Bibliografia

Artes-da-acção ou Performances (Performing Arts)*

Diálogo sobre Arte Contemporânea (Teatro, Música, Performances), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/ACARTE 
1985

"I will cry unto God that performeth all things for me"
(SALMOS) (1)


Na década de 50/60 tomava-se consciência plena da ambiguidade que caracteriza a definição de uma fronteira entre o que seja considerado como arte e a própria vida. Um dos focos mais importantes desta consciencialização gerou-se à volta das lições e experiências do compositor americano John Cage no Black Mountain College e na New School of Social Research, Nova Iorque.

Operadores estéticos como Oldenburg, Rauschenberg, Allan Kaprow, Merce Cunningham, George Segal, David Tudor, Earle Brown, etc., reuniram-se num grande movimento a que em breve se juntaria uma ala europeia com Maciunas, Jacques Lebel, Filliou, Vostell, George Brecht e· até o Grupo Gutai, no Japão. Uns e outros procuraram a participação daqueles que até então se tinham limitado a ser aparentemente meros espectadores. Foi a época dos happenings, actions, events, installations... assemblages, environments, etc. Para algumas destas actividades há perfeitos correspondentes nas linguagens europeias e especialmente no português, tendo-se também criado outras expressões como ambiente, arte pobre, etc.

Mas, evidentemente, a designação é secundária, e muitas outras origens se poderiam apontar para este movimento, como o cinetismo. A noção base, aquela que ainda hoje é de extrema actualidade, é a de participação. A participação que foi também avidamente procurada noutros meios como o teatro (evolução de Berthold Brecht ao Living Theatre) teria, de resto, uma complexa e variada história culminando nos anos 60, numa profunda crise, que não era só estética mas social e até política (p. ex., as acções de rua no 1968 de Paris e os vários movimentos underground na América e noutros locais).

A crise de confiança que os operadores estéticos sentiram relativamente às várias modalidades de participação pública, a resposta consistiu num voltar a página aos processos clássicos da catarse espectacular. Foi mais ou menos por esta altura que começou a ser utilizada a palavra performance que por sua vez se ligava a outras experiências como a land art e a body art.

Os "artistas" (voltaremos a chamar-lhes assim com a certeza porém que a diferença entre artista e não-artista continua a ser uma problemática), fizeram face a essa crise de uma maneira bem clara: em resumo, dando o corpo. Por vezes até à crueldade, por vezes enveredando por uma via agudamente conceptual. A história é longa e riquíssima nas suas diferentes modalidades. Digamos só que como em qualquer movimento artístico, às performances corresponde uma onda de mediocridade, de pessoas que tomaram a licença poética por ausência de esforço e de compromisso. 
Em particular esta noção (dádiva) não pode nem deverá confundir-se com qualquer variante de striptease... Na verdade, um artista dá sempre o corpo, dá a palavra, dá o olhar, profundamente, para lá das: épocas e das definições das diferentes correntes.

                                                               DÁ DI VA

                                                               DA VI DA

"Cada olhar é uma teoria sobre o mundo!" Esta afirmação de Goethe é sempre válida, mas... sempre contraditória e paradoxal. De facto, como toda a teoria, ela tende à universalidade, à globalidade, não pode deixar de incluir nos seus próprios axiomas e princípios indemonstráveis. E ainda: como desligar o olhar dos gestos e das palavras que os sustentam? Eles são inseparáveis; são voluntária ou involuntariamente (não) ingénuos: preparam, provocam, um logro, um espanto sobre o mundo. Um espanto!

Tu levantas a mão, olhas o Outro, performas o Amor nesse teu clamor ou simples saudação. Ao fazê-lo não és ingénuo, nem ignoras os códigos, preceitos e preconceitos que permitirão uma adequada leitura do teu gesto, mão fechada como um punho, ou aberta como folha de plátano. Mas tu também. és ingénuo, porque o teu gesto-olhar tem que ser espontâneo, quase infantil… sinceramente voltado para o futuro.

