José Bártolo, Colecção de Cartazes de Ernesto de Sousa: Your Body is My Body, Lisboa, Museu Coleção Berardo
2015
[Excerto]
* Assume-se, em título a citação de Ernesto de Sousa, frase final de “Performar”, in Opção, n.º 101, 30 de Março de 1978.
1. o teu corpo é o meu corpo
your body is my body – o teu corpo é o meu corpo é um enunciado que nos confronta com uma encruzilhada. Ele identifica-nos uma obra de Ernesto de Sousa, datada de 1973, constituída por um conjunto de fotografias e por um cartaz, obra essa que sabemos ser parte de um processo criativo mais amplo que ligará projectos como Luís Vaz 73, Olympia ou Identificación Con Tu Cuerpo.
Identifica-nos, também por isso, um campo de reflexão e experimentação, destacando Ernesto de Sousa como operador estético das vanguardas, que não cessa de ser trabalhado pelo autor entre o final da primeira metade da década de 60 e o final da primeira metade da década de 80 e que, por economia de meios, se pode identificar com a crescente valorização do processo criativo sob o objecto criado e onde o corpo – na sua radical presença física na sua inevitável desaparição – é categoria (para além de medium, matéria, paixão) central.
Finalmente, your body is my body – o teu corpo é o meu corpo é o título da presente colecção de cartazes reunida por Ernesto de Sousa e que evidencia o seu interesse pelo design gráfico e, essencialmente, as relações disciplinares entre design e arte de vanguarda.
Certamente, há um conjunto de preocupações críticas que caracterizam o posicionamento de Ernesto de Sousa a partir dos anos 50 que são da ordem da produção cultural e, em particular, da cultura visual, preocupações comuns, portanto, aquelas que vão caracterizando quer o novo movimento cineclubista quer alguma produção de design e cultura visual portuguesa da qual as capas para a Editora Ulisseia trabalhadas em co-autoria por Sena da Silva e Sebastião Rodrigues, a exposição de fotografia e consequente publicação de Costa Martins e Victor Palla Lisboa, cidade triste e alegre (1959) ou a revista Almanaque (1959) editada por Figueiredo Magalhães e com direcção gráfica de Sebastião Rodrigues, exemplificam.
Na Colecção de cartazes de Ernesto de Sousa destacam-se três grandes núcleos que não devem ser analisados de forma isolada mas a partir das afinidades que se estabelecem entre si, algumas, menos directas ou evidentes, traduzem já princípios de interpretação e de relação estabelecidos pelo próprio coleccionador.
Um primeiro núcleo, é constituídos por cartazes concebidos e executados por Ernesto de Sousa, sob a sua orientação, por sua encomenda, ou para divulgação das suas obras ou eventos. Deste núcleo, constituído maioritariamente por cartazes de artista, poder-se-ão destacar os trabalhos desenvolvidos em cumplicidade, que resultam nos cartazes com autoria (ou co-autoria) de Carlos Gentil-Homem/Estúdio QUID (Nós Não Estamos Algures, 1969; Leilão, 1969; Insultai o perigo, 1971; Estamos no Século XX, 1971; K4 o quadrado azul, 1971; A alegria é a coisa mais séria da vida, 1971; Almada, um nome de guerra, 1971; Alternativa Zero, 1977; e The Living Theatre, 1977) e Fernando Calhau (Quando nasci as frases..., 1969).
Um segundo núcleo é constituído por cartazes portugueses desenvolvidos para contexto cultural ou para intervenção política. São na sua maioria cartazes trabalhados dentro de uma compreensão do medium como suporte de comunicação efémera, composto por artistas plásticos ou designers gráficos, e onde se reúnem trabalhos estética e ideologicamente diferenciados, dos cartazes de artista de E. Melo e Castro, onde a influência da poesia visual e concreta brasileira se manifesta, aos cartazes encomendados pela CODICE – Comissão Dinamizadora Central do Movimento das Forças Armadas, de comunicação popular, ora explorando uma linguagem ilustrativa de fácil apreensão tal como nos cartazes de João Abel Manta e Armando Alves, ora mais elaborada e formalmente complexa como nos trabalhos de Vespeira, Artur Rosa e Justino Alves/M. George.
