Bibliografia

Perspectiva: Alternativa Zero, Vinte Anos Depois…

João Fernandes, Perspectiva: Alternativa Zero, Porto, Fundação de Serralves
1997

Raros são os momentos no contexto artístico português em que a memória é resgatada do seu passado para a partir dela se estudarem situações muitas vezes esclarecedoras de um presente. Décadas de isolamento cultural e político da sociedade portuguesa no séc. XX são sem dúvida responsáveis pela ausência de uma reflexão sobre um passado que, paradoxalmente, quanto mais recente, mais olvidado se torna na memória e na acção de quem se situa no presente como momento em que urge sempre reiniciar um caminho, um projecto, uma ideia, como se todas as experiências anteriormente tentadas não fossem mais do que ocasiões esporádicas de uma memória que jamais se assume.
Nos dias de hoje, os caminhos da experimentação em arte são continuamente informados da história dos momentos e percursos de ruptura que os precederam. Novos projectos apropriam-se de projectos anteriores, revisitando-os criticamente, fora do contexto e da pretensão de vanguarda que os caracterizavam. O exercício da referência ou da citação deixou de ser incompatível com a experiência do novo, o conhecimento aprofundado de projectos artísticos das últimas três décadas representa uma contextualização necessária para a reformulação dos caminhos possíveis do presente. Uma série de exposições internacionais tem ajudado a sistematizar uma memória que inicialmente pareceria condenada pela efemeridade de muitos dos projectos que a constituíam. Desde as exposições monográficas e retrospectivas de artistas relevantes do contexto das décadas de sessenta e setenta (Beuys, Haacke, Matta-Clarke, Naumann, Jasper Johns, Smithson, Warhol, entre muitos outros…) até às exposições de reapresentação e reflexão sobre as partes ou a globalidade desse mesmo contexto ("Gravity and Grace – the changing condition of sculpture 1965–1975", Hayward Gallery, Londres, 1993; "The Sixties: Art Scene in London", Barbican Center, Londres, 1993; "Reconsidering the Objet of Art", MOCA, Los Angeles, 1995; a próxima Bienal de Veneza com o tema "Futuro, Presente, Passado, anos 60-90", etc…), Museus e programações
temporárias cumprem assim um dos objectivos que Harald Szeemann lhes previa em 1977: "O museu é, ou poderia ser, o lugar central onde expor o frágil".
Estas exposições têm despertado uma recepção simultaneamente perspectiva e prospectiva, contextualizando ou deixando referências nas obras de muitos dos jovens artistas aparecidos na década de 90 ou nos projectos curatoriais de jovens críticos e comissários, enquanto sistematizam e reestruturam a recepção contemporânea de experiências passadas que sempre procuraram deixar de si a documentação que esclarecesse e aproximasse as suas atitudes e processos. Em Portugal, à escassez de informação e conhecimento sobre o contexto artístico internacional, junta-se ainda um desconhecimento da sua própria história recente, ainda não suficientemente pesquisada pela investigação académica e/ou curatorial, assim como não estimulada pela curiosidade artística e crítica. Isto apesar de uma relativa melhoria no que diz respeito a algumas edições e exposições de investigação neste campo. Nos últimos três anos, importa por exemplo salientar a realização de uma importante exposição sobre a década de sessenta, "Anos de Ruptura, uma perspectiva da arte portuguesa nos anos sessenta" (Palácio Galveias, Lisboa, 1994), assim como a edição de duas histórias da arte incidindo sobre ou compreendendo um estudo histórico da arte portuguesa do século XX, ou as exposições monográficas sobre artistas portugueses (Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, Álvaro Lapa, Helena Almeida, Palolo) que instituições como a Fundação de Serralves ou a Fundação Calouste Gulbenkian têm protagonizado.
Reapresentar hoje a experiência da "Alternativa Zero" implica a consideração de um contexto fundador das raízes da contemporaneidade artística portuguesa, através da reflexão sobre a actividade crítica e curatorial que o combate ideológico de Ernesto de Sousa representa, ao concretizar uma exposição que reunia toda uma geração de rotura que, desde finais da década de sessenta, vinha afirmando as suas propostas e, ampliando-a no contexto possível que o pós-25 de Abril poderá ter permitido, situar esta exposição em relação aos contextos nacional e internacional. Não se trata de mitologizar esta experiência, de a considerar modelar de um caminho ou de a reconstruir nas originais ambições prospectivas do zero então enunciado. Trata-se apenas de possibilitar um conhecimento e uma análise crítica das possibilidades e impossibilidades que despertou, das expectativas que assumiu, das continuidades e descontinuidades que provocou.

