O PAPEL DAS BEEELAAASS AARRTEEESS, Lisboa, S.N.B.A.
1977
Os documentos que se seguem, e a cuja publicação dei o meu aval, fazem parte de um PROCESSO, mais extenso e profundo: A ORGANIZAÇÃO DA ACTIVIDADE ESTÉTICA, e mais particularmente ORGANIZAÇÃO PROFISSIONAL E PARA-PROFISSIONAL DO "ARTISTA PLÁSTICO"; e ainda: A DEFESA E ESTUDO DAS RESPECTIVAS TENDÊNCIAS MAIS POLÉMICAS ou DE VANGUARDA. Apesar das dificuldades de comunicação que se verificam actualmente neste domínio específico, outros documentos e outros factos serão manifestados e oferecidos ao juízo público. O domínio das artes visuais vive indiscutivelmente um período rico e confuso de ruptura. Isso é pelo menos, evidente quando social e económica que se está fazendo e se reforçará, de um modo ou doutro; e se tivermos em conta a repercussão inevitável destes factores nos fenómenos estéticos é evidente que não é necessário ser profeta para vir anunciar um "espirito novo", uma "estética alternativa". O "artista" tradicional já não está, em condições de desempenhar uma qualquer estratégia, válida ao serviço da ideologia da percepção. As disciplinas "profissionais" do passado (composição, perspectiva, desenho, claro-escuro, teoria da cor, anatomia, etc., etc.) perderam a sua pretensa categoria de universalidade invariante: são apenas verdades historicamente transitórias...
...digam o que disserem e façam o que fizerem os Professores!
Ernesto Sousa
5-XII-77
CARTA DE ERNESTO DE SOUSA À SOCIEDADE NACIONAL DE BELAS ARTES
21-VII-77
À Direcção e Conselho Técnico da Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa
Excelentíssimo Senhor Presidente,
Recebi a vossa carta n° 242, datada de 19 de Julho de 1977, e apresso-me a responder ao assunto: retirada de um trabalho meu da exposição "O Papel como suporte na expressão plástica". Em primeiro lugar devo declarar que é meu intento reconhecer a falta que me é imputada, relativamente à referida exposição e à Lei Geral. Quero também agradecer a benevolência, verdadeiramente paternal, da Vossa admoestação. Quanto é consolador saber que ainda há modos nesta terra! Assim essa Casa (Mãe dos artistas) representa e representa-se Pai na severidade benevolente.
E nós que já carpíamos a nossa orfandade...
Uma falta é uma falta, e não tem justificação – de contrário não o seria. De resto, se houvesse justificação onde é que nos iríamos desencantar este doce sentimento de pecado que reconstitui o Pai e o Filho no seu estatuto reciproco e biunívoco? Mas a falta tem explicação. Portanto, eu confesso, aceito a tão benévola punição (que nem o chega a ser), e explico-me.
O que aconteceu foi o seguinte. Movido por um irreprimível sentimento de expressividade plástica, mais propriamente pictural, eu enviei ao júri da dita exposição UMA obra, dividida em cinco partes. Significativamente essa obra intitulava-se Isto é pintura sobre papel, N.° l, N.° 2, N.° 3, N.° 4, N.° 5, 0 júri, porém, resolve mutilar a minha obra, rejeitando as partes constantes dos N.°s. 4 e 5, admitindo as três outras. Quando soube disto hesitei (e aqui começa a minha falta) sobre o caminho a seguir. Nesta altura vieram-me à cabeça os versos de um poeta outrora surrealista. Um mau conselho: "Deixa correr o cherne!" (...e assim me ia engolfando sem remédio no inferno da minha falta!). Posto isto, chegou o dia da inauguração: dia tão emotivo e excepcional para qualquer artista. Foi nesse momento que à minha sensibilidade de pintor se apresentou o execrando espectáculo da minha Obra mutilada!... Sem quase pensar (Ó Queda! Ó Falta! Ó Pecado!) retirei o que restava do meu trabalho, cuja dilaceração ofendia tanto a minha vista. Apesar desta assunção emocional e sem desculpa da situação em que me fui achado (por minha culpa! minha única culpa!!!), ainda tive tempo para pedir a um amigo fotógrafo que documentasse toda a operação, intuindo eu nessa altura, mais do que pensando, que tal guerrilha estética deveria ser mais especular do que espectacular. E de facto, diga-se a bem da verdade, tudo aquilo foi feito com uma certa modéstia, escolhendo o momento em que estavam menos pessoas na sala, procedendo com naturalidade, enfim, sem escândalo. E, ponto muito importante, prevenindo com antecedência o empregado.
