Bibliografia

Entrevista com Ernesto de Sousa e Wolf Vostell

Michel Giroud, Canal, n.º 29–31
Julho–Setembro de 1979

[Excerto]

Tradução portuguesa por Maria Nobre Franco.

– Este grupo de artistas portugueses de Lisboa, Porto e Coimbra reuniram-se pela primeira vez nesta ocasião, em Malpartida.

Os artistas de Lisboa pertencem quase todos à nova cooperativa Diferença que acabámos de fundar: é a continuação do cooperativa Grafil. Trabalhamos juntos desde a exposição Alternativa zero.

Malpartida conseguiu, e é esse um dos seus êxitos, que pudéssemos trabalhar em conjunto, com os artistas de Coimbra e do Porto, pela primeira vez. Durante uma semana, vivemos um novo espírito. Na preparação da Alternativa, ainda estávamos dispersos; em Malpartida, pudemos de facto conhecermo-nos melhor, em função de um trabalho comum, num ambiente amigável.

Eu sou ao mesmo tempo criador e animador; preparo um livro sobre arte portuguesa que é uma recolha dos meus artigos. Em Portugal, fazem falta revistas e edições. Acabam de desaparecer a colecção Futura, assim como a colecção Poesia Documento de Melo e Castro. Só nos resta a revista Colóquio, financiada pela Fundação Gulbenkian. No livro que estou a preparar, insisto na transformação radical que está em curso. Quero falar, muito justificadamente, da geração que sofreu o fascismo e mostrar, de uma forma clara, as linhas dinâmicas de hoje, com serenidade. Tanto na Alternativa, como em Malpartida, tivemos uma demonstração prática das possibilidades de reunir os velhos e os novos (a tradição e a vanguarda). Não discutimos as tendências estéticas, as diversas vias. Nisso, estamos próximos do conceito de Fluxus. Interessa-nos uma qualidade de obra, não uma estética. Experiências diferentes podem ter em comum qualquer coisa de fundamental; as tendências já não se devem opor dogmaticamente, como nos anos vinte ou trinta ou ainda, nos anos cinquenta/sessenta. Essa trapalhada acabou. É preciso tornarmo-nos flexíveis. A precisão é uma questão fundamental. Não podemos opor a qualidade ascética da arte minimal à exuberância de Vostell. Eu penso que existe em Portugal um espírito ecuménico, que vem da época dos descobrimentos. Não somos racistas e estamos abertos tanto a África como à Índia ou à América, sobretudo através do Brasil.

– O que é que pensas de Malpartida?

Em 1978, fiz uma exposição na SACOM 1, com documentos sobre a arte portuguesa actual, da Alternativa: O meu corpo é o teu corpo, o teu corpo é o meu corpo – experiência de convívio. Era o único português.

Conheci Vostell em 1977, por ocasião da inauguração de Malpartida e foi uma amizade fulminante. A personalidade de Vostell é muito individualista, quase megalómana, mas tem qualquer coisa de espantoso que é o seu sentido de amizade e a sua fidelidade. Em Malpartida, instala-se uma nova experiência ligada ao meio, ao local, com uma continuidade possível. Tudo no mundo é efémero. Em Malpartida, há uma certa perenidade e isso, é graças à personalidade quase épica, medievalesca, de Vostell.

– Vostell inscreve-se numa grande tribo que ele suscita desde sempre: ele representa uma procura permanente da renovação.

Vostell compreendeu, desde há anos, que era preciso haver renovação. Foi ele que procurou uma inserção regional.

– Mas desde há vinte anos ele sonha com essa academia ideal, flexível, aberta a todas as inovações: basta ler os seus projectos. Aqui, ele realiza a primeira fase da sua utopia, ligando a vanguarda e a tradição, a informação e a educação.

É o grande sonho dos artistas, creio eu, mal eles têm consciência da sua individualidade. No final do século XVI, quase todos os artistas sonharam ter o seu palácio das artes, para eles e para os outros (basta ler Vasari) .

– Hoje, o mecenato mudou: as municipalidades tornaram-se os novos mecenas, quando os presidentes das Câmaras têm capacidade e fôlego. Em Malpartida, esta experiência foi possível graças à conjunção de Vostell e do Presidente da Câmara Lancho Moreno.

Vivemos num ambiente de amizade, de festa e de trabalho. Os mais individualistas (talvez habituados a se protegerem) revelaram, depois, efectivamente, uma consciência colectiva. Já não se pode separar o produto do indivíduo. Agora, devemos sempre julgar um conjunto, a obra e a vida: critério ético. Por outro lado, a vida do campo já não existe: vivemos uma civilização urbana até no campo ( pela presença da tecnologia e do vai e vem cidade-campo). Mas temos que lutar pela perseveração dos lugares, ao mesmo tempo que se evita a mistificação de um regresso ilusório à natureza (que é o sonho dos urbanos motorizados).

– Quem é que descobriste?

Juan Hidalgo, um dos fundadores de um grupo de música-acção paralelo ao Fluxus, o grupo Zaj. No início, senti-o um tanto desconfiado, mas depois ele mergulhou totalmente na experiência da semana. O concerto Fluxus que ele organizou no teatro foi magnífico de humor e de rigor e a maior parte das peças foram perfeitamente assimiladas pelos habitantes da aldeia ( A Maçã, 13, Sangue e Champagne, Nívea, Tossir).

Vivemos uma invasão de pessoas: prevíamos uma dúzia de participantes, mas com os amigos, chegámos a uns trinta portugueses. Hidalgo veio com os seus amigos: Llorenç Barber ( músico, fundador do grupo Actum em Valência ), Gil (artista das Canárias), Nacho Criado (artista visual e performer, de Madrid).

A documentação em fotografia foi feita por um artista de Lisboa, Monteiro Gil, da cooperativa Diferença; pudemos beneficiar do vídeo da Galeria de Belém feito por João Vieira.

Malpartida terá prolongamentos com o projecto do Centro criativo e dos encontros internacionais que estou a preparar para 1980, em locais diferentes, sem dúvida extra-europeus. O artista hoje deve tornar-se o novo xamã. A arte moderna está ligada ao poder; ela é chamada cada vez mais a ocupar um serviço social. Mas é necessário que ela conserve a sua autonomia. Estamos no centro de uma nova batalha do espírito. É inútil destruir a fábrica ou a instituição: é necessário utilizá-la como um instrumento, com lucidez. Aqui, Vostell deu-nos um exemplo.

Eu gostaria de organizar um encontro “médicos-medicina-artistas”, em África. Temos que começar a sair do nosso pequeno mundo estreito e ver as transformações a nível planetário e local. Malpartida é uma antena e um radar. (...)