Um contexto para o zero…
Dois terços do séc. XX português manifestam as consequências de um isolamento cultural que caracterizava endemicamente a sociedade portuguesa, pelo menos desde o séc. XVIII. Os alvores de um primeiro modernismo, com as experiências estéticas da geração de Amadeo Souza-Cardoso, Santa-Rita Pintor e Almada Negreiros constituem uma rara ocasião de diálogo e comunicação com as rupturas vanguardistas do contexto artístico internacional na segunda década do século. O Estado Novo, quer com a sua política cultural a nível institucional quer com a contestação que origina em relação a essa mesma política, acentua inexoravelmente um isolamento que impossibilita ou dificulta a continuidade das rupturas e do debate estético que a geração de Orpheu tinha inaugurado. A percepção da diferença entre o debate estético internacional propiciado por atitudes de arte experimental e de vanguarda e a discussão existente no contexto artístico português, sempre condicionada pela reacção à ditadura, origina em toda uma nova geração de artistas a necessidade de se libertarem do espartilho do contexto particular da arte portuguesa para adquirirem informação e desenvolverem práticas artísticas equiparáveis às pesquisas artísticas suas contemporâneas no contexto internacional.
Em finais da década de 50, a constituição do grupo KWY, em Paris, reúne artistas portugueses (entre os quais se destacam René Bértholo, Lurdes Castro e João Vieira) com artistas de outros países, representando já uma nova atitude experimental participante de uma renovação de linguagens e experiências que pouco tinha que ver com a discussão nacional. Em meados da década de sessenta, as acções de poesia experimental em Lisboa, assim como a recepção do experimentalismo musical do pós-guerra, encetadas por nomes como Ana Hatherly, Melo e Castro, Jorge Peixinho e Salette Tavares, entre outros, começam a delinear um novo campo artístico em que o discurso de uma nova vanguarda se anuncia e manifesta. Obras individuais de artistas como Helena Almeida, Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa e Ana Vieira assinalam igualmente esta ruptura. Não surpreende portanto que quando, a partir de finais da década de sessenta, Ernesto de Sousa transfere a sua actividade crítica para o domínio das práticas artísticas de vanguarda, a abertura do campo artístico português comece a definir-se em relação à recepção de novas ideias e atitudes que caracterizam igualmente as mudanças que então ocorrem no contexto artístico internacional.
Da arte minimal à arte conceptual, earth art, land art, arte povera, arte processual, etc. um novo caminho tinha começado a ser percorrido no contexto das linguagens artísticas de vanguarda. Exposições-síntese de novas atitudes realizam-se então, entre as quais se destacam "Arte Povera/Im Spazio", duas exposições comissariadas por Germano Celant (Génova, 1967), "Prospekt 68 e 69", comissariadas por Konrad Fischer e Hans Strelow (Dusseldorf, 1968 e 69) e "When Attitudes Become Form", comissariada por Harald Szeemann (Berna, 1969). A desmaterialização do objecto de arte, o fim de uma autonomia dos géneros artísticos e dos seus suportes, a crítica do conceito da originalidade, a relação arte-vida pesquisada pelo movimento Fluxus marcam então os parâmetros do debate e da experimentação.
Harald Szeemann, justificando a sua exposição, lança um manifesto: "… percebe-se perfeitamente o desejo de fazer explodir o triângulo’ internacional da arte: estúdio-galeria-museu". E prossegue: "Na arte de hoje, o tema principal não é a realização, o arranjo do espaço, mas sim a actividade do ser humano, do artista, o que explica o título da exposição (uma frase e não um slogan)."
(…)

