Vida Mundial, n.º 1873
7 de Agosto de 1975
Já aqui nestas colunas tenho tentado caracterizar certos tipos e situações que se vão cristalizando à roda do Poder. Como é óbvio, tais plantas daninhas abundam com frequência e maior perigosidade precisamente nos pontos sombrios desse mesmo Poder; é geralmente um conluio mais ou menos surdo, contra-revolucionário e rasteiro.
Tentei definir os videirinhos, os ex-disfarçados, os tartarins, os revolucionários do 26 de Abril. Ainda não mostrei como nestes meios infesta o anonimato e a delação. É quase certo, quando chega ao grande público a notícia de que uma sociedade bem conhecida e democrática protesta e se afasta de uma comissão ministerial para não se comprometer com métodos indignos; ou um grupo de cineastas bem conhecidos toma idêntica atitude, é absolutamente certo que no dia seguinte aparece nos jornais uma nota de apoio à dita comissão em nome de um grupo de... um grupo total ou parcialmente anónimo. O anonimato fomenta-se das mais diversas maneiras. Por exemplo, o anonimato crítico. E, se for preciso, o anonimato defende-se com as melhores razões revolucionárias...
Mas há um corolário do anonimato, bem mais grave e malcheiroso, é a delação. temos muitas provas desta actividade delatora e elas virão a público quando necessário. E até já se pode dizer qual é a sua modalidade: queimar tal indivíduo ou instituição, insinuando que se disse mal do MFA. Alguém fez uma observação crítica sobre o MFA? Disse, por exemplo, "ali também há luta de classes"... Logo vem um videirinho-delator registar, deturpar, comunicar. O sistema da contra-resposta é muito frequente. Por exemplo, um digno funcionário ameaça, em acalorada discussão, com o MFA. Respondem-lhe: "O quê? O Sr. está a atribuir ao MFA o mesmo papel daqueles que dantes se chamavam Pide?" Imediatamente o digno funcionário ou alguém por ele diz: "Ela está a dizer que o MFA é a nova Pide!" assim: a nova caça às bruxas. Simplesmente dantes praticava-se a delação com carteira profissional. Agora, os delatores e as prostitutas já não precisam de carteira. Mas existem e proliferam.
Vou dar um exemplo de delação, com factos, indiscutível. Ao fazê-lo, reproduzo também na íntegra um monumento de hipocrisia e miséria moral, mais um texto faz-papas (ou papas só, é o mesmo). A carta do delator. (Contra quem? Contra a AICA, cujo passado e presente antifascista é irrepreensível.)
Transcrição de parte da acta da reunião de 21/7/75 da Comissão Consultiva para as Artes Plásticas junto da Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos:
Proposta de integração da AICA na CCAP:
"Dado o papel relevante que a AICA (Associação Internacional dos Críticos de Arte – Secção Portuguesa) desempenhou e desempenha na dinâmica das artes plásticas portuguesas, seria lamentável a sua ausência nos debates que agora iniciamos e que irão definir, com certeza, o possível futuro da política cultural do respectivo sector, Para suprir tal falta propõe-se: que a AICA seja imediatamente convidada a participar nos trabalhos da CCAP, ocupando nela o lugar a que tem direito."
Sobre este assunto, a APAP apresentou uma moção que é anexo desta acta. O representante da APAP afirmou que a orientação da AICA foi no sentido de proteger certos artistas e ultimamente está interessada na sua divisão, estando interessada em manter uma posição de elite. O representante do CAPC manifestou a opinião da AICA ser uma associação importante no sector das artes plásticas, não podendo a sua acção ser limitada por atitudes pessoais dos seus membros. O representante da CODICE declarou que, como a AICA não desmentiu as declarações aqui feitas, põe sérias reservas à continuação da CODICE na CCAP se a AICA entrar. O representante do Ministério da Comunicação Social recordou as afirmações graves feitas pela representante da AICA em que pôs reservas à entrada da CODICE na Comissão perguntando se era para servir de polícia e insinuando em relação ao MFA que "dantes chamava-se PIDE". A carta posteriormente enviada pela AICA apenas dizia que não tinha sido bem assim, não desmentindo formalmente. O representante do MNE declarou que em face da dúvida suscitada por essa carta da AICA se devia "absolver o réu".
Perante estes esclarecimentos os representantes da FRES afirmaram aprovar individualmente a posição do Ministério da Comunicação Social, contudo, teriam de se abster na votação por ser decisão da Assembleia dos Trabalhadores que decidiu a abstenção por não ter conhecimento completo dos acontecimentos.
Feita a votação, a proposta foi rejeitada por 4 votos contra (MES, CODICE, RAP/MCS e APAP), 2 a favor (CAPC e MNE) e 3 abstenções (FRES, DGT, Árvore).
Para exacto conhecimento dos leitores, decifram-se estas siglas de eminentes instituições artísticas:
MES – Ministério de Equipamento Social
CODICE – Representação do MFA
RAP/MCS – O pintor Victor Belém
(RA: representantes dos artistas? )
CCAP – A tal "comissão"
FRES – Fundação Ricardo Espírito Santo
APAP – Mais conhecido por faz-papas ou papas
CAPC – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
MNE – Ministério dos Negócios Estrangeiros
DGT – Será a Direção Geral dos Transportes?
Observe-se só, entre outras coisas:
a) a delação: a presidente da AICA, Dra. Salette Tavares, chamou Nova Pide ao MFA" – é uma calúnia;
b) as calúnias não se discutem, e delas muito menos "se pede desculpa".
Vamos agora ao outro documento que transcrevemos sem comentários, assinalando só que estas misérias acontecem no mesmo espaço onde vêm os amigos de Allende, como o crítico Mário Pedrosa, ex-director do Museu de Santiago do Chile e presidente da AICA. Aí vai o texto, o "maravilhoso" documento:
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS ARTISTAS PLÁSTlCOS. Sede provisória:
Rua São Filipe Nery, 42, primeiro, Lisboa (NB: trata-se da Galeria Grafil.)
Considerando que a maioria dos membros da chamada secção portuguesa da Associação Internacional dos Críticos de Arte desempenhou durante o fascismo papel preponderante na repressão aos artistas plásticos e na alienação cultural do povo português;
Considerando ser esse organismo profundamente responsável pela divulgação de formas culturais importadas, totalmente desenraizadas da realidade portuguesa, e dirigidas exclusivamente às elites burguesas;
Considerando ser esse organismo um agente do capitalismo mercantilista que sempre serviu e do qual aproveitou o máximo de benefícios;
Considerando terem alguns dos seus membros tomado, ultimamente, posições públicas claramente contra-revolucionárias, difamatórias do MFA e ofensivas dos interesses da classe que representamos;
A Associação Portuguesa dos Artistas Plásticos afirma a sua mais veemente repulsa à readmissão nesta Comissão Consultiva daquele organismo, reservando-se, desde já, o direito de divulgar amplamente esta tomada de posição.
Assinam Luís Alberto, Monteiro Gil e Luís Soarez. Os restantes elementos da APAP têm conhecimento "disto"?
Legenda da reprodução do cartaz "Our Common Struggle Britain Portugal Angola Mozambique Guine Bissau".
Cartaz realizado em Londres por ocasião da "visita" de Marcelo Caetano. Nessa altura, muitos dos revolucionários do 26 de Abril "honravam-se" com os favores de Marcelo…