Registo aúdio, Lisboa
Dezembro de 1969
[Excerto da transcrição]
Na impossibilidade de vos escrever uma carta, ou um relatório, mando-vos por esta via, algumas considerações necessariamente desconexas, poderíamos mesmo chamar o resultado de uma insónia que esperemos que seja utilmente aproveitada.
Tenho trabalhado convosco naquilo a que chamámos “exercício de comunicação poética NNEA”, antes ainda das férias de Verão, chegados a estas, já tínhamos bastante trabalho adiantado. À excepção de duas semanas em que estive ausente em Itália, foi pela minha parte, para convosco um trabalho contínuo, invasor de muitos dos meus outros projectos e actividades, e ao qual tenho dedicado portanto, não só, uma grande parte do meu tempo como das minhas intenções e esperanças.
Serve apenas para sublinhar a seriedade, a importância decisiva e a gravidade do que tem sido para mim, do que espero seja também para vós, este trabalho. Há muito a dizer sobre o fim e sobre os meios, muito e nem sempre facilmente pois que fins e meios, pelo menos neste caso particular, deveriam tender, eles próprios, para uma indistinção: o trabalho final deveria ser aberto e portanto processo, e o processo que nos conduz ao trabalho final, que nos conduz ao exercício, deveria ser já ele, fim. Neste sentido, a observação de um de vós que agora a fase da experiência do nosso trabalho junto do público se sente mal, a observação sobre a qualidade que para ele revestiu o trabalho anterior a esta fase actual, qualidade essa que considero uma das estimulantes da sua vivência, é bastante importante, mostra aquilo em que creio que nós temos estado empenhados, com mais ou menos consciência, a de que não se trata apenas de ensaiar um espectáculo, mas já por um lado a praticar um espectáculo total, e por outro lado, muito simplesmente, a atingir os fins através dos próprios meios, ou nos próprios meios.
Exercício de Comunicação Poética, suponho que esta expressão não carece de rigor e se não carece de rigor devemos analisá-la rigorosamente.
Não se trata de um exercício de comunicação de poesia mas de um exercício comunicação poética. Neste sentido, o acento é posto não sobre a poesia mas sobre a comunicação. O importante não é a crítica de arte, a literatura, etc., não é a poesia, é a comunicação.
Que ela seja poética também não é indiferente. Neste sentido também, a poesia é um ponto de partida para o poético. Poderia ter havido outros pontos de partida obviamente. O ponto de partida no entanto mais lógico e direi com rigor também mais didáctico, foi aquele que nós escolhemos, a poesia.
Neste sentido, do nosso trabalho não estão ausentes um certo número de preocupações didáticas, e não é por acaso, há muita coisa que não é por acaso, que se começa em Almada Negreiros, se passa para Cesariny e se termina, espero que provisoriamente, numa certa fase de Herberto Helder e Luísa Neto Jorge. Na verdade, e neste sentido, este exercício também é aberto. Deveria ser continuado por outros, que, entre outras coisas, continuavam a utilização assim, intencional, de uma certa poesia no tempo.
Não é qualquer poesia, nem tão pouco qualquer poesia moderna, mas uma certa poesia que possa ser entendida dentro do mesmo espírito de hoje, ainda quando, nos casos adoptados não se trate verdadeiramente da última poesia que se está fazendo entre nós, de resto, estes aspectos são ainda propriamente os que dizem verdadeiramente respeito à poesia e não ao poético.
O poético, o carácter poético de que se deveria revestir a nossa comunicação, eis, a meu ver, um dos veículos motores da compreensão do nosso trabalho e dos nossos objectivos.
Creio que isso esteve sempre patente nas nossas conversas e nos nossos actos. Peço também que leiam com muita atenção o programa, está lá tudo, e nenhum de nós desconhece desde há muito, os textos do programa, inclusive os textos dispersos, propositadamente mal ordenados, depois voltaremos a este propósito, que eu não quis assinar, mas que efectivamente são meus, apenas espero na redacção – não os quis assinar porque suponho que o são nossos, aí se diz, a poesia coisa, a poesia ferramenta, a poesia arma, etc.
Quando a poesia é utilizada desta maneira que ela é, passo o jogo de palavras, poética, fora isso, é um género literário artístico ou coisa parecida que a mim pessoalmente não me interessa, interessa aos críticos de literatura, aos críticos de arte, adiante.
O que entender de uma comunicação poética? É antes de mais nada, uma comunicação, isto é, um esforço para romper um espaço de indiferença entre um emissor e um receptor. Nós fomos mais longe. Nós quisemos que a diferença entre o emissor e o receptor fosse provisória, e que o receptor, neste caso, os participantes convidados, se transformassem, ou sentissem a necessidade de se transformar eles próprios, em emissores. Isto nunca poderia ser senão uma provocação.