Ernesto nas roturas do seu tempo

Em 1969, Ernesto de Sousa participa no I Festival de Arte Coletiva, 11 Giorni a Pejo (Itália), organizado por Bruno Munari, onde contacta com todo um novo conjunto de expressões artísticas. Nesse ano, Almada Negreiros é assumido por Ernesto como uma referência incontornável e auto-legitimante. A proposta de uma nova vanguarda passa pela ligação à mais histórica das vanguardas do primeiro modernismo português, do qual Almada era o único sobrevivente. Em torno da invocação deste nome, datam dessa altura o mixed-media Nós não estamos algures e o início das filmagens de Almada, um Nome de Guerra (35 mm). Nesse ano ainda, realiza com Noronha da Costa o "Encontro no Guincho", uma acção que se inscreve já numa clara opção pela abertura a novos tipos performativos de manifestação artística, assim como a uma reconsideração do estatuto do objecto de arte.
A vida e os actos de Ernesto de Sousa surgem aparentemente marcados sob o signo da ruptura e da descontinuidade: da actividade crítica neo-realista à investigação da cultura popular, ao movimento cineclubista e à realização de Dom Roberto, tido como um filme precursor do novo cinema português, à participação crítica e organizativa na definição de um novo tipo de arte experimental de vanguarda e à sua condição de artista/operador estético, protagonista de várias exposições realizadas a partir de meados da década de 70. A coragem de assumir rupturas com a sua biografia e com ideias anteriormente exploradas indicia porém um intranquilo fio condutor entre as preocupações sociais do neo-realismo e a relação arte-vida retomada a partir das experiências Fluxus e da arte experimental das décadas de 60 e 70, entre a pesquisa da cultura popular e o axioma de Beuys segundo o qual "cada homem é um artista", entre a experiência do cinema e da fotografia e o uso destes suportes na arte conceptual e pós-conceptual.
Entretanto, enquanto Ernesto enceta a sua pesquisa dos possíveis caminhos de uma nova vanguarda no contexto artístico português, este passava por alterações estruturais profundas. Em 1969, inaugura-se em Lisboa a sede da Fundação Calouste Gulbenkian, a qual vinha já possibilitando a artistas portugueses a atribuição de Bolsas de Estudo que lhes permitiam partir para contextos internacionais em busca de formação e informação, assim como apresentar um novo tipo de projectos nas suas exposições, ou discutir as suas obras numa revista de arte que então aparece editada por aquela Fundação, a Colóquio, que a partir de 1971 se redefiniria em Colóquio-Artes, sob a direcção de José-Augusto França.
Em paralelo, acompanhando a especulação bolsista característica de um regime político do qual se prenunciava já o fim, o mercado da arte em Portugal explode e implode entre 1968 e 1972. Desde finais dos anos 50 e inícios dos anos 60, várias galerias tinham surgido, entre as quais se destacam a Galeria Diário de Notícias, a Divulgação, com uma secção portuense (aberta desde 1958) e outra lisboeta (aberta a partir de 1963) com programação de Fernando Pernes, a Buchholz, a Quadrante, a Ogiva-Óbidos (relevante sobretudo a partir de 1968), a 111, a Judite Dacruz, às quais se soma a Alvarez, aparecida ainda na década de 50, no Porto, dirigida por Jaime Isidoro, o qual, a partir de 1964, abre um estúdio em Valadares, a "Casa da Carruagem", destinada a acções paralelas como colóquios, exposições e, mais tarde, happennings. A estas acresce o surgimento de espaços independentes de estratégias comerciais, que se destinam progressivamente ao desenvolvimento da arte experimental e de vanguarda, tais como a Cooperativa Árvore (Porto, 1963). Estes os espaços onde muitos novos artistas vão surgir e apresentar pela primeira vez as suas obras. A especulação no mercado da arte acompanha ainda o aparecimento de efémeros prémios de pintura, suportados habitualmente por empresas relevantes no contexto da época. Por sua vez, o teatro, o cinema, a música experimental, a poesia e as artes visuais cruzam-se em eventos de intenso significado político e cultural. Estrutura-se toda uma geração de novos críticos de arte, entre os quais se destacam Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes, Rocha de Sousa, Salette Tavares, a que mais tarde se juntará José Luís Porfírio, para além de Ernesto e de França, provenientes já de outras aventuras críticas. Institui-se aliás em 1969 uma delegação portuguesa da A.I.C.A. (Associação Internacional de Críticos de Arte).