Um terceiro núcleo, de alargada amplitude temporal, reúne cartazes internacionais, muitos deles recolhidos nas viagens operadas por Ernesto de Sousa, e onde se reúnem desde os cartazes do Atelier Populaire, aos cartazes relacionais de Jean-Claude Moineau, ao inúmeros cartazes ligados às acções de Vostell e do Fluxus.
your body is my body – o teu corpo é o meu corpo é um enunciado que nos confronta com uma encruzilhada, escrevemos no início deste texto. Porventura, seja qual for a direcção a que o enunciado nos conduzir, seremos levados a um mesmo território conceptual, possível de delimitar mas difícil de, plenamente, definir. Ernesto de Sousa ensaiou, diversas vezes, essa definição. Uma das tentativas mais sistematizadas, resultou no texto fundamental que é “Para uma definição do conceito de vanguarda”(1). É, no entanto, num texto de 1978, intitulado “Performar”, publicado no n.º 101 da revista Opção, que a definição do território, de forma explícita, evidencia a sua complexidade, a complexidade do léxico que a procura enunciar, as resistências semânticas e pragmáticas associadas às operações de vanguarda: “Performing arts. Artes da acção. Artes do comportamento. Envolvimento e assemblage. Mixed-media. Simultaneísmo. Teatro livre. Teatro de guerrilha. “Quando as atitudes são forma”. Arte processo. Arte aberta. “Tudo é arte”. Arte pobre. Arte vida. Happening. Events. Performance. O acontecimento como arte. Arte lúdica. Arte ritual. Arte – participação e acção. Arte política. Arte sociológica. Prop-Art. Concertos fluxos. Arte-na-cidade. Arte-na-rua. A nova dança e a arte-do-corpo. Arte total e land art. Arte ecológica. Estes termos e seus referentes, estas expressões têm áreas de significação próprias, contíguas por vezes, opostas também. E uma história diversa. O que todos têm porém é um sentido comum”.(2) Desta forma, o crítico performa a sua própria gramática, revelando-a mais como significantes do que como categorias. São elementos de linguagem, exercícios linguísticos, termos discursivos, mas que confrontando-nos com uma certa incapacidade da linguagem tematizar a acção, levam a uma acção sobre a linguagem, busca de um certo grau zero. Reinvenção da língua. Reinvenção do amor, escreverá Ernesto de Sousa. “O teu corpo é o meu corpo” nada realiza. Expressa um desejo, linguisticamente. A enunciação cria um corpo – uma inscrição verbal – que, por sua vez, anseia ser corporizada, fazer sentido, sentir-se. Ernesto de Sousa falará do cartaz como veículo de intimidade, lá chegaremos; não nos esqueçamos, por agora, da ex-posição.
As exposições são fenómenos vivos, que se espera poderem gerar o diálogo e a crítica susceptíveis para despertarem novas leituras sobre os objectos expostos, o seu processo e contexto criativo. À exposição your body is my body – o teu corpo é o meu corpo. Colecção de Cartazes de Ernesto de Sousa estará, certamente, destinado esse efeito revelador de ideias e formas das vanguardas em Portugal na segunda metade do século XX, dos seus diálogos com as vanguardas internacionais, do papel de Ernesto de Sousa nesta produção e circulação de objectos-ideias-acções e, por fim, na importância – tão pouco trabalhada – do cartaz, da renovação da sua forma e função, e da importância das relações disciplinares entre design e arte contemporânea, no âmbito dos processos de redefinição da forma e função da arte e do design.
(…)
Entre a 1ª e a 2ª Exposições [de Design Português, organizadas respectivamente em 1971 e 1973], teve lugar em 1972 a EXPO AICA SNBA 1972 organizada pela secção portuguesa da AICA dinamizada por jovens críticos como Fernando Pernes, Rui Mário Gonçalves, Egídio Álvaro, Ernesto de Sousa e Pedro Vieira de Almeida. No catálogo da exposição – objecto elegantíssimo desenhado por Carlos Gentilhomem/Estúdio Quid com uma sofisticada capa impressa na Colorprint – publicado em Março de 1973, inclui-se o ensaio de Carlos Duarte “O lugar do design”, texto de referencia no que à produção teórica da década diz respeito, enquadrando a mostra de design industrial no contexto da exposição da AICA, e onde, em explícita confrontação com o regime se cita o cubano Roberto Segre: “o design joga um papel fundamental numa sociedade revolucionária.”.
A EXPO AICA representou, não só uma afirmação da capacidade e tenacidade de uma nova geração de críticos mas, igualmente, uma aproximação e contaminação crescentes entre os campos da arte e o do design que a expressão de Ernesto de Sousa, operadores estéticos, unificava.