A opinião a esse respeito de uma pessoa como o Óscar Lopes tem uma extrema importância. Um parêntesis, sobre o Óscar Lopes não é uma autoridade que eu cito, é antes de mais nada, o crítico literário que o Óscar Lopes é, mas ainda isso seria pouco, é quem o Óscar Lopes é, e entre outras coisas alguém que veio tão de fora que até veio de fora de Lisboa, além de ser de fora de Algés, claro. Naturalmente por coincidência, por acaso, estando entre nós, e portanto alguém que pode, com um grau pouco comum de objectividade, no sentido processual, operatório da palavra, ter uma opinião que não é para respeitar como a de uma autoridade mas que é para considerar como a de um objecto precioso. Apraz-me, e julgo que nos deve aprazer e orgulhar a todos que a opinião do Óscar Lopes. E julgo que vem exacta e rigorosamente ao encontro do que podem ser os nossos anseios, dúvidas e objectivos mais sérios, mais sinceros. Para Óscar Lopes a primeira coisa que se pôs foi que ele próprio se sentiu na necessidade de comunicar, tendo no entanto e honestamente, sublinhado com uma conversa comigo, que também se apercebeu de uma certa inibição, não que ela resultasse de defeitos do nosso espectáculo, mas do facto de que comunicar é difícil.
Neste sentido, Óscar Lopes pediu-me para conversar comigo no dia seguinte e eu, com grande pena, tive que renunciar a isso, porque deveria partir para Londres.
Aprazámos a nossa conversa para Janeiro e coisa importante, o Óscar Lopes sublinhou, eu não esquecerei, “porque esta experiência é tão nova para mim que não é fácil até lá esquecer os problemas que ela me levantou”. Acho que não é preciso fazer comentários.
Numa outra conversa com o Borga, que melhor do que eu poderá falar dela, creio que o Óscar Lopes terá posto o acento sobre os factores de comunicação, por um lado, e por outro lado pelo carácter de investigação semiológica e por ventura semântica da nossa actividade, uma coisa em termos mais comezinhos, como descobrir os sinais poéticos da poesia, sinais esses que podem tanto ser o carácter sagrado com que o Peixinho eleva ao ar uma barra de aço e a deixa cair em cima do mármore, uma estrutura musical e ao mesmo tempo um puro acto poético, que são simultaneamente rigorosos e abertos, como num filme, como num diapositivo, como numa tentativa que pode, pois claro que pode, ser até quase desastrada ou senão desesperada de comunicação através da provocação. A poesia é uma coisa empalhada ou viva, e se for viva tem que ver com tudo o que é poético, e é este desdobramento que aqui se tentou não utilizando poemas como pretexto, repito, mas como ponto de partida, supunha, e enganei-me, em parte espero, assim o espero, assim o faço, que estes fundamentos básicos e mínimos, eram claros para todos nós, espero que se tornem claros para todos nós e que já o sejam grandemente para a maioria de nós.
Quanto aos processos, quanto aos meios, que como disse também deveriam ser fins, ainda há muito mais a dizer. Fala-se em problemas de estrutura, outros, por vezes de falta de seriedade e fala-se em problemas de espontaneidade. Ora bem, creio que não seria difícil demonstrar que há muito menos acaso, muito menos oportunismo inventivo do que aquilo que aquilo que à primeira vista de um espectador, naturalmente cobarde e traidor, pode parecer. No entanto, nem tudo é, porque assim não se quis, estrutura e composição. De estrutura se pode falar também em estrutura aberta, e isso é bem claro desde 1917 desde o tempo do tempo do dadaísmo, a assumpção do acaso, a utilização do acaso são problemas profundamente sérios que têm preocupado os estetas e os operadores estéticos, se quiserem, os artistas, cada vez mais, revelaram-se de então para cá, em certas ocasiões, como os mais importantes. Peço desculpa da erudição mas este problema é antigo, desde sempre ele opõe uma arte popular e barroca a uma arte clássica que resume rapidamente académica, erudita e professoral. A arte popular e barroca desde sempre elegeu o acaso como um factor criador. O que devemos entender por isto? Devemos entender que ainda penso, e tento num entender racional, racionalista se quiserem, que no entanto, eu sei, nós sabemos, que a nossa razão não chega, não é uma grande razão. A razão é até onde podemos ir no entendimento de problemas que excedem a razão, são os problemas da realidade. Como se escreveu nas paredes de Maio de Paris “Nós somos realistas, queremos o impossível”.
O acaso poeticamente, ou melhor, de acordo com uma poética que deverá ser a nossa, é portanto a aceitação da realidade bruta, universal nas nossas estruturas. Do ponto de vista mais modesto, operatório, deixar que o acaso funcione é por um lado obrigar-nos a uma estrutura cada vez mais serrada, mais séria, e por outro, aceitar alegremente as ocorrências que surgem do próprio trabalho e do trabalho sobre o trabalho. Podia citar exactamente como exemplo disto, todos os problemas e são dos mais difíceis porque talvez sejam o clímax da nossa manifestação, todos os problemas que surgiram com o final do erradamente chamado happening, com o que se conclui o segundo tempo, mas dizia eu, poucas coisas, menos coisas do que se pode pensar, à primeira vista cobarde e traidora, são devidas ao acaso; no entanto o acaso foi sempre bem-vindo e tem que o ser desde que nós estejamos preparados para o triar, seleccionar e até para nos arriscarmos perante ele. Não vou agora fazer uma análise ponto por ponto do que já fizemos, das suas qualidades e erros, mas essa análise deverá fazer-se. E julgo que essa análise nos mostrará o pouco acaso que ainda se conserva como tal no nosso trabalho. Esse pouco acaso é uma abertura criadora.