Na década de 70 já, importa sublinhar a actividade desenvolvida no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, o qual é convertido num verdadeiro laboratório da vanguarda e do experimentalismo portugueses, reunindo uma grande parte dos seus protagonistas, organizando cursos e discussões, reflectindo sobre experiências internacionais então de difícil conhecimento e acesso no contexto nacional, concretizando projetos fundamentais como "Minha Nossa Coimbra Deles" (1973), "O Aniversário da Arte" (1974) e "Semana de Arte na Rua" (1974), pelos quais Ernesto de Sousa se entusiasma explicitamente. As referências aliam a tradição do happening e da performance ao espírito Fluxus (Filliou, Beuys, etc.) e à referência das pesquisas conceptuais.
Surgem ainda novas galerias então dedicadas sobretudo à apresentação de algumas das obras do experimentalismo português: a Quadrum, inaugurada em 1973, e a Módulo – Centro Difusor de Arte, inaugurada já depois da Revolução, em 1975, no Porto. É criado o AR.CO., em 1973, uma escola de artes independente que constitui um espaço de abertura no ensino artístico, assim como um lugar livre para a realização de eventos.
Em 1972, Ernesto de Sousa visita a Documenta 5, comissariada por Harald Szeemann, em Kassel. Documenta fotograficamente a exposição e fará dela um dos utensílios de legitimação das ideias de vanguarda com que tem vindo a operar no contexto português, apresentando em público os diapositivos das obras nela apresentadas, assim como divulgando o nome e a obra de Joseph Beuys, que então conhece, como um dos nomes referenciais dos possíveis caminhos a seguir. A Documenta 5, nas palavras de Szeemann, busca "ser a vida concentrada em forma de exposição", reunindo, "enquanto exposição panorâmica, as três formas magistrais da actividade de exposição: crítica-informação-documentação" e constituindo "informação sobre a arte e uma via para a arte e assim, esperemo-lo, a alvorada de um período pós-mercado da arte". A secção de apresentação das "mitologias individuais" nesta exposição oferece a Ernesto a possibilidade de se confrontar com obras que, relacionando-se com a vida, a transcendem na afirmação da criação do artista contra todas as possibilidades de um senso comum.
O movimento Fluxus torna-se então uma referência fecunda, disso sendo exemplo o projecto que elabora com Jorge Peixinho, Luís Vaz 73, aliando a investigação visual à investigação musical daquele que era um fundador das linguagens experimentais na música contemporânea portuguesa. Os contactos desenvolvidos com Filliou, George Brecht e Vostell são igualmente disso uma evidência. Aliás, sob o signo de Filliou, importa sublinhar a comemoração em Coimbra do 1.000.0110 aniversário da Arte, aliando ao discurso de vanguarda o sentido da festa, da comunicação e da participação colectiva que se tornarão em objectivos primeiros de todas as iniciativas que Ernesto promoveu:
"A convite de Robert Filliou, um dos mais destacados artistas da vanguarda europeia e americana, Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro, João Dixo e todos os elementos do CAPC (Centro de Arte Plásticas de Coimbra), vai realizar-se nesta cidade, no dia 17, um 1.000.0110 aniversário da Arte. Nele se vai comemorar uma data hipotética. A festa estará aberta a toda a gente. Haverá ornamentações, um bolo gigantesco, cerveja à vontade, lançamento de balões, happenings, ofertas mútuas, ‘Zés Pereiras’, etc.".
As selecções de artistas com que Ernesto de Sousa assume, por esta altura, as suas opções críticas no contexto português, "Do Vazio à Pró-Vocação" e "Projetos-Ideias", apresentadas nas exposições organizadas pela A.I.C.A. em 1972 e 1974 na Sociedade Nacional de Belas Artes, constituem já exercícios de comissariado que afirmam uma autoria que antecipa de algum modo o que viria a ser a "Alternativa Zero", assim como revelam a influência que a informação recebida do contexto internacional manifestava. Ernesto dedica-se à actividade crítica enquanto atitude pedagógica, passando, nos textos que escreve para a revista Vida Mundial, a divulgar e opinar sobre publicações, exposições e outros eventos que constituem um calendário precioso das manifestações de vanguarda no contexto nacional e da recepção neste de diferentes iniciativas internacionais.