Foi então que surgiria o inesperado, uma segunda parte da operação, da qual não sou autor senão segundo – o que desde logo e ainda hoje me deixa em perplexidade. A quem imputar a autoria (e culpas, por Júpiter Pai-de-todos!) desta segunda parte? Foi o caso que estando eu posto em sossego, e ouvindo as tragédias ecológicas que se denunciavam no Primeiro Andar da Casa, e usufruindo a nova ordem das coisas (embora resultante de um acto arbitrário e culposo contra a anterior ordem, mas acto individual e… artístico), vem alguém, um cúmplice!, avisar-me que por ordem de dois elementos do V. Conselho Técnico tinha sido encarregado o empregado de repor a referida obra mutilada na exposição. Desassossegado, corri para o infeliz resultado daquela ordem, não conselho, do Conselho... Pela segunda vez, e agora com escândalo e agonia, cometi o nefando acto... retirei o fragmento de pintura. Desta vez, mais indignado porque:
Porque há aqui vários conceitos de Ordem, ou ordem que convém analisar:
A "ordem do espírito associativo e com as regras”, sg. os termos da Vossa carta. Essa eu ofendi-a, confessadamente e sem desculpa. Um não-legalismo verdadeiramente des-regrado...— eu tão ligado à Casa! Mas, apesar de tudo isto, devemos (?) conceber para o meu gesto (agora desfulanizo) uma justificação complexa e milenária, os erradamente chamados "direitos do artista"? Claro que não se trata de direitos, mas de algo bem mais misterioso e profundo: a sensibilidade exaltada, o anseio criador sempre inquieto com a expressa-o (eventualmente plástica ou pictural) do Eu profundo, etc... etc... Este conflito milenar entre o indivíduo (artista ainda por cima) e a associação não deve ser, segundo me parece, inteiramente desprezado.
A ordem das coisas, a história, Ou os factos consumados. A História que apesar de todos os arbítrios e injustiças não pode voltar atrás. Assim morrem os ditadores na cama, as casas ficam saqueadas e o crime compensa; às vezes até, o Pai é ofendido sem punição. Casos extremos, cuspir na sopa, bater na avó... a ordem das coisas. Mas quem poderia e se atreveria a emendar a história?!
As ordens que dá quem tem poder para tal. Enfim é o problema do poder. Passemos sobre a uma averiguação a fazer sobre os poderes do Conselho Técnico: dá ordens ou dá conselhos? Há qualquer coisa mais fundamental que esse pormenor legalista, De facto, qualquer ordem pode ofender todas as outras. Sendo uma ordem do patrão para o empregado (do Pai para o Filho) ou é inteiramente e limpidamente justificada (inclusive sob um ponto de vista emocional e artístico) ou é um puro arbítrio, uma profunda ofensa moral à ordem das coisas, Mr. Hyde contra Dr. Jekill.
Em resumo, e sg. esta análise: eu cometi um acto contra a ordem (associativa) e de que pecador me confesso... Feliz até por poder de novo encontrar nesses Corpos (Gerentes) a pessoa do confessor. Mas a ordem do Conselho Técnico (ou de alguns dos seus elementos) é um crime contra a ordem das coisas!!! (E ainda por cima: um abuso da obediência funcional de um empregado, por definição um velador da ordem).
Porque este ponto me parece fundamental, detenhamo-nos um pouco sobre o discurso seguinte: velar a ordem. É uma função antiquíssima, presente em toda a epopeia, toda a tragédia antiga, e até, embora degradada, em todo o drama burguês: nosso crime, nosso castigo. Pergunta: na Casa Mãe-dos-artistas o velador da ordem deve só velar pela ordem e a Lei Geral; ou deve também (suma função de que ele terá sido ungido superiormente) velar pelos artistas... mesmo os des-ordenados? É evidente que esta segunda função, embora difícil, é a sua mais importante. E é também evidente que alguma coisa vai mal se meros administrativos (ou agindo como tal) incitam, ordenam!, a um velador da ordem que falte ao respeito que deve principalmente ao artista, mesmo que seja um artista cheio de sem-razão. De facto a sem-razão do artista só poderá ser julgada em alto lugar. E,isso é um Processo difícil e que – como sabemos – só terminará talvez e letalmente depois de uma longa longa viagem. Por isso nem o Papa discutiu com Miguel Angelo o martelo que este lhe atirou. Um era o Miguel Angelo, é certo, mas também o outro era o Papa! De facto quem atrai para estes abismos os veladores esta a confundir tudo, cospe na sopa, ofende o Pai – e os próprios veladores, claro!
Enfim, parece certo, alguma coisa ou muita coisa vai mal. E se a minha guerrilha sem perdão (senão benévolo) serviu ou pode vir a servir para alguma coisa, será de facto para apontar algumas coisas que vão mal:
–Vai mal a representatividade dos artistas nos júris e talvez a própria passividade com que se aceita o conceito obsoleto e arbitrário de júri;
–Vai mal, como se pode demonstrar, a incoerência de critério de entidades rigorosamente idênticas (idênticas no statu quo), que hoje recusam enviar uma obra, "porque é fotografia" para uma exposição de pintura e depois aceitam, mesmo mutilada, outra obra composta por fotografias rigorosamente ready made, como expressão plástica;
–Vai mal que o mesmo júri que não aceita um envelope como obra de arte (depois de toda a história da chamada mail art) vá aceitar uma provocação isolada e sem graça, um papel higiénico que nem sequer constitui qualquer exaltação do quotidiano, já feito, pois a alusão a uma forma feminina dada ao respectivo suporte lhe confere um carácter escatológico e pornográfico, confundindo provocação estética com provocação ordinária, etc...
