Bibliografia

D. Quixote e Otelo

Imagem: Revista de Divulgação Cinematográfica, 2ª série, n.º 21
Março de 1958

DOM QUIXOTE. Realização: Grigori Kozintsev. Segundo a obra de Cervantes. Música: Orquestra Filarmónica de Leninegrado sob a direcção de N. Rabinovitch. Interpretação: N. Tcherkassov, Youri Tolouveiev, S. Birmane e S. Grigonieva.

OTELO. Realização: Sergi Youtkevitch. Operador: E. Andrikanis. Música: Kahtchatourian. Som: B. Volsky. Interpretação: S. Bandartchouk, A. Popov, I. Skobtséva, V. Sochaisky e E. Vesnik.


Alegres Foliões do veterano do cinema russo, Alexandrov, data de 1934. Por um curioso acaso os dois primeiros filmes russos projectados em Portugal depois deste último, são também dirigidos por dois antigos do cinema soviético: Yutkevitch (Otelo) e Kozintsev (Dom Quixote). Estes dois cineastas aparecem associados em 1922, juntamente com Guerassimov e Trauberg, na organização de um dos vários grupos que condensaram as primeiras tendências cinematográficas depois da Revolução, a Fábrica do actor excêntrico (Feks). Na mesma época Dziga Vertov, fundava o grupo Loucos do Cinema (Kinoks) e Kuletchov, professor de Pudovkine, fundava o Laboratório Experimental. Se a estes nomes acrescentarmos os de Protozanov, um veterano da época; de Ermler, cuja obra se aparentava então à do grupo Feks; Eisenstein, que vinha do teatro expressionista de Meyerhold; Alexandrov que começou como assistente de Eisenstein; e Dovjenko – teremos enunciado os nomes mais importantes da primeira fase do cinema soviético (anos 20). Além de Meyerhold, outro homem do teatro russo iria influenciar a nova escola com as suas célebres teorias sobre a interpretação naturalista: Stanislavski. Nesta primeira época, quatro personalidades se tornariam rapidamente preponderantes, os quatro grandes: Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko e Dziga Vertov. Este último foi um dos primeiros a revelar-se, com a célebre teoria do cinema-olhar: o cinema devia limitar-se a surpreender a realidade, toda a obra criadora se concentraria na montagem do material assim colhido. A montagem, mas num sentido mais lato foi de resto uma das principais características do cinema russo desta época, sendo célebres os estudos teóricos e práticos de Kuletchov (cuja tendência didáctica se afirmava já, continuando até hoje a ser um dos principais professores de cinema na Rússia), e de Eisenstein (teoria da montagem-atracção), etc. Ao contrária de Dziga Vertov, o grupo Feks pretendia utilizar no cinema os recursos mais espectaculares do Teatro, do Music-Hall e do Circo, além de todas as trucagens e outros meios específicos do cinema. Foi neste estilo que Kozintzev e Trauberg realizaram o filme As Aventuras de Octubrino. Mas estas experiências de "avant-garde", como o imenso Aelita de Protozanov, filmado em décores construtivistas, perderiam rapidamente interesse em face de um cinema novo, directamente relacionado com as necessidades da época. O Couraçado Potemkin (onde Eisenstein conseguia sintetizar as teorias da vanguarda, literária e teatral, as experiências de Dziga Vertov e Kuletchov, com o conhecimento das obras do americano Griffith), foi a obra-prima da época, e ainda hoje é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos. Com os anos 30, surge o cinema sonoro e os cineastas mais importantes desse período passam a ser, Nicolas Ekk (O Caminho da Vida), Kozintzev e Trauberg (trilogia de Máximo), Yutkevitch (Montanhas de Ouro e Contraplano), Ermler, Romm e Donskoi (Biografia de Gorki); sendo também de assinalar os grandes êxitos isolados de Legotchine (Ao Longe, uma Vela) e dos Vassiliev (Tchapaiev). Com os anos 40 segue-se um período em que o cinema russo é directamente influenciado pela guerra, aparte algumas excepções notáveis como Alexandre Nevsky (1938) e Ivan, o Terrível (1945), de Eisenstein. Estes filmes contam-se entre os maiores êxitos do cinema histórico ao lado de um (Pedro, o Grande de Vassili Petrov, 1937), e importantes biografias de sábios, músicos, etc.

