David Santos, Arqa n.º 20
Julho/Agosto 2003
Os primeiros passos de uma criança são experimentais
e por isso começam algo absolutamente novo.
Ernesto de Sousa
Numa entrevista a propósito do «exercício de comunicação poética» Nós não estamos algures (1969), Ernesto de Sousa defendia: «[…] É preciso acabar com a distinção entre a arte e a vida. Detesto espectáculos, detesto a arte… Só me interessa a vida… Gostaria da arte se toda a vida fosse arte… e é isso que deve acontecer…»1 Este desejo declarado significa, afinal, todo um programa de uma época onde a criatividade vivia de ideias e experiências limites. O radicalismo e o sonho surgiam assim como uma espécie de aliados permanentes. A liberdade total resultava então, necessariamente, numa arte do efémero, da ação e da partilha essencial da vida. «Nós somos realistas, queremos o impossível», lembrava Ernesto de Sousa, repetindo entre nós o famoso slogan da revolta parisiense do Maio de 1968.
O contributo decisivo de José Ernesto de Sousa para o desenvolvimento de uma consciência de vanguarda no Portugal dos anos 70 não sofre hoje contestação de maior — sendo antes o reflexo de uma quase absoluta unanimidade que, por certo, tanto incomodaria o próprio Ernesto. De facto, é cada vez mais evidente o valor da sua ação (ética e estética) junto da comunidade artística desses anos tão agitados política e socialmente, cenários de pequenas e grandes revoluções, como acabou por ser, em toda a sua dimensão, o nosso 25 de Abril de 1974. Contudo, nessa mesma época, Ernesto de Sousa sublinhava já algo de essencial, a necessidade de uma outra revolução, a revolução artística, social e política, de cada um consigo mesmo: «A única coisa que me interessa é a revolução total […].
Uma revolução, também, interior». Nesta afirmação era possível identificar o compromisso de uma vida, o desígnio último e primordial de uma existência que sempre se pautou pela busca de outras realizações artísticas, mais humanas e livres. Pormovia-se aí a utopia essencial em torno de um projeto renovador da criatividade mais espontânea e efémera, de partilha e comunhão de valores e experiências, marcada por um sincero e generalizado espírito de solidariedade. A defesa de uma vanguarda artística, dirigida por Ernesto de Sousa como expressão mais radical de uma outra espécie de felicidade e realização, alimentou assim um desejo — que aos poucos se tornou coletivo — de consciencialização e superação sobre as carências estruturais e, mesmo, de auto-estima, que eram próprios da prática artística portuguesa de então. Mas, afinal, de que utopia e de que vanguarda se fala aqui? Desde logo, uma utopia entendida enquanto futuro indefinido, ideal de uma matriz redentora de emancipação individual e coletiva, que alimentou a esperança de reconciliação do sujeito consigo mesmo e com o(s) outro(s), fundamentada entre a crença dos valores ideológicos que atribuem ao sujeito a condição de transformação da vida e do seu destino e a consciência maior das impossibilidades ou limitações dessa mesma ambição; vanguarda, considerada no mais amplo entendimento que o mosaico das suas manifestações autoriza, ou seja, enquanto pretenso alheamento da estrutura narrativa subjacente à tradicional historicidade da realização artística, oposição a uma metafísica da arte enquanto lugar de conciliação e catarse, como correspondência maior entre o interior e o exterior do psiquismo humano, valores defendidos, ou pelo menos fixados, no essencial, pela estética idealista do início de Oitocentos; vanguarda, assumida enquanto consciência de uma necessidade de negação e antagonismo que significa, ao mesmo tempo, reforço de um território, poderíamos dizê-lo, de autocriação, espécie de ruptura controlada, onde se mantém o paralelo evidente com a estética do Romantismo nomeadamente, no desenvolvimento do «mito da originalidade», da criação subjetiva e sem modelo, definida por Rosalind Krauss enquanto pretensa e ingénua procura de um estado puro, o zero, a raiz, ou o princípio, esse novo que funciona então, sobretudo na ótica de Ernesto de Sousa, menos como móbil, como rejeição da tradição e do passado, de um progressismo civilizacional e artístico, mas mais enquanto exacerbação da ideia de origem, causa, razão. Ou, como nas palavras da teórica norte-americana: «pela originalidade inicia-se uma metáfora organicista referida não tanto à invenção formal, quanto às fontes de vida. O eu como origem, salvo de contaminações pela tradição, salvo porque possuidor de uma espécie de originária naiveté.»2
Por outro lado, em Ernesto de Sousa convergem ainda as dimensões mais utópicas do espírito vanguardista, de uma vanguarda que evoluiu ao longo do século XX, de um modo parodoxal, sobretudo como equilíbrio entre a rutura e a continuidade de uma herança, em permanente e estonteante abertura de experiências estéticas e processos ideológicos análogos às anguardas político-revolucionárias que alimentaram o primeiro quartel do século passado, enquanto resultado mais imediato das teorias socialistas desenvolvidas durante as manifestações sociais do final do século XIX. Vanguarda identificada também na arte do pós-guerra, entre as décadas de 1950 e 1970, reforçando e ampliando o vasto espectro das noções de experimentalismo em arte, na exponenciação extremada do conceito de obra (aberta, como proposta de Umberto Eco 3), na profusão de uma interdisciplinaridade onde se revelam os valores de uma autocrítica da arte e do artista, como sintoma da «morte do autor» preconizada por Roland Barthes, em favor duma autoria da receção, experimentada na desvalorização da interpretação estritamente individualizada na origem de um «produzir», sublinhando antes uma arte enquanto ideia e ação, num processo generalizado de desmaterialização da obra de arte, sintoma maior de um desejo de aproximação radical entre a arte e a vida.