Não é por acaso que o nosso trabalho começa e se concentra todo à volta de uma frase de Almada Negreiros. Almada Negreiros é o homem que em Portugal mais claramente iniciou um processo, em muitos pontos semelhante ao nosso. Suponho que a célebre sessão de Portugal futurista de 1917 teve já exactamente problemas idênticos aos nossos. Não é por acaso que estamos a trabalhar com o Jorge Peixinho, não é por acaso que o Jorge Peixinho se entusiasmou por este trabalho, não é por acaso que conseguimos reunir quatro músicos profissionais, alguns dos quais, um pelo menos, nunca terá trabalhado nestas condições, não é por acaso que a Helena Cláudio, é a segunda vez que trabalha comigo, a Clotilde a segunda também, e o Peixinho a segunda também, não é por acaso que estas são as pessoas que estão a trabalhar connosco, não é por acaso que eu e o Jorge Peixinho nos entendemos bem, não é por acaso que ao longo dos anos temos, eu pelo menos tenho, voltado a entender os problemas que nos devem ser comuns, sendo para mim mais difíceis não ver a música de fora como um espectador cobarde e traidor, deve ser por isso, ou como consequência disso, que o Jorge Peixinho numa análise da música do novo cinema português declarou publicamente que a única honesta era a do meu filme. Não digo estas coisas para decorar nenhuma pílula, mas para vermos e termos plena consciência que neste processo que é o nosso, se inserem outros processos, e nomeadamente alguns que têm sido os meus. Teria sido fácil apresentar os resultados do nosso trabalho, iludindo o público, apresentando-os artisticamente sem riscos, sem os riscos que estão envolvidos em qualquer provocação, rodeando esses resultados de todas as cautelas espectatoriais normais que levariam o público a dobrar a cabeça perante a arte como se admira os monumentos e se morre.
Não é por acaso que o Jorge Peixinho com o nome que já tem, nacional e internacional, não se importa a arriscar-se a aparecer em público em camisola em vez da sobrecasaca com que os músicos normais se apresentam emoldurados. Este é um aspecto do não emolduramento do nosso trabalho. Não é por acaso que recorrendo ao cinema, não recorremos às suas formas mais fáceis de comunicação e adoptámos pela primeira vez em Portugal, que eu saiba, uma experimentação de projeção simultânea, experimentação que não organizada por acaso. Embora naturalmente, muitos estejamos a aprender, não somos epígonos, não imitamos ninguém, estamos a aprender por nós, por processos que não têm que ser inteiramente novos. Também não é por acaso que recorri para os trabalhos do cinema grandemente a um jovem como é Carlos Gentil-Homem, como o Fernando Calhau para os trabalhos gráficos. Tanto me faz que o Peixinho tenha nome internacional e o Calhau não o tenha, não é por acaso. Penso que devemos organizar o nosso trabalho com um rigor que deveria ser o dos profissionais (...) sem nos preocuparmos com essa distinção entre profissionais e amadores: eu sou um profissional, o Calhau e o Carlos em condições idênticas. (...)
Somos operadores estéticos, isto é, operários estéticos, isto é, trabalhadores, e utilizamos a estética como uma arma e uma ferramenta, tal como o carpinteiro; ou somos saltimbancos, no sentido errado e pejorativo, ou ainda com maior precisão, exibicionistas, então não temos respeito por nós próprios.
(...)
Qualquer que seja o trabalho por mais democraticamente que ele esteja organizado, o encenador ainda que ele se entenda da maneira meramente operatória, como alguém que está ao serviço da comunidade, para que esse serviço seja não só eficiente como digno, é necessário que essa comunidade o mereça.
(...)
Penso que o que fizemos é muito importante e por isso mesmo é preciso ser severo.
(...)
Entendimento que é repugnante continuarmos a dar um espetáculo e de que é nobre e incitar as pessoas a participar, mesmo que tenhamos que as provocar ou insultar, participar no teatro é o mesmo que participar na vida, etc. (...) Há muita confusão acerca do que é o happening, devo frisar que nós não prometemos happenings a ninguém, convidámos as pessoas a participar num exercício de comunicação poética. Nisto está implícito um exercício e a possibilidade de participar nele. (...) Mas voltemos ao happening: o que há nesta palavra (...) de tão forte que a torna numa palavra-força do nosso tempo? Precisamente aquilo que algumas pessoas, baseando-se apenas numa tradução literal do termo pressupõem, o happening não é a eleição absoluta do acaso, da surpresa pela surpresa (...). De um modo geral, o happening visa a organização dos participantes numa nova liturgia (...) uma prática em pacto social, (...) o uso da provocação e da surpresa (...) como técnica.