Bibliografia

Almada, Um Nome de Guerra

Revista Arquitectura, n.º 110
Agosto de 1969

[Excerto]

Republicado em Almada, Um Nome de Guerra [catálogo], Porto, Fundação de Serralves, 2011


No início deste ano lançámos uma campanha cujo objectivo mais em evidência seria a realização de um filme sobre Almada Negreiros. Associados nesta campanha ao José-Augusto França, e a um decidido grupo de apoio constituído principalmente por elementos da jovem critica e alguns antigos e actuais alunos do Curso de Formação Artística, desde o início tentámos esclarecer: mais do que um filme, era de um processo, de estudo, crítica e intervenção, que se tratava. O processo e a produção do filme estão em curso. Para parafrasear e traduzir uma já célebre expressão americana, diríamos que está em curso um caso de cinema em acção, mais do que um filme. Adiante nos justificaremos sobre a insistência nesta expressão. Lançada a ideia inicial, logo aderiram a ela um grupo de professores e de jovens artistas do Porto (entre os quais o falecido Arq. Carlos Ramos, na sua qualidade de Director do Centro de Estudos da ESBAP, e o escultor José Rodrigues), e a maioria dos artistas modernos convidados a oferecer obras suas. Estas obras foram "trocadas" (em sessões estilo leilão realizadas no Porto, Cooperativa Árvore; em Lisboa, Sociedade Nacional de Belas Artes; e, logo depois, em Aveiro, Biblioteca Municipal), e o resultado dessas "trocas" está agora a ser trocado por película, serviços de laboratório e outros. Alguns elementos do "Clube dos 100×100", e outras entidades particulares, ofereceram também a sua ajuda. E o "filme" nos aspectos material e técnico, forçosamente dispendiosos está a ser produzido com o resultado de tais ajudas. Porém, este é apenas um dos aspectos do processo a que nos referimos. Entretanto algo mais se passou, cuja importância se poderá deduzir, por agora, de um simples enunciado. Na SNBA, e integrado nos cicios de lições do Curso de Formação Artística, o José-Augusto França realizou uma série de lições, examinando os vários aspectos de Mestre Almada (em especial, o romance e a pintura). Associadas a esta série de lições e a sua importância na modernidade portuguesa, foram feitas três palestras sucessivamente proferidas por Jorge de Sena (a poesia), Ernesto de Sousa (o teatro, e o Almada "actor total"), e José Blanc de Portugal (a "paixão" numerológica do autor de Mito Alegoria Símbolo). Realizaram se ainda na Galeria Dominguez Alvarez, na Cooperativa Árvore e na SNBA, várias mesas redondas, nas quais participaram José Augusto França, Francisco Bronze, Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes, Vítor Silva Tavares, José Pacheco Pereira, Joaquim Vieira, Ernesto de Sousa, e muitas das pessoas que a elas assistiram. As mesas redondas, aquelas lições e palestras foram gravadas, e projecta-se, juntamente com outros elementos do "processo fílmico", a sua publicação em livro. (…)  

Mas afirmamos que o fiIme que se está fazendo, na expressão feliz do Vítor Silva Tavares, a que chamaremos ALMADA, UM NOME DE GUERRA, pretende ser mais do que um filme. Poderíamos simplesmente acrescentar que o filme, o fazer do filme, pretende primordialmente provocar um processo, o Processo descrito. E desde logo nos colocávamos numa posição polémica: o filme, em si, não interessa ou interessa pouco. Importa porém explicar que não se trata de uma pretensão de circunstância, que ela corresponde a preocupações de fundo, e que, invertendo os factores, o filme, o próprio Almada Negreiros, constituem, para mim, originária e principalmente, não um fim, um objectivo, mas princípios, Que princípios e para principiar o quê?
O princípio de uma revisão crítica da cultura e da arte portuguesas, com base numa das mais extraordinárias das suas personalidades primeiras, o romancista, poeta, pintor e ensaísta Almada Negreiros? Certamente. Isso é o que já está em curso, e que, poderá concretizar-se utilmente com a publicação de um livro colectivo, e com o próprio filme o qual, como já foi anunciado, pretende assumir um carácter crítico. Mas na verdade, e mea culpa, as nossas ambições são maiores.
Pretendemos com este filme pôr em causa os próprios fundamentos do que se tem considerado ser o cinema e a própria arte. Uma atitude de anti-cinema não é original mas é necessária, e talvez seja original e necessária entre nós. Com efeito, enquanto, hoje, certas questões, outrora estéticas, se tornam adultas e responsavelmente… éticas, vive-se em Portugal, relativamente ao cinema, pelo menos, num infantilismo pseudo neo-romântico de amor pelo cinema que oscila entre a ignorância e a inconsciência (para não falar no carreirismo, que é outra história). Para dar um exemplo só: o amor pelo cinema e o desprezo pelo teatro, tão comum entre os nossos «jovens» cineastas. Depois de Brecht, e da sua repercussão, apaixonante e discutível, na obra de um Godard; depois dos happenings e do "Action Theatre"; depois de toda a revolução e meditação propostas pelos dadaístas e neodadaístas, e propostas também, num outro meridiano, pela Bauhaus e sua geração; depois de toda esta evidência de uma alteração necessária da nossa relação objectiva com o mundo, tal desprezo pelo teatro se não é oportunismo, pode reduzir se a um triste caso de provincianismo pacóvio, e, geralmente, pedante.
(…) É no meio de tudo isto, agora e aqui, que devemos utilizar o cinema para lá do cinema, numa acção cinema, que nos ponha de modo evidente barroco (para além mesmo da razão crítica), em face de nós próprios, como actores totais, totalmente responsáveis: "Nós somos realistas, queremos o impossível." É aqui que cabe perguntar: Porquê Almada Negreiros, num filme destes? Poderíamos responder simplesmente: porque não? Mas as razões positivas são pelo menos rápidas de enunciar: Almada Negreiros é o mais contínuo contraditório e vivo artista português, que hoje e aqui, e "sem mestre", como gosta de dizer o José Augusto França, tem resistido ao epigonismo e às classificações fechadas dos géneros artísticos e dos meios artísticos. Eis por que Almada, Um Nome de Guerra, que pretende ser um filme não-filme, aberto a mais do que um processo, além do processo espectatorial (aberto também), é um filme com o Almada e não um filme sobre o Almada. Diríamos melhor: com o nome do ALMADA, porque efectivamente se trata de UM NOME DE GUERRA.