o anúncio da ultrapassagem da crise da razão, a afirmação da Direcção única, o anúncio do eu-em-processo. …mas voltando à planta do Ângelo de Sousa: o Pavilhão Alvar Aalto é um pequeno triângulo isósceles, com alguns acidentes; e o principal é o seu exterior – que multiplica, e incessantemente, o número 3. Quando entramos, cada parede é multiplicada pelas outras e – como num espelho – por ela própria. Ao pavilhão corresponde o número 9 (3 × 3) – e como à lei do destino (R. Thom) ou como à regressão a uma estrutura ausente (U. Eco), havia que lhe opor a ordem da paridade, sub-múltiplo do 10… desde então as paridades vieram em catadupa, mesmo algumas não-imediatamente voluntárias:
1ª paridade: Ao secreto do sinal (painel de Almada, alusivamente presente em reprodução fotográfica) opunha-se o blow up de um "poema-desenho" de Melo e Castro, proibido pela censura em 1968 e que jogava com a palavra SILÊNCIO. Em prolongamento deste blow up, a participação propriamente dita deste autor, baseada na luta de sinais e contra-sinais inscritos nas paredes de Lisboa depois de 1974.
2ª paridade: As letras "moles" em polieturano do João Vieira (que datam de 72; as letras "duras" de 70) que se opunham, por um lado, ao tecto "duro" de Alvar Aalto; por outro, em "basso continuo" como virá a dizer Dorfles, a todas as outras obras ou reproduções da instalação; opunha-se a des-escrita do António Sena. oposição mole/duro; letra/fonema ou mesmo letra/palavra.
3ª paridade: À escrita (inventada, não-escrita) de Ana Hatherly
4ª paridade: Ao silêncio da escritura ("escravatura" diz a Ana), opunham-se a sonoridade e o gesto in promptu dos músicos (registados no vídeo ): origem da semiótica – na acepção da Kristeva.
5ª paridade, e a mais clandestina: À minha concepção rigorosamente, catastroficamente matemática (ou poética) opunha-se a contribuição e a liberdade dos vários participantes, baseada no segredo da chave final (ou anterior); assente em acordos mais ou menos íntimos com cada um e no meu íntimo saber dos seus fazeres. Aqui o jogo de espelhos é infinito: escrevi ensaios (na Colóquio) sobre Melo e Castro, Ana Hatherly e João Vieira; a Ana entrevistou-me para a TV, e ali expus-lhe as "razões" que explicavam outra ordem de precisão matemática na minha exposição "A Tradição como Aventura"; a contribuição do António Sena, o mais novo de todos, para a exposição "Alternativa Zero" foi a que mais me tocou: era uma des-escritura de todos os avisos, circulares, palavras (escravatura) que eu tivera que engendrar para que houvesse a suspeita de uma "alternativa" ao "zero".
(…)
- O Pavilhão alvar Aalto, única obra em Itália do grande arquitecto, posto à disposição da Bienal, foi cedido a Portugal para assinalar o 25 de Abril de 1974.