Ernesto de Sousa foi decisivo, antes de mais, pelo processo de descoberta em Portugal dos sinais de uma vanguarda entendida como «work in progress» e experiência de liberdade, investigação e invento, participação coletiva e festa. Essa consciência da partilha de um olhar estético plural e livre (popular e/ou erudito), resulta então, para o realizador de Dom Roberto (esse filme charneira do cinema novo português), numa inevitável dissidência com as formas mais tradicionais (no sentido elitista da autonomia da arte) de produção e fruição do objeto artístico. Nesse sentido, ele repetia muitas vezes uma célebre frase de Franz Fanon: «Todo o espectador é um cobarde e um traidor». Tal como sugere o título da exposição, Do Vazio à Pró-vocação, organizada em 1972, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, por Ernesto de Sousa, era afinal a participação ativa do recetor que se pretendia com essa «arte-processo» (ou process art). Pairava no ar esse «espírito Fluxus» que promovera a dissolução da obra de arte na ação e na vida. À contemplação passiva opunha-se um esforço analítico e de participação que exigia uma maior e decisiva cumplicidade entre os espectadores intervenientes e os «operadores estéticos», como então se dizia. A atitude transgressora do movimento Fluxus (tendo Ernesto de Sousa desenvolvido contactos epistolares com artistas como Joseph Beuys e ainda profunda amizade e comunhão com figuras tão determinantes para esse movimento como Wolf Vostell, Robert Filliou ou Ben Vautier), assim como da earth art, land art, performace e body art, e ainda de todas as variantes do conceptualismo emergente, desencadearam nessa época uma verdadeira atmosfera (essencialmente utópica…) de superação absoluta dos limites da instituição arte, fazendo eco na famosa expressão de Harald Szeemann: «Percebe-se perfeitamente o desejo de fazer explodir o triângulo internacional da arte: estúdio-galeria-museu».
Todavia, e apesar de os resultados artísticos mais decisivos desse contexto revelarem afinal, e paradoxalmente, uma temporalidade bastante curta e terem sido ainda objeto de uma perfeita assimilação museológica, inclusivamente aqueles de carácter mais efémero ou contestatários do sistema político, económico e artístico vigente, podemos afirmar que, na assunção da arte portuguesa do século XX, Ernesto de Sousa representa uma consciência ímpar, fundamentalmente no que diz respeito ao desenvolvimento de uma atividade crítica, didática e pedagógica, que introduziu entre nós as referências essenciais dessa vanguarda internacional dos anos 60 e 70. A sua ação revelar-se-ia pioneira e, tanto mais importante, quanto assumida essencialmente como valor crítico e de resistência, realizada num país, até então, praticamente isolado da informação e do debate estético internacional, inocentemente afastado de uma maior consideração das práticas vanguardistas que, em torno dos valores experimentais, haviam transformado, nas suas premissas e resultados, o contexto de produção e receção da obra, bem como o conceito de arte em geral.