Inventar o futuro: porque certamente tens um futuro para inventar, venha o que vier, céu aberto ou, inferno! Céu aberto, aplausos não apenas mundanais... Parabéns, mas prepara-te para a fase seguinte que talvez venha a ser o Inferno, talvez a origem do futuro. Recomeçar não é fácil, rever ou redizer todas as marcas, todos os emblemas, todos os signos da terra, do céu, do teu próprio corpo. Dar a mão à palmatória, reconhecer a própria ignorância. Ficar de novo à beira do cutelo, de olhos fechados decididamente à procura de mais uma fenda na muralha. Não é fácil... Mas para inventar um futuro não há outra saída: o futuro só pode ser performado.

Palavra, olhar, gesto? Eis a origem de algumas das nossas perplexidades actuais, a pergunta de todas as perguntas. Parece e-vidente que a visibilidade não é primeva: tudo o que se vê é falso ... Nem a luz de Parménides se referiria à imagem exterior das coisas: e qualquer atento leitor de foto-novelas concordará que se trata de luz interior sempre que alguma coisa se ilumina. E quanto à Assunção da Virgem de Ticiano, o que diríamos?… É a luz interior que está no perfil de qualquer pergunta, nas dobras de qualquer representação. É ela que ilumina ou se confunde com qualquer resposta; ela é conjuntiva com todos os problemas, mesmo que a sua forma seja o silêncio.

A imagem interior ou a respectiva escrita (ou a inscrição no espaço), o imaginário, e ainda todos os sonhos... são simultânea e contraditoriamente a sombra do Verbo e a indicação do Lugar mesmo que este seja desértico, dilacerado e nocturno, no agora e aqui que apenas somos, criados ou criadores, artistas ou amadores. (Contraditoriamente, porque de facto somos o que somos apenas na resposta do Outro, na distância, no futuro ou no passado, absolutamente ausentes.) Arte e não-arte. Arte e vida. Participação. Autor, actor, espectador. Obra de arte e acto estético. Todas estas categorias – sabemos isso depois dos modernismos todos e dos depois-do-modernismo – pertencem ao mesmo tema de vasos comunicantes. E sempre pertenceram, ressalvando a já referida balança passado/futuro. Isso explica a frase de um grande ensaísta dos nossos tempos: "A minha vida é, em si própria. uma performance – da qual eu dou alguns traços, algumas relíquias. Perdemos o Paraíso? Trabalhamos agora para o reencontrar. O que vamos fazendo é apenas um ensaio geral."

* Nota sobre a palavra performance – Não se trata de uma palavra de origem anglo-saxónica, como geralmente é aceite. Esta palavra vem duma língua românica (latina). Segundo diferentes opiniões eruditas, tratar-se-ia do italiano arcaico ou do francês arcaico: «per formar», acabado de formar ou formado de novo. Além desse engano quanto às Origens, o significado corrente também nos interessa: Sucesso alcançado por um atleta, um corredor, ciclista, automobilista, etc. Sucesso, êxito no mundo do espectáculo. Cada uma das melhores velocidades ou marcas obtidas por um corredor (animal ou homem), um automóvel, um navio, um avião, etc. Recentemente esta palavra tem sido empregada no mundo das artes, depois de terem tido muita utilização palavras como happening, event, assemblage, environment, etc.

  1. Como é evidente, uma adequada tradução deste passo da Bíblia não consegue evitar um certo carácter paradoxal que decorre da própria palavra performance – "Eu clamei a Deus que performou todas as coisas para mim!" O paradoxo é  inevitável  ao encontrarmos a palavra performou porque, ou ela se refere a um todo, já acabado; ou a um todo, inteiramente novo, inteiramente por fazer: o passado e o futuro, ausentes. O que ficaria no meio? Um Zero, um Deus ausente? Mas teríamos que entrar em discussões teológicas (teologia negativa), ontológicas, metafísicas e da teoria do conhecimento, em geral, que excedem esta Abertura: en-fim Abertura.