A necessidade da vanguarda e a revolução


Nos seus escritos e acções, Ernesto de Sousa procurará sempre dissociar o conceito de vanguarda de qualquer apropriação elitista dos seus conteúdos e manifestações, buscando ampliar socialmente a recepção das iniciativas artísticas e dos conhecimentos estéticos nelas implícitos. O conceito de "obra aberta" estabelecido por Umberto Eco torna-se operativo nesta extensão prolífera do conteúdo semântico da palavra vanguarda, aliado à necessidade de encontrar uma forma de correspondência entre a realidade política e social e o contexto artístico. O 25 de Abril tinha acontecido, a palavra é preenchida pelo discurso político que, por sua vez, num contexto revolucionário, ocupa as ruas e as rotinas do dia-a-dia. Em algumas das suas crónicas, Ernesto de Sousa chama a atenção dos artistas para a necessidade da vanguarda, delineando todo um programa conceptual a partir dos seus possíveis sentidos contemporâneos:

"… quando se diz que a problemática da vanguarda assume a definição de obras abertas em vez das académicas obras fechadas; que a tendência geral, hoje, é irrecusavelmente valorizar o processo em substituição da obra acabada e definitiva; que se caminha para a exaltação do conceito estético face ao objecto estético… quando se fala da estética da participação e da criação de espaços lúdicos, de choque e de agitação; quando se fala de mixed-media, ou da alteração das relações tradicionais de posse objectiva e alienante, ou da relação espectáculo-espectador; de fim da especialização e de liberdade instrumental, não se está a referir e empregar conceitos fantasistas e alheios à realidade social e estética, ou às mais prementes necessidades da criação de uma sociedade nova. (…) Não se trata portanto (não deve tratar-se) de imitar ou venerar o-que-se-faz-lá-fora mas de abordar o que deve fazer-se cá dentro: com as ferramentas modernas e eficientes de um mundo moderno."


Num país até então isolado da informação e do debate estético internacional, Ernesto compreende assim a necessidade de distinguir entre a mera importação e mimese de ideias feitas para usar as ideias importadas como utensílio para a criação de novas realidades. Da acusação, muitas vezes proveniente de contextos conservadores, de que os artistas portugueses de vanguarda não fazem mais do que repetir experiências importadas do estrangeiro, Ernesto pensa que "um conhecimento em 2ª mão pode ser uma experiência em 1ª mão".
A ligação entre a ideia de vanguarda e o meio social jamais é esquecida num contexto revolucionário em que todas as acções se constituíam apenas em função de um sentido colectivo:


"... o melhor da vanguarda supõe um meio social cúmplice: por isso geralmente a vanguarda é material de ou para a festa, para o convívio; a operação estética e o operador tendem a algo de carismático. Paradoxalmente, a contracultura é gregária. (…) A vanguarda não é individualista, e por isso se politiza tão espontaneamente quando o meio o exige (o dadaísmo de Berlim, o futurismo soviético)."

Um resumo das ideias essenciais que possam preencher o sentido da vanguarda que propõe é então minuciosamente descrito:

"…toda a vanguarda é:

Negativamente:


I. Recusa (e destruição) de todo o objecto estético reificado, isto é: coisa separada da vida geral, mercadoria, troféu ou emblema elitista ou de prestígio social. Combate à ideologia produtivista.


II. Combate sem tréguas a toda a concepção da obra de arte como divertimento ou factor de respeitabilidade. Combate ao espectáculo (independente da própria vida) e à sublimação por via estética da memória colectiva. Combate a todo o ilusionismo e à passividade espectatorial. Combate ao consumismo, e, em particular, ao consumismo sublime (propriedade individual da obra de arte). Destruição da distância entre o espectador e o espectáculo.


III. Combate a todas as tentativas de utilizar a actividade estética reduzindo-a ao acessível e ao belo ("Kitsch"). Combate à massificação da cultura.

IV. Deslocação e destruição do conceito de qualidade. "Sou um especialista do mal-feito" (Filliou).


Positivamente:


I. Procura da obra de arte como processo (e relativa a sujeitos em processo, sociedades em processo…), de que a obra aberta é um caso em particular. Valorização do efémero, técnicas do caso e da abertura. Simultaneísmo.


II. Procura da globalização, descoberta de novas estruturas. Ideia de envolvimento e arte de sistemas. Entre a arte e a vida apenas subsistirão barreiras metodológicas. Técnicas da apropriação e da comunhão. Destruição do quadro(s) e dos tabus formais.


III. Participação. “A arte deve ser feita por todos”. (Marx: no futuro não haverá pintores,, mas indivíduos que fazem pintura). Artes da acção. Arte colectiva.


IV. Nova vocação didáctica da actividade estética. Provocação (ou pró vocação, como lhe tenho chamado) e humor como técnicas. N.B.: A maior parte das artes de guerrilha dizem respeito aos dois últimos enunciados. Principalmente.