Nos últimos anos 40 e primeiros 50 o cinema russo atravessou uma crise profunda, cujas características principais foram a falta de espontaneidade formal e um academismo de conteúdo em que os melhores autores pareciam marcar passo. Formara-se desde 1945 um potente quadrunvirato com os nomes prestigiosos de Guerassimov, Alexandrov Tchiaurelli e Romm. Profundas transformações vieram depois alterar este estado de coisas. Actualmente verifica-se não só o renovo dos antigos, como o aparecimento de inúmeros novos realizadores, tais, Samsonov, ex-colaborador de Guerassimov, que se distinguiu na Europa em 1955, aos 31 anos de idade, com A Cigarra, segundo Tchekov; e Tchukhrai, realizador de 41.° que se tornou célebre no Festival de Cannes do ano passado, tendo-lhe sido concedido um "prémio pela originalidade do argumento, qualidade humana, e grandeza romanesca". Este filme está já anunciado para ser exibido nos nossos ecrãs. Teremos assim entrado no cinema russo actual com o conhecimento de duas obras devidas a veteranos e uma representativa da novíssima geração. Com estas notas não pretendemos (o que seria absurdo) traçar um esquema, mesmo elementar do cinema russo, mas apenas situar estes três filmes.

Há talvez duas espécies de cinema, que umas vezes se opõem e distinguem e outras se cruzam e interpenetram. Num caso colocaríamos o cinema indirecto: reconstituir e reviver é a sua tendência, reelaborar um material do passado, vivido ou inventado, é a sua vocação. Os resultados diversos são o filme histórico, a biografia, a cinematização dos grandes clássicos literários ou teatrais etc. Nenhuma forma de expressão até hoje inventada, permite viajar no tempo com tanta sensação de autenticidade como o cinema. Isso explica a frequência com que os actores põem barbas e ajustam armaduras… Mas, paradoxo do conhecimento que uma vez cristalizado em palavras ou imagens perde logo actualidade, transformando-se necessariamente em memória do passado; aquela autenticidade é sempre relativa e discutível. Precária e difícil. Daí que esta espécie de cinema caia tão frequentemente no ridículo e no gratuito. Um cinema de barbas… A outra espécie, cinema directo, alimenta-se do presente. Mas também neste caso, o cinema está sujeito àquele paradoxo. Também o presente tem que ser reconstituído. E por isso certas obras visando o passado, sobretudo o passado recente, são tão actuais como as que se inspiram no dia a dia de hoje. Não há melhor ilustração disto que as experiências de Dziga Vertov, realizadas segundo a teoria do cinema-olhar. O objectivo desta teoria era precisamente negar aquele paradoxo, iludir a dificuldade… Para isso os operadores iam para a rua disfarçados, escondiam as máquinas e a aparelhagem, e procuravam por todos os meios surpreender a realidade sem intervir nela. Os resultados desta concepção mecanicista do realismo conduziram como não podia deixar de ser a um beco sem saída, a um muro diante do qual se inscrevia em branco a mesma dificuldade. Para sair desse beco, o cineasta devia prever o material filmável (escolhendo, e portanto intervindo na realidade), e depois proceder à montagem, imprimindo às imagens um ritmo e um significado que em definitivo, iriam constituir a substância da obra de arte. Foi exactamente o que fez Jean Vigo em À Propos de Nice, obra que intervém profundamente no real, apesar da câmara ter sido escondida dentro dum chapéu de coco para surpreender os veraneantes de Nice. O mesmo equívoco tem surgido com frequência a propósito do chamado neo-realismo italiano. Ainda há quem julgue que a característica fundamental desta escola, consiste em o cinema ter vindo para a rua. Mas as magníficas reconstituições de Senso e as trucagens de Milagre de Milão definem melhor o fundamento moral do neo-realismo, do que essa atitude relativa ao real objectivo. Ponhamos, portanto, como ponto assente que aquelas divisões nada têm a ver com, por exemplo, o conceito de realismo; que todo o cinema, como toda a arte, como todo o conhecimento, é de interpretação; e que em toda a obra de arte, por muito que ela verse o passado, há sempre, mais ou menos, uma viva preocupação de actualidade, e uma proposição de futuro.

