Colóquio-Artes, n.º 30
Dezembro de 1976
Lugar: Lublin, cidade polaca situada quase na fronteira com a Rússia; Galeria Labirynt, intensa atividade cultural, ou contra-cultural, para maior precisão.
Três exposições simultâneas de operadores estéticos portugueses: Fernando Calhau, Julião Sarmento e Ernesto de Sousa.
Para além da exposição de objectos que adiante descrevemos, e da projecção de filmes (também em Varsóvia, Centrum Dziekanka) e talvez principalmente, estas manifestações deram lugar a diverso e intenso convívio sobre os factos e as possibilidades da arte moderna em Portugal e na Polónia e respectivo intercâmbio. Presentes pela parte portuguesa: Helena Vasconcelos e Julião Sarmento. Observe-se desde já que para lá das actuais dificuldades da Polónia (que logicamente vão do económico-social ao cultural) as "artes de vanguarda" manifestam neste país uma variedade e intensidade verdadeiramente notáveis. Este desenvolvimento, de resto, não é de agora. Bastará lembrar que o primeiro "cabaret futurista" ("órgão de Barbárie") data de 1917; a importância da obra de Witkiewicz, a actividade dos clubes de vanguarda; a data dos primeiros "happenings-embalagens" de T. Kantor, 1964; e que desde os anos sessenta já havia "Demonstrações Sincréticas e Anti-happening" em Wroclaw. Estes factos, e outros que os reforçam (veja-se a nossa crónica no n.º 24 de Colóquio-Artes) ajudarão a dar o devido relevo aos "braços abertos" com que foram recebidas agora as manifestações dos três operadores, e os dois viajantes portugueses.
No prefácio que escrevemos para o catálogo das três exposições lê-se a certa altura: A redução a zero de linguagem corresponde a uma luta moderna, e como dissemos, a uma exigência de rigor. Não mais símbolos, e ainda menos o seu eco lírico... A partir do zero nós apontaremos os signos de uma nova estrutura, à qual corresponderá um novo sentido para a Glória, uma nova Exaltação.
A contradição, nos seus próprios termos, deste discurso é evidentemente polémica (redução a zero/apontar a uma nova estrutura), Podia-se desde já argumentar com uma observação de Lacan (para lá da confusão entre símbolo e signo):
Não se diga, todavia, que a nossa cultura se processa nas trevas exteriores à subjectividade criadora. Pelo contrário, esta subjectividade nunca cessou de militar no sentido de renovação do potencial nunca esgotado dos símbolos...
...o que só reforça aquela contradição, aliás longamente analisada no capítulo de Lacan ("Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise", in Écrits I). Porventura a melhor resposta a esta dialéctica será a de Pascal, também citada pelo autor dos Écrits:
…os homens são tão necessariamente loucos, que seria loucura de uma outra espécie, não ser louco.
Digamos que as três exposições de Lublin tinham isto em comum: uma "resposta" louca, na medida em que — como toda a vanguarda — se afirmaram (e portanto afirmaram) apesar de ou para além de uma atitude fundamentalmente assassina. Matar as palavras, matar os símbolos, redução a zero.
Que se avalie pela descrição sucinta de cada uma das "exposições", objectos plásticos (foto-gráficos) e filmes.
A ordem alfabética dos nomes dos "expositores" serve os nossos propósitos não cronológicos. Arbitrária coincidência.
FERNANDO CALHAU. Este operador expôs a série já conhecida dos seus ozalides, significativamente sublinhados pelo título Sistema. Para quem não conhecer estes trabalhos, a sua descrição é simples. Trata-se de uma série de fotografias neutras, reproduzidas sem qualquer brilho ou acento, e de palavras: fotografias de rochas – a palavra TEMPO; fotografias de terra – as palavras ÁGUA/TERRA; fotografias de mar – as palavras ÁGUA/MAR. Este inventário sistemático poderia prosseguir, e é pena que Calhau não tenha podido enviar à Polónia uma das suas mais interessantes e recentes experiências audiovisuais (Galeria Quadrante, exposição "Alguns Aspectos da Vanguarda..." durante o Congresso da AICA): projecção simultânea de duas imagens de MAR, uma fixa (diapositivo) e outra móvel (cinema); durante sete minutos mantém‑se nos dois ecrãs a mesma imagem. A redução a zero e a afirmação sistemática (estrutural) são aqui evidentes.
JULIÃO SARMENTO. A "obra" enviada, inédita em Portugal, intitula-se Life and death of small european birds, e consiste numa série de fotografias neutras de árvores, uma série correspondente de reproduções fotográficas de um livro de ornitologia (em cada página uma descrição académica de um small bird); legendas e ainda: uma gaiola com um pássaro e a transmissão do registo sonoro de excertos do Canto III do Don Juan de Lord Byron. A introdução aqui de uma citação literária torna evidente que para lá da citação neutral, mas cultural, do saber ornitológico; há uma profunda subjectividade na simples escolha do tema, de que a citação literária e cultural não é senão uma consequência lógica. Note-se porém que esta cultura é rigorosamente submetida à mesma operação redutiva que vimos considerando decisiva. A subjectividade é posta em questão, e só pode ser recebida desde que se corram os riscos de uma rigorosa e sistemática redução conceptual. Esta posição pós-conceptual participa nitidamente daquela "loucura" a que se refere Pascal – e pascalianamente é uma grave e decisiva aposta.
Julião Sarmento "expôs" também dois filmes que não conhecemos, Pernas e Sombra.
ERNESTO DE SOUSA (eu próprio). O autor vem de longe e pretende que o acesso àquela redução no seu trabalho se foi processando através de pelo menos mil mortes. Algumas das quais voluntárias (auto-assassinato, não suicídio). Descrição de um trabalho inédito onde aquela redução é rigorosamente consciente. Uma série de serigrafias e um filme. As serigrafias constam de folhas inteiramente brancas com uma impressão visualmente insignificante das frases: O TEU CORPO É O MEU CORPO/O MEU CORPO É O TEU CORPO em leitura circular simétrica. A mesma frase é repetida num filme separando os respectivos planos, sem montagem. O filme intitulado This is my body nr. 2 representa uma manifestação de operários. É evidente que aquela frase é uma unidade discreta (aquém de qualquer expressão) sublinhando uma situação geral: "a língua é um sistema onde nada significa em si" (Benveniste, Problèmes..., p. 23). Finalmente um letreiro convida os participantes a serem-no de facto manifestando o seu corpo nas folhas brancas. A "loucura" neste caso propõe uma situação orgiástica. Por exemplo, entre os corpos dos operários portugueses e os corpos dos operários polacos, entre espectador e actor. É uma pró-vocação.
Uma última palavra sobre os sublinhados e as outras reticências deste escrito. É evidente que não houve "exposições" de "objectos" (plásticos ou fílmicos), ou "representações" quaisquer (de mar, pássaros ou operários), mas sim resíduos existenciais nos interstícios de um jogo, ou uma aposta, entre referente(s), significantes e respectivos significados. Reticências.