Entre a «metáfora do zero» e a transparência teórica, a participação e a festa, a criatividade e a celebração do convívio humano, ou a formação aberta e nunca dogmática dessa espécie de reanimação da «inocência almadina» apontada por José-Augusto França, a perspetiva crítica que Ernesto de Sousa produziu, seria responsável, direta e indiretamente, por uma profunda transformação no modo como os valores e os desígnios da vanguarda artística viriam a ser entendidos entre nós, num trabalho árduo, porque praticamente isolado, perante o marasmo da reflexão teórica e artística que o contexto nacional então apresentava. A expressão mais evidente desse longo e atípico projeto crítico revelou-se finalmente no espaço expositivo da Alternativa Zero, em 1977, como resultado de uma atmosfera reivindicativa e poética alimentada igualmente pela Revolução do 25 de Abril de 1974. Nesse espaço de participação plural, Ernesto de Sousa confirmou-se então como voz essencial de uma nova geração de jovens artistas que, em torno das suas ideias e dinamismo, viriam a criar uma espécie de nova oportunidade criativa, experimentando para lá dos ditames académicos, sintonizando-se desse modo, e finalmente, com o que de mais «avançado» se fazia na arte ocidental.
Também na Galeria Quadrum, então dirigida por Dulce D’Agro, Ernesto de Sousa dinamizou uma ideia de vanguarda, trazendo até nós exposições e performances de artistas como Gina Pane, Ulrike Rosenbach, Silvie e Chérif Defraoui, Dany Bloch ou Fernando de Filippi. Esse mesmo espaço galerístico viria a apresentar também a sua primeira exposição individual no nosso país, em novembro de 1978. Em A Tradição como Aventura, título da mostra que apresentava Ernesto de Sousa como artista plástico, dava-se conta da reciclagem a que a imaginação criativa deste crítico-artista esteve sempre sujeita. Na verdade, depois da experiência autoral desenvolvida no cinema, com todo o seu envolvimento na criação de «cine-clubes» e na realização de um filme mítico como Dom Roberto (1961) — interpretado por Raul Solnado e Glicínia Quartim — Ernesto assumia uma outra dimensão de autoria e criatividade, mais interdisciplinar e livre de constrangimentos orçamentais. Pelo meio, e como testemunho de todo esse processo de transição artística e existencial, ficava o documentário planeado para dar a ver essa figura essencial do primeiro modernismo português que foi Almada Negreiros. De um filme documental, Ernesto de Sousa passou a um projeto multimédia (ou mixedmedia, como então se preferia dizer) onde a pluralidade de suportes utilizados privilegiava ainda uma lógica que hoje se chamaria de «instalação», criando assim uma espécie de «antifilme?»4 Esse foi na verdade o projeto que marcou a sua passagem do cinema para o mundo das artes visuais. Almada, Nome de Guerra, em projeto iniciado em 1969, resultaria sobretudo como espécie de híbrido entre esses dois grandes universos de criatividade artística, como um longo e inconclusivo work in progress.
Da ação cultural que Ernesto de Sousa desenvolveu fundamentalmente entre o dealbar da década de 60 e meados dos anos 80, resulta lógica a confirmação de um pensamento crítico onde o didatismo do olhar e da imaginação estética serviram sempre uma ampla utopia transformadora que refutava, ao mesmo tempo, qualquer espécie de elitismo mais exclusivista, dado que, da arte popular dos barristas do norte de Portugal às teorias conceptuais mais complexas de Joseph Kosuth, o entendimento e a sensibilidade criativas não tinham para ele quaisquer fronteiras ou limites pré-definidos. Para Ernesto de Sousa, tudo se definia com urgência ao convocar uma necessidade primeira e permanente: a vanguarda; pela afirmação de um desejo: a experiência de liberdade; na reivindicação de um ritual: a festa, ou a participação de uma arte feita por todos, a partir dessa plural e frutuosa ideia: a «criação consciente de situações»5. Estávamos em 1977, no período pós-revolução e a despertar para a liberdade, a ousadia, a utopia, isto é, para o espírito de vanguarda.
- Ernesto de Sousa, «Sobre “Exercício de Comunicação Poética” e muitas outras coisas» (entrevista concedida a Rui Nunes), in A Capital,(Literatura & Arte), n.º 880, 5-8-1970.
- Cf. Rosalind Krauss, The Originality of the Avant-Garde and Other Modernism Myths, Cambridge, MIT Press, 1986.
- Umberto Eco, Obra Aberta (1962) (trad. port. João R.N. Furtado), Lisboa, Difel, 1989, pp. 173-223.
- Cf. Ernesto de Sousa, «Ernesto de Sousa — um antifilme — Almada, um Nome de Guerra», in Diário de Lisboa, 15 de agosto de 1971.
- Ernesto de Sousa, «Uma criação consciente de situações — Alternativa Zero», in Colóquio-Artes, n.º 34, outubro de 1977, p. 48.