E no entanto, grosso modo, a divisão existe. Senso, As Bruxas de Salém e D. Quixote, apesar do que profundamente nos dizem sobre o presente, versam, e de algum modo reconstituem, o passado. O 41.°, (história ocorrida em 1919–20), A Grande Ilusão de Renoir (guerra de 14–18), As Vinhas da Ira de Ford, Roma, Cidade Aberta de Rosselini, Os Melhores Anos da Nossa Vida de Wyler ou Paragem de Autocarro de Logan, são obras que exprimem directamente os tempos modernos, acrescentando sempre alguma coisa ao retrato do que somos. Qualquer destes filmes ajuda a explicar o telegrama noticioso de ontem, que lemos no jornal de hoje. Os limites desta divisão são imprecisos e dependem de um conceito em que a forma e o estilo pouco tem que ver, de modernidade. (Quase sempre porém, se tenta definir modernidade em termos de forma e de estilo). D. Quixote e Otelo são filmes de interpretação. Tal como aconteceu com o cinema japonês (e infelizmente quase ficámos por aí), os primeiros filmes russos que nos chegaram não só versam o passado, como o fazem indirectamente através de obras literárias célebres, expressão da expressão de Cervantes e Shakespeare. Parece que o acordo c fácil, sobre o passado, e sobre as frustrações do passado. D. Quixote lutando pelos fracos e Otelo pela pureza. Mas estas frustrações são relativas. A sem-razão de D. Quixote e de Otelo é provisória, e a obra de arte deve dar-lhes razão. E neste terreno que podemos avaliar primeiramente, dos resultados das empresas cinematográficas agora cometidas.

E assim, sem falarmos ainda de forma e de estilo, sem nos preocuparmos tão pouco com um critério demasiado primário de fidelidade, verificamos que Otelo confirma amargamente essa história do herói contra a frustração e a morte. Enquanto D. Quixote é apenas uma ilustração honesta e inteligente da obra de Cervantes, não ressaltando do filme aquela profunda sensação de alívio que nos proporciona a leitura de Cervantes, numa espécie de demonstração pelo absurdo, da razão do herói. O filme de Kozintzev, apresenta no entanto alguns aspectos particulares de grande interesse. Em primeiro lugar, a magnífica interpretação de Tcherkassov, o maior actor russo actual, o extraordinário Alexei de Pedro, o Grande e Ivan, o Terrível. A sua interpretação de D. Quixote ajuda-nos s compreender as palavras do actor: "Tornou-se-me impossível imaginar-me apenas actor. Sobretudo porque, repetindo um papel, filmando no cinema, representando no teatro, não deixo nunca de me sentir homem, ligado por mil fios à vida multiforme do meu país". (1)

