Opção, n.º 106
4 de Maio de 1978
Como se sabe em Lisboa há duas "casas" mesmo activas em matéria de "tendências polémicas ", "vanguarda ", arte moderna, enfim... É a Quadrum e a Grafil, esta ainda com algumas contradições do passado.
Esporadicamente a Galeria de Arte Moderna da SNBA (tem agora a melhor exposição de artista português dos últimos tempos: Fernando Calhau), e com a muito boa vontade do Hipólito às vezes também a Opinião. Mas é na Quadrum e na Grafil que, a títulos diferentes, algo se está a passar coerentemente para lá da pintura-pintura, escultura-escultura. Ora foi precisamente na Grafil que roubaram recentemente uma fotografia (reprodução) de Nadar; na Quadrum que roubaram um livro-fotografia, livro-de-artista, de Silvie Défraoui. Claro, isto dos roubos não é nada bom, mas esta atenção, este desejo, que o domínio da comunicação visual e das artes plásticas já não se volta apenas para a pintura-pintura, que já se dirige a "outros meios" talvez seja de assinalar. Será que o roubo precede o mercado? Tinha uma certa lógica. Então quando os amadores descobrirem que certos artistas portugueses vendem as suas séries fotográficas, melhor no estrangeiro do que pintura em Portugal: e sobretudo que não é de obras que se trata mas de processos e respectiva documentação: enfim podemos prever que as ridículas vernissages lisboetas vão acabar; que os ignorantes, os passadistas e os ingénuos (?) vão começar a ter vergonha de se ver uns aos outros, ainda que seja só com o pretexto de inaugurar uma qualquer exposição de quadros. Tudo nos faz prever que isto está cada vez melhor...
Uma história underground
Underground, subterrâneo, fiquemos por aqui.
Uma história para variar, por e para Marcel Duchamp. Julgo que já falei nestas páginas deste artista-anti-artista. Picasso toda a gente sabe... Pois para a modernidade é mais (mais mais mais) importante que Picasso. Mais, muito mais... – e convém que os leitores comecem a fixar este nome. Cá por coisas.
Pois vou contar uma história da Marcel Duchamp. Ele é o autor da Mariée mise a nu par ses celibataires, même (A noiva despida pelos seus celibatários, eles próprios). É uma obra mais célebre e complexa, sobre a qual há mil interpretações. Uma das mais célebres é a de Schwarz, um curioso e inteligente marchand de Milão: uma interpretação psicanalítica. Durante dez anos correspondeu-se e trabalhou com Marcel: reeditou obras do grande inventor (os célebres ready-made, e fabricou a sua análise teórica. Daí resultou um livro monumental: quase duas dezenas de quilos de literatura estética e documentação. Apreciável, embora as pessoas se interroguem, aonde o Schwarz foi buscar tanta imaginação? Aqui intervêm as observações de John Cage, grande músico e amigo de Duchamp. Para Cage a obra é da autoria subterrânea (underground) do próprio Marcel Duchamp. Bem entendido ela foi escrita pelo Schwarz de Milão – que sem o saber estava a escrever uma obra (de ficção) inventada por Marcel Duchamp a partir de Nova Iorque. Isto coincide com um dos eixos teóricos do autor da Mariée: a arte deve tender a tornar-se clandestina, subterrânea, underground…
As ideias – as grandes ideias estéticas são aquelas que se insinuam underground nos outros. Claro que isto tem os seus perigos: as sementes também dependem do solo onde são plantadas.
Gina Pane
A Gina Pane veio cá, e fez performance, usando o próprio corpo – mas também o tempo – que dominou maravilhosamente, o espaço, e até as superfícies picturais, as janelas e as portas, a comunicação. Agora aparece um crítico cheio de boa-vontade a dizer que afinal o corpo de Gina é mas é um suporte (como a tela para a pintura): e outro a dizer que aquilo... vivó surrealismo. Está bem, é divertido e não faz mal a ninguém. Confusão? Nenhuma, ou melhor: só a necessária. Porque há confusões históricas necessárias. Como o surrealismo por exemplo. E certos embustes e visões parciais. Vamos andando, alguma coisa há de ficar.
Laura M.
Em primeiro lugar quero saudar o aparecimento – o advento – dos artigos de Laura M. Já era tempo: que vira e escreva por muitos anos e bons! Em segundo lugar, uma declaração: a Laura M. não sou eu. Juro. De qualquer maneira já andam para aí umas línguas a dizerem que a Laura M. é um pseudónimo do Ernesto de Sousa. Não é verdade. Por certo, ela assume os meus temas, coteja o estilo ... e compreende (bem) certas ideias. Será uma "operação estética"? Underground? De qualquer quer maneira, a verdade é que eu não me importava nada de subscrever a carta que ela enviou ao Rocha de Sousa (e foi aqui publicada na Opção – sobre o ensino artístico. Mas eu vou dar uma prova aos leitores de que não posso ser a Laura M. discordância de ideias. A não ser que tudo isto fosse encenado e planificado com antecedência. Maquiavélico…
Mas isso seria demais para um homem só. Será um grupo? E desse grupo farão parte todos? o próprio Rocha de Sousa (fazia de "prof" que sonha... ), o Eurico (fazia de "louco" surrealista e simpático que se esquecera que o surrealismo está morto, se é que não nasceu morto... e que aqui há uns tempos já declarara preto no branco que era dadaísta), o Conselho Técnico da SNBA (que fingia que era mesmo técnico), o Tempo (que fazia o papel de galeria... a tempo, subsidiada pelo Estado e tudo), os Valores Culturais (que reapareciam com a reabertura possível do mercado como o pim-pam-pum), etc. etc. Era uma peça... todos faziam parte. E chamávamos-lhe precisamente: PIM PAM PUM. O coro eram Vocês, leitores.
Da ilusão à reflexão
Voltamos à Laura M e ao ensino artístico. Uns alunos da ESBAL vieram com muito juízo defender a sua escola e os seus "profs.”. Bonito bonito, assim é que é.
Magnífica escola que tais alunos têm…
A coisa foi publicada nas páginas do Página Um; era assim uma espécie de carta de desforço. E a Laura M. respondeu. Bem, mesmo bem, eu não faria melhor. A sério, e não tão bem! Mas de repente, surge uma frase nitidamente dos anos 60, que eu (por várias razões e até porque sou, como sabem, dos anos 70) nunca poderia subscrever. Vamos à frase: "Que não se iludam os alunos tão prestimosos na defesa da sua própria alienação. Já muitos outros o disseram mas nunca é de mais: não interessa racionalizar a Escola – interessa acabar com ela. Acaba a frase com ponto de exclamação, (digo isto para evitar os tracinhos que cá põem os camaradas tipógrafos). o sublinhado é meu e a frase vem direitinha das páginas da Internationale Situationiste (1958–1969). Fiquemos por aqui, uma mãozinha ao Rocha de Sousa e seus conscienciosos alunos não faz mal a ninguém: para acabar com uma Escola é preciso merecê-lo. Esta sociedade e os críticos, o seu marketing... merecem-no?
Nota para a ilustração: Olhem bem para esta fotografia. É Marcel Duchamp. Para o perceberem precisam de o merecer. Senão… pim pam pum.