Colóquio-Artes, n.º 30
Dezembro de 1976
[Excerto]
"Se a teoria estiver certa... a obra resulta necessariamente bela" – responde Vostell a uma observação minha sobre a sua última betonagem: um Opel sepulto num grande cubo de cimento, envolvimento violentamente dialéctico versus uma paisagem selvagem e... bela, Los Barruecos em Malpartida a onze quilómetros de Cáceres. A minha observação, em péssimo espanhol, no momento de exacta emoção da descofragem final de mais aquela rocha-na-paisagem foi: "...além do mais, é bela!".
Partamos deste curto diálogo. Para o mais rapidamente possível apreender o que aconteceu em 30 de Outubro deste ano a poucos quilómetros da fronteira. Falemos da Teoria e da Beleza. Façamos, todavia, preceder esta análise de uma breve descrição.
O CENÁRIO E OS SEUS ACTORES. A Alta Extremadura espanhola que nós imaginamos um pouco como o nosso Alentejo, mas que nesta região apresenta características muito singulares. Atravessada por linhas de água que mais parecem uedes africanos, formam-se nela pequenos lagos a que os espanhóis chamam charcas. Ao redor de uma dessas "charcas" surgem os barruecos, pesadas formações rochosas de forma esferóide e origem possivelmente metereológica. No cenário que descrevemos, a charca está ainda ligada a um edifício, o Lavadero onde em tempos recuados se lavavam lãs... As respectivas ruínas são parte decisiva do cenário, como veremos.
Actores: fomos todos, "no meu teatro não há distinção entre actores e espectadores". Os primeiros "quarenta", e depois quase toda a população de Malpartida e muita gente de Cáceres.
Entre os primeiros quarenta contavam-se alemães, um polaco, um argentino, quatro portugueses, participantes de Barcelona, de Madrid; directores de galeria, operadores estéticos, críticos e jornalistas; e entre todos Wolf Vostell, pois que estávamos ali precisamente para participar num envolvimento de Vostell, nos Barruecos. No espaço que se chama o MVM (Museu Vostell Malpartida de Cáceres), aí estavam patentes também duas exposições, uma no Lavadero (futuro corpo sólido do Museu) de esbocetos de Vostell; outra no Centro Criativo de Malpartida: obras de J. J. Narbon, que é também director do Museu.
Wolf Vostell. Um dos iniciadores, talvez o principal, da prática dos happenings na Europa; Grupo Fluxus, que se pode considerar o centro das transformações reflexivas das artes-da-acção (Filliou, J. Beuys, George Brecht, Ben Vautier e outros, têm sido razão dos nossos encontros e estudos). Ben: "Tenho inveja de Beuys e Vostell". Tem-se falado a propósito de Vostell de happening político, como se alguma coisa pudesse não o ser... Mas o que é importante em Vostell é esta afirmação feita em Malpartida: "Eu defendo os Direitos do Homem". Assim: trabalhar com rigor e teimosia, no espaço que há, que tem que se inventar, entre a arte e a vida. Esse trabalho consiste, para empregar a sua linguagem, em des-colar de uma situação alienada, de um lado a Arte (e os seus Artistas) e do outro a Vida (com as suas destruições e as suas misérias).
Teoria. Ao "apresentar" Vostell dissemos o mais importante de uma situação estética que tende ao conceptual. Digamos agora porque é que a virtude máxima desta teoria tem que ser um ostinato rigor. Porque só com rigor penetramos o corpo da (nossa) realidade, porque só com rigor mesmo atravessando as águas do prazer o da paz, podemos – como diria Rafael Alberti – guardar "un ojo en el incendio"; só com rigor se pode "quedarse para ver, para morirse sin morir". Transpondo a vaga das modas e das inevitáveis influências, excedendo os modelos, Vostell traça com rigor desde sempre a sua teoria: descolar do real ("Llore La Gloria y sonria el Horror") para lutar por nós próprios (os Direitos do Homem) realmente. Muito teríamos a dizer ainda. Por exemplo, a propósito de Goya (não o dos vendedores de arte comprometida, o de Alberti, o de Vostell); sobre as raízes germano-espanholas do autor dos Desastres (modernos); sobre a modernidade... Mas falemos hoje da beleza.
(…)
Dizer "é belo, além do mais" é de facto incorrecto. A Beleza está no mais, não está a mais. E o mais em Vostell reside precisamente numa praxis que além de coerente e rigorosa, é uma descolagem para o absolutamente novo, absolutamente moderno. Onde só pela análise podemos distinguir o significado do significante. Se, por exemplo, um autor (Adrian Henri) diz: "Os planos para os seus vários happenings incluem alguns dos mais delicados e belos desenhos executados nos nossos dias", esta afirmação é apenas um sublinhado de algo mais fundo: a beleza dos projectos, ou sem mais classificar, os projectos. Podíamos ir mais longe. Muito concretamente em Vostell trata-se de descolar da beleza fascinante, perceptiva lhe chamaria Duchamp. Ora tudo isto é uma necessidade profunda nossa; a vanguarda e a modernidade não são um capricho. Profundamente viciados de espectáculo, nós hoje só vemos uma saída, e essa saída é uma Festa, a Festa. E foi por isso que participámos na Festa-Vostell.