Não deixemos também de assinalar a cor do filme de Kozintzev que é uma das mais perfeitas realizações de claro-escuro no cinema e que exprime dramaticamente o assunto. Filme portanto correcto. Não nos perturba o conhecimento do livro de Cervantes, e podemos lê-lo ou relê-lo, sem que personagens ou ambientes empobrecedores, criados pelo cinema, venham interferir com a leitura. Um pouco como acontece com o filme recente de Autant-Lara, Le Rouge et le Noir, relativamente ao livro de Stendhal. Estes filmes têm um papel passivo em face do alvo literário; são úteis porque incitam e não prejudicam a respectiva leitura. A roupagem imagética que nos fornecem, dos heróis e dos ambientes, é neutral… um pouco como as ilustrações encomendadas pelo editor e impressas ao lado do texto. Que a ilustração não seja errada, eis o essencial. Ela começa a ser errada em filmes como o recente Guerra e Paz, apesar de que mesmo películas como esta têm também o mérito de trazer novos leitores para o livro, o seu valor cultural começa a ser discutível.
O panorama é completamente diferente em filmes como o Otelo de Yutkevitch (o mesmo aconteceu com o Otelo de Orson Welles, por idênticas razões embora com um sentido e resultados necessariamente diversos). Nestes filmes o realizador não se restringe a interpretar a obra literária dentro dos limites da mera ilustração. A sua interpretação é activa. É recreação. Deixemos de parte a questão secundária da fidelidade ao texto de Shakespeare, se bem que a este respeito não possa haver dúvidas. A demonstração porém, levar-nos-ia longe. Seria indispensável lembrar quanto esta obra de Shakespeare tem sido objecto de estudo pelos artistas russos, especialmente por Stanislavski. O conhecimento crítico da célebre encenação deste último por Yutkevitch é evidente em todo o filme. Não deixaremos porém esta questão sem, pelo menos, mencionar um argumento de autoridade, neste caso a do crítico inglês Derek Prouse (2): "…o resultado final, significativo e amadurecido, traz a marca de um assunto profundamente compreendido e sentido". "As implicações morais que Yutkevitch descobriu na obra, fazem do seu Otelo um autêntico herói trágico… Uma elevada e altamente satisfatória exposição da peça, este Otelo russo deve ser classificado entre os melhores Shakespeare filmados", Interessa esta opinião, apenas na medida em que nos elucida sumariamente no que respeita à fidelidade a Shakespeare. O que nos diz o filme, como filme?
Duas características nos parecem ser de relevar. Por um lado, a preocupação em acentuar no filme a força de tudo o que normalmente está em franca contradição com as cores da tragédia: os seus personagens são cheios de vida, os edifícios exprimem a harmonia das coisas claras e simples, os tons são calmos, uma natureza favorável ao homem prepondera. Desdémona, mais calma do que submissa, quase planturosa, não tem nada da vítima trágica destinada a ser imolada a uma fatalidade incontrolável. O filme exprime assim, fisicamente, o amor à vida. É o amor de Otelo a uma vida pura. As causas da tragédia não têm nada de obscuro ou de ambíguo. Neste sentido também a personalidade de Iago está de acordo com a interpretação de Stanislavski, o qual reconstitui o passado para encontrar as motivações da intriga. O mal chama-se mal. A intriga e a dissimulação constituem-se claramente como os inimigos da vida. Mas, por outro lado, Yutkevitch desvia-se deliberadamente da interpretação naturalista de Stanislavski, indo ao encontro daquilo a que o grande encenador teatral chamava o "pathos declamatório". O realizador concentrou assim o estilo trágico na interpretação, criando um conflito que exprime o fundo da tragédia, entre a beleza potencialmente criada pelo homem e consentida pela natureza, e a alienação dessa potência. Para reforçar estes dois planos em que se processa a obra, o realizador confere uma função dramática precisa a intensa ao ambiente e acentua o carácter simbólico da interpretação. Para o conseguir dá à cor um papel activo e reforça o jogo dos actores com uma exaustiva utilização de símbolos plásticos. Por exemplo, todo o diálogo em que Iago começa a conduzir a boa fé e a honestidade de Otelo num labirinto de dúvidas e de inquietações, decorre na praia, entre redes de pesca, cujas malhas envolvem os actores. O juramento entre ambos e o diálogo violentíssimo que o antecede, dão lugar a um jogo complicado de interpretação, todo ele tendo por eixo uma enorme âncora: o destino de Otelo decide-se… A água límpida através da qual o vemos num dos monólogos, turva-se quando o seu espírito se turva. O magnífico templo grego, de uma alvíssima pureza, em ruínas, aparece contemporaneamente com a ruína da harmonia em Otelo. Uma gaivota, um elmo, a espada de Iago, em cujo punho se espelha a traição, etc., são outros tantos símbolos com que Yutkevitch reforça os símbolos da tragédia: o lenço, a lâmpada que se apaga. A interpretação e os objectos constituem assim uma linha simbólica que se inscreve por oposição em ambientes naturais, límpidos e essencialmente descritivos. Esta oposição desaparece num plano comum, à medida que a tragédia se Yutkevitch, durante as filmagens de Otelo intensifica e dialeticamente se resolve. O leito de morte de Desdémona voga num décor banhado em esbranquiçada bruma, tudo se dilui numa igual substância trágica. Tudo se passa como se de uma amálgama de acontecimentos quotidianos e de ambientes naturais, os objectos e as pessoas se destacassem numa evidência simbólica dos factos trágicos. Não se trata, portanto, do simbolismo fácil duma humanização dos objectos que pavimentam a tragédia.