Na Seara Nova, em “o mito na vanguarda artística” texto publicado pouco antes de assumir a direcção do IADE, Lima de Freitas referia-se aos críticos como sendo “fabricantes de mitos” e denunciava a indigência do artistas, que mendigavam um lugar no mercado, e da própria crítica. O extremar de posições entre duas gerações de críticos e criadores, confronto que sendo mais radical no contexto artístico se alarga aos campos da arquitectura e do design, fica bem expresso nas escolhas para a exposição – Lourdes de Castro, Helena Almeida, António Sena, João Vieira; um documentário fotográfico sobre o kitsch na arte portuguesa da autoria de Salette Tavares; juntamente com design de ambientes de Sena da Silva e Daciano Costa – e nas tomas de posição expressas nos textos do catálogo, em particular no ensaio de Ernesto de Sousa “Do vazio à Pró-vocação”. A AICA/SNBA voltaria a repetir-se, em moldes idênticos, em Janeiro de 1974, reforçando a natureza ecléctica das práticas e dos discursos, a valorização dos processos e a transversalidade das intenções projectuais, bem expressas no texto de Ernesto de Sousa, com ideias reforçadas após a visita à quinta Documenta de Kassel, “Projectos – Ideias”.
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3. Atitude, forma, intimidade
Em 1969, o projecto curatorial de Harald Szeeman para a Kunsthale de Berna, ajudará, na sua aparente estranheza, a sintetizar parte do trabalhos que autores de vanguarda vinham desenvolvendo e a enunciar um título programático para experiências futuras que se desenvolveriam por mais de uma década: When Attitudes Become Form: Works Concepts Processes Information: Live in Your Head.
“Eram atitudes – internas e pessoais, mas também forma – externa e universal. Eram trabalhos que podiam ser tidos como peças acabadas e processos – operações contínuas – ainda não resultantes num objecto final. Eram conceitos que traziam consigo um ar de distanciamento calmo e intelectual, mas também informação crua, desarrumada e a necessitar de algum tipo de organização”.(3)
Em Maio de 1973, Ernesto de Sousa, ocupando-se de uma secção da Expo AICA SNBA 1974, formaliza um conjunto de convites para a colaboração de diversos operadores estéticos no seu PROJECTOS – IDEIAS:
“ao pedir-te que participes com qualquer projecto ou ideia que possa justificar as características acima definidas (e pode ser uma simples ideia rabiscada num bocado de papel), pedimos-te que lhe juntes toda a documentação visual ou sonora de que disponhas; nomeadamente fotografias, slides, filmes, plantas, gráficos, etc.”(4)
A valorização do processo criativo e da sua documentação arquivística, interessavam particularmente a Ernesto de Sousa quer na perspectiva, marcante nas vanguardas das décadas de 60 e 70, de uma compreensão da crítica de arte enquanto obra de arte, quer na perspectiva, não menos vinculada a estas vanguardas, da generatividade processual, da sua abertura e do potencial criativo gerado pela sua partilha.
Dez anos antes de PROJECTOS – IDEIAS, projecto desenvolvido sob o lastro da When Attitudes Becomes Form, por ocasião da exposição individual de trabalho de design gráfico de Armando Alves (Escola Superior de Belas Artes do Porto, 9-24 de Janeiro de 1964), Ernesto de Sousa escreve para o catálogo da exposição um extraordinário texto intitulado “Artes gráficas. Veículo de intimidade”.
A exposição individual de Armando Alves reunindo um conjunto notável de trabalhos de design gráfico com uma qualidade gráfica assinalável, de que a publicidade em estilo internacional para a Cinzano Portugal, a campanha saul bassiana para A Mutual do Norte ou o uso narrativo da ilustração a par da sobriedade tipográfica da capa d’O cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner Anderssen eram bons exemplos.
No ensaio escrito por Ernesto de Sousa para o pequeno catálogo da exposição, revela um conjunto de preocupações ligadas ao carácter processual das artes gráficas, à tematização da autoria e da produção, que conduz a uma reflexão onde o design gráfico surge como disciplina de mediação entre estética e política, arte e comunicação, discurso autoral e partilha comunicacional.
Publicado dois anos antes de Design e Comunicazione Visiva de Bruno Munari e quatros anos antes de La speranza progettuale de Tomás Maldonado, de certa forma antecipa, de talvez mais profunda que Munari e menos explicitamente politizada que Maldonado, aquelas ulteriores reflexões sobre design.
“(...) devemos sublinhar”, lê-se nesse ensaio, “que as artes gráficas não pertencem, por sua vocação mais rica, ao número de artes cujo executante não é o autor (como a música, por exemplo). Por mais mecânico e técnico que seja o processo de reprodução (impressão em geral, fotogravura, heliogravura, offset, serigrafia, etc.), o autor da obra de arte gráfica deverá intervir, controlar, dirigir todo um exercito de técnicos, propriamente ditos, e de operações, as quais deixam sempre margem à intervenção e à criação finais”.