V. Todos os materiais são materiais nobres, a merda, o tempo, o plexiglas… a ideia. Primado da concepção, da invenção.


VI. Familiaridade da actividade estética com a actividade científica, etnologia, linguística, matemática…


VII. Aprofundamento de novas técnicas de percepção. O corpo do operador e o operador fazem parte da obra. O gesto do operador é um gesto para o mundo (como na estética barroca). Técnicas do silêncio.


VIII. Primado do prazer: que forçosamente conduz ao desejo de uma sociedade socialista.


IX. A utopia ao serviço do presente. (Aqui têm lugar provisoriamente as mitologias individuais, como presença do outro).


X. Reinvenção de um novo ritual. Ritual para a festa. (A nova festa, que vem preencher o vazio deixado pela festa arcaica, é em definitivo a sociedade socialista)”.

O contexto político e cultural pós-25 de Abril traduz-se efectivamente por uma libertação de energias, discursos e eventos que só a liberdade tornava possíveis, onde Ernesto assumia a cumplicidade da vanguarda com a realidade social, defendendo-se assim de possíveis acusações de elitismo e mimetismo, de forma bem clara. O 25 de Abril, na abertura que permite, origina igualmente a expressão de rupturas e confrontos que, no campo artístico, se traduzem por vezes na necessidade de afirmação de protagonismo dentro e fora desse mesmo campo. A polémica sobre “a exposição de Paris” toma-se um exemplo de como uma argumentação populista e demagógica impede nesse momento uma apresentação da arte contemporânea portuguesa no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, onde muitos dos artistas que Ernesto de Sousa vinha defendendo se encontravam representados. O "diário das artes na revolução”, que as suas crónicas na Vida Mundial constituem, serve então de chamada de atenção para o trabalho dos artistas que desde finais dos anos 60 Ernesto acompanhava, ao mesmo tempo que amplia o campo à divulgação de toda uma série de jovens artistas, dos quais muitos farão depois parte da sua selecção para a “Alternativa Zero”. Em paralelo, organiza a programação do Clube Opinião, por onde passam alguns destes artistas.
Com efeito, o campo das artes plásticas amplia-se enormemente depois do 25 de Abril. Surgem novos nomes, grupos de acção (como o Grupo Acre), novas iniciativas como, por exemplo, os “Encontros Internacionais de Arte” organizados por Egídio Álvaro e Jaime Isidoro, como extensão de uma colaboração que vinha já de 1973, quando criam a “Revista de Artes Plásticas”: É criada a Direcção Geral de Acção Cultural, a qual programará as exposições da Galeria Nacional de Arte Moderna em Belém, sob a direcção de João Vieira, o que terá depois uma importância decisiva para a localização da “Alternativa”:.. Com João Vieira, virão a trabalhar Fernando Calhau e Julião Sarmento, que serão igualmente relevantes para algumas das (não muitas…) iniciativas institucionais com que o Estado ocupava este campo. Ernesto virá a participar com estes últimos numa exposição que então realizam numa galeria de arte experimental, em Varsóvia.
O conceito de “operador estético” substitui então, no discurso de Ernesto de Sousa, a palavra “artista”, procurando objectivar na linguagem a nova condição da arte e da sua relação com o contexto social, abandonando de vez a distinção entre “pintores”, “escultores”, “fotógrafos”, “gráficos” etc., assim como centrando na acção, na “operação”, o objectivo das práticas artísticas.
Começavam então a definir-se as condições institucionais, ideológicas e estratégicas que levam Ernesto de Sousa a procurar organizar um evento que reunisse um conjunto vasto de artistas, desde aqueles que advinham das roturas da década transacta até aos novos nomes que despontavam no campo artístico. A vanguarda necessitava de uma sua manifestação pública e global para se afirmar. O zero será o símbolo de tudo quanto se pretendia assumir.

História de um zero

O zero que o título da “Alternativa” apresenta tinha já sido proposto por Ernesto de Sousa quando, referindo-se a Daniel Buren, num texto intitulado "O Grau Zero", formula a imposição de "um silêncio sinalético ao nosso espaço quotidiano(…) [como] limiar do conceptual em arte". Este silêncio, cuja ideia remonta explicitamente a Roland Barthes, é o que este último refere como aquele que permite “… criar uma escrita branca, livre de toda a servidão em relação a uma ordem marcada da linguagem”.
(…)