Lisboa, Tinta da China
Textos originalmente publicados no Jornal de Notícias, 1962-63
2011
"A mais terrível fronteira", 15 de Abril de 1963
Em que tempo ESCREVO estas crónicas na partida do Magrebe?
Este problema do tempo não se me tinha imposto até aqui. Marrocos está no tempo, como os túmulos merínidas, desfazendo-se, esperando o futuro. Mas agora atravessei a fronteira em Ujda e dirijo-me para Tlemcen, entro no drama na Argélia, sobe-me o cheiro da tragédia e ainda lhe sinto a náusea; atravesso a clôture aux vaches, essa larga banda de terreno coberta de arame farpado, electrificando talvez a mais terrível fronteira do Mundo; oiço uns, cheios de esperança, mostrando fotografias e certificados; combateram, foram feridos e voltam agora para a Terra da Promissão; mas, outros…
…Outros. Os do Regresso, os da regressão. Pois que estas Crónicas são escritas na partida, depois. No tempo do porão do "Ville d’Oran" no tempo do encontro com Henri Aalleg, em Argel; com Kateb Yacine, em Paris. Depois da representação da peça deste último La Femme Sauvage, e de alguns acontecimento pessoais, íntimos, que me transformaram, ao mesmo tempo que ao mundo. E entre estes acontecimentos contam-se o encontro com esse mesmo Kateb no Carrefour, bistrot de Saint-Germain-des-Près onde tudo estava certo, para tal encontro, desde o nome aos companheiros de boémia a de teatro. Eu trazia no bolso o número das Lettres com a crítica do Sadoul ao meu filme [Dom Roberto], e no mesmo número um poema de Kateb e uma longa entrevista com ele. Estávamos unidos e abraçamo-nos e, como um homem não deve beber sozinho, bebi com Kateb as desgraças da Argélia. As passadas e as futuras. "Quero queimar todos os meus livros!", e Kateb, mais depressa criança do que eu, “recém-chegado” ao balcão do Carrefour, chorou e sorriu no meu peito. "Irmão"! Foi uma longa viagem até ao Carrefour para sentir pela primeira vez esta palavra pródiga na boca dos argelinos, e que alguns proferem como uma fórmula vazia, outros como um lamento.
…Em que tempo, agora… escreverei estas crónicas?
Escrevê-las-ei no tempo que vivi um tempo bruto, que nada tem de classificável ou de censurável. Isto podia ser também um tempo de meditação e de regresso, porque a memória é a matéria e o vivido um intervalo dela. Não se trata para empregar o calão do cineasta, de flash-backs, de volta ao passado, mas da matéria presente, e misturada de experiências, apenas organizada e dividida segundo um espaço de atenção: tu, leitor, tu que me obrigas ao esforço de escrever e de existir.
Para o leitor; como o primeiro amigo, que me pergunta invariavelmente: "estiveste na Argélia! Como foi… como é aquilo?". E eu não tenho para lhe responder senão palavras de uma grande e banal intensidade (um drama! a crise de uma longa crise… ), ou uma comprida e incompleta dissertação. Ou ainda, a alternativa, estas crónicas, um diálogo com a memória dos acontecimentos, uma luta com a matéria espessa dos factos, a compreensão interrogativa das pessoas.
…Eu estava portanto na fronteira, e atravessara a clôture aux vaches. Este começo é símbolo e facto. Tudo se encontra ainda no lugar, da tragédia, na forma de uma escultura moderna metálica e áspera, erguida insólita na terra queimada, ardida em pasmo: seis a oito fios com a altura de dois metros, ainda há pouco atravessados por uma corrente de 5.000 volts e de um lado e doutro faixas espessas de arames farpados, numa complicada geometria agressiva. Aqui e ali, torres de metal e madeira. Tudo mudo, parado e à espera. Faltam só os actores e o seu rouco diálogo: os gritos de dor, a voz, técnica e cortante das sentinelas, das conversas telefónicas em código; o acompanhamento seco das metralhadoras, o cavo estampido das granadas.
Os actores retiraram-se, mas o trânsito da fronteira tem o seu ar de bastidores, e alguns rondam perto. (Toda a Argélia me vai aparecer como um vasto bastidor da guerra e muitos dos seus ocupantes, actores sem emprego, o olhar branco ainda dos horrores e um engano de vitória, já inquieta e melancólica: "a melancolia é o fervor depois da queda", lembra um jornalista citando Gide).
Mohamed Hanafi é um destes actores desocupados. Volta de um hospital em Marrocos. Olha de novo a terra queimada, os arames mortais, e o seu olhar cobre-se de névoa. Encosta-se no banco estreito da carruagem e fecha os olhos, quase só pestaneja, quando os reabre um estranho alívio e um novo fulgor os anima. Desenrola o lenço atado à maneira de turbante e responde às minhas perguntas com uma estranha voz calma e quase indiferente, num francês correcto. E a sua memória recorta o real na minha memória, esta fotografia que ele me está mostrando, perfilado diante da objectiva do fotógrafo-amador é parecida com as dos soldados em manobras que se fazem fotografar em cómicas posições marciais. Nesta outra, exibe as tesouras isoladoras destinadas a cortar o arame electrizado. E tudo isto é uma outra realidade, uma surrealidade presente o passado é que é fantástico e impossível. Sinto que Mohamed se interroga, e eu olho também as suas mãos longas a nervosas de mecânico. Agora é outra luta: que destino espera estas mãos?