Outras coisas vão mal no mesmo ano que viu aquela malfadada exposição dedicada às relações entre Fotografia e Arte (e que a Sociedade aceitou tão mal arrumadamente e sem crítica), e em que se celebra na Documenta 6, precisamente, as relações entre a obra de arte o os media. Mas eu não me estou a justificar com "o que vai mal". Estarei quanto muito a pensar (por escrito): como exercer uma crítica efectiva e um dialogo realmente valido e transformador com os meus amigos da S.N.B.A?
E não se fazem omeletes sem partir ovos. A guerrilha só encontra justificação em si própria.
Unidos Venceremos!
Saudações revolucionárias de
(assina, Ernesto de Sousa)
P. S.: Aproveito esta carta para expor o seguinte, sobre o que já tinha consultado oralmente um dos mais ilustres dirigentes dessa Sociedade. Não mais cedo que Novembro deste ano, e depois do meu regresso de Kassel, vou precisar de um espaço para expor algo que está, relacionado com a minha nova e irreprimível necessidade expressiva (de pintor). Mas parece que há uma dificuldade quanto a eu, como sócio, requisitar por exemplo a valeria de Arte Moderna que me pareceria o mais apropriado. De facto: como a exposição é rigorosamente conceptual, nenhum dos objectos a expor são passíveis de qualquer valorização em si e portanto impróprios para qualquer submissão jurídica. Até poderíamos glosar um tautologismo muito conhecido nos arraiais do "conceito" e intitular a exposição: "a arte como arte como arte", a rosa é a rosa, é a rosa, percebem? Só não o faço porque lá me vinham talvez acusar de imitação mimética dos vanguardismos internacionais. O que nunca, antes a morte que tal sorte. Portanto, atendendo absolutamente às realidades nacionais e às circunstâncias presentes (agora e aqui até já se mata outra vez em nome da ordem) resolvi dar o seguinte título à minha exposição individual de pintura: A FOTOGRAFIA E O ASSASSÍNIO. E isto – o título – é a única coisa que posso submeter a qualquer júri ou conselho ou ordenador (técnico electrotécnico, electrónico, o que for... ). Empenho nisto todo o meu brio de pintor (e não só!) e garanto-vos que é um trabalho longamente amadurecido. Agradecia pois um conselho técnico para eu poder organizar o meu calendário e respectivos cúmplices.
Mais uma vez obrigado pelas Vossas vistas largas, e mais uma vez UNIDOS VENCEREMOS.
CARTA DA SOCIEDADE NACIONAL DE BELAS ARTES A ERNESTO DE SOUSA
19-VII-77
Prezado consócio Ernesto de Sousa
A Direcção e o Conselho Técnico da Sociedade Nacional de Belas Artes tiveram conhecimento da atitude por si tomada, em Plena Abertura da exposição "O papel como suporte na expressão plástica", retirando do painel onde se encontravam expostos três trabalhos de sua autoria – trabalhos seleccionados pelo Júri e constantes do catálogo entretanto publicado.
A Direcção e o Conselho Técnico, lamentando profundamente essa atitude que desrespeita a instituição, que colide com a ordem do espirito associativo e com as regras, por todos conhecidas, que orientam a Sociedade em geral e as exposições colectivas em particular, querem exprimir ao consócio Ernesto de Sousa quanto repudiam comportamentos deste tipo, aqui tanto mais inadmissíveìs quando assumidos por uma pessoa ligada à Casa em diversas circunstâncias de colaboração e de quem seria razoável esperar entendimento correcto da natureza dos critérios selectivos – que são sempre controversos - e os princípios de organização de exposições por concurso e até mesmo de exposições individuais.
Sendo vedado retirar os trabalhos logo que seleccionados, e por maioria de razões logo que expostos e referidos no catálogo, queremos chamar a atenção do consócio para o facto de ter efectivamente violado o estatuto do convívio associativo; e, embora não desejemos propor qualquer sanção por esse facto, insistimos, isso sim, em apelar-lhe para que de futuro use o seu direito de crítica junto dos órgãos de gestão – incluindo o direito de diálogo com eles - antes de assumir emocionalmente comportamentos que lhe retiram à partida, o nosso possível acordo e maculam a sua condição de sócio. Esta posição é tomada, como compreenderá, em nome de todos os que foram intempestivamente ofendidos, sócios presentes, membros da Direcção, membros do Conselho Técnico e empregados.
Com as melhores saudações
Pela Direcção e Conselho Técnico
O Presidente