Há um cartaz concebido e executado por Ernesto de Sousa para a sua conferência na École supérieure d’arts visuels de Genève, em 1981 que, quase 20 anos após a publicação de “Artes gráficas. Veículo de intimidade”, trabalham, coerentemente, as potencialidades do cartaz de artista.
Executado manualmente, a composição do cartaz a que me refiro, Ernesto de Sousa. Culture et auto-gestion (Portugal) trabalha com caligrafia, desenho e colagem. O cartaz evidencia, de uma forma muito imediata, um modo particular de pensar o cartaz como medium comunicacional e como suporte artístico dentro de uma preocupação, mais vasta, de construção de um discurso crítico sobre produção cultural e autogestão.
Dir-se-ia que neste, como em outros trabalhos de Ernesto de Sousa e de autores que ele admirava, há um trabalho sobre a linguagem onde o literal dificulta a apreensão plena do intelectual ou, melhor dito, onde a afirmação de um programa pode não manifestar, de imediato, a importância de uma poética. Este lugar de (des)encontro é o ponto crítico da relação entre um discurso amoroso (no sentido barthesiano) e um discurso político que cremos determinantes no interesse de Ernesto de Sousa pelo cartaz, pelo design gráfico e pela apropriação de suportes públicos e democráticos por parte dos artistas de vanguarda.
Ernesto de Sousa. Culture et auto-gestion (Portugal) é um cartaz de artista que assume todas as condições para o uso de um cartaz por um não-artista. Desde o formato corrente da folha de papel (o A3), aos meios e técnicas de composição, produção e reprodução, esta obra oferece ao autor o controlo total sobre o processo produtivo (da concepção à reprodução gráfica). Exemplar de uma gradual caracterização formal de um estética do autor como produtor esta obra aproxima-se da linguagem de boletins, folhas volantes e cartazes (que terão a sua versão mais depurada nos cartazes populares, embora orientados por arquitectos e artistas, para acções do SAAL) culturais e políticos e, no entanto, o contexto da obra é manifestamente outro, o de uma conferência, proferida pelo mais destacado crítico e curador português de arte de vanguarda no espaço académico de uma das mais estimulantes escolas de design e cultura visual suíças da décadas de 70, 80 e 90, onde, entre inúmeros eventos, terá lugar a exposição Hyperbole: Serra, Lawler, Graham, Godard (1990).
Claramente mais próximo de um cartaz ingénuo, como aquele que a Organização do Grupo Cultural do Liceu executou para a conferencia proferida por Ernesto “Aspectos do Cinema Moderno” (1965), do que dos cartazes de composição formal cuidadosamente elaborada, na definição da grelha, da escolha tipográfica, da definição das cores, na afinação gráfica no processo de impressão como no cartaz de Armando Alves “O Gebo e a Sombra” (1966) ou no cartaz, mais próximo da arte conceptual, como “Estamos no século XX na época que não morre” (1971) de Carlos Gentil-Homem e Ernesto de Sousa. Em Ernesto de Sousa. Culture et auto-gestion (Portugal) a imagem não se percebe dissociada das suas motivações, “é um apelo ao que sabemos do objecto, é a presença do ausente”. O ausente é sempre um outro, um corpo, outro-corpo, sentido que se constrói entre seres (inter-esses), entre corpos. Para Ernesto, “As artes gráficas tendem, pois, a reunir num objecto estético único a experiência e a explicitação das coisas e de nós próprios” – seja no cartaz de intervenção política, associado a uma acção, como nos cartazes do Atelier Populaire, seja no cartaz tomado como suporte editorial, como N’Os pós-objectuais jugoslavos” / “Clube Opinião” (1975) de Ernesto de Sousa. As artes gráficas são veículo de mediação, de relação e intimidade. O cartaz como começo ou re-começo de um diálogo, apelo à recepção activa, à apropriação, à troca e à partilha. Como não acreditar que deste dar-o-corpo, nos não virá em troca o vosso corpo também: O MEU CORPO É O TEU CORPO, O TEU CORPO É O MEU CORPO.
No futuro, lá estarás com o teu olhar límpido. Utopia.
- Publicado em República, 28 de Dezembro de 1972.
- “Performar”, Opção, n.º 101, 30 de Março de 1978; republicado em Ernesto de Sousa/Revolution My Body. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pp. 308–310.
- Michael Archer, “Fora do Estúdio”, in Live in Your Head. Conceito e Experimentação na Grã-Bretanha 1965-75. Lisboa, Museu do Chiado, 2001, p. 24.
- Ernesto de Sousa/Revolution My Body. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 223.