Este partido anti-naturalista da interpretação levou-o o realizador ao extremo, de todo se desinteressando dos efeitos de verosimilhança, o que não deixa por vezes de ser excessivo, quando desnecessário; seja a luz duma candeia-símbolo que não altera em nada a iluminação do décor, ou o actor dizendo um aparte no mais puro estilo teatral. E no entanto, quando isso lhe convém dramático-simbolicamente, Yutkevitch resolve estes problemas com uma rara inteligência: o diálogo entre Desdémona e Cassio, por exemplo, surpreendido no punho espelhado da espada por Iago, e que é normalmente um aparte na encenação teatral. Este simbolismo e esta interpretação sublinhada não são estranhos às origens estéticas do realizador, e à Fábrica do actor excêntrico. Yutkevitch renova também certos processos de montagem clássicos. Lembremos os grandes planos intercalados na cena do Senado, fora do contexto da acção principal, que têm quase o efeito de planos-atracção. Repare-se também na ousada montagem de planos cruzados dentro do navio no monólogo alucinado de Otelo. A estes recursos da linguagem cinematográfica, Yutkevitch acrescentou outros, enquadramentos significativos (plano com as mãos de Otelo), efeitos de luz (iluminação dos olhos de Otelo quando descobre a traição), etc. 

Qual o significado desta realização contrastada? Deste avançar do homem no mundo que ele quer harmónico e onde deixa o rasto doloroso dos símbolos da tragédia? É que, como bem o compreende Yutkevitch num projecto longamente amadurecido e expresso desde 1938 (3), "Otelo não é de nenhum modo o drama burguês do ciúme". Não é uma história triangular, mas sim a tragédia "da luta patética pela verdade… …campanha contra a mentira, contra a ambiguidade". A obra de Shakespeare "mostra-nos a ascensão de um homem honesto, de um homem apaixonado, que se eleva acima do caos medieval e que procura na luta o caminho para um novo ideal humanitário… Otelo é apaixonado, porque a sua actividade é válida". Mais precisamente, esta obra é a tragédia da amizade e da confiança traída. O ideal de Otelo é a harmonia nas relações humanas; dessa harmonia faz parte a confiança nos outros, e a necessidade de acreditar apaixonadamente na amizade. É isto que confere à peça o seu carácter universal. Acreditar nos outros é de facto o fundamento de todo o humanismo. A tragédia de Otelo é a traição de Iago. Transferida do seu objecto pela mentira e pela duplicidade, readquire todo o sentido no final, com Desdémona morta, quando o herói descobre a verdadeira traição. Yutkevitch compreendeu-o bem ao iluminar os olhos do herói com a revelação da verdade e ao sublinhar a derrota de Iago, com a morte de Otelo. Também em todo o filme sentimos espelhado no ambiente, por um lado, a harmonia potencial (décor, cor), por outro, o lento caminhar da paixão e da confiança traída (interpretação sublinhada, objectos simbólicos). Há ainda um ponto fundamental que é necessário acentuar, pois de contrário é impossível compreender o filme e, profundamente, a tragédia. É o carácter apaixonado e violento do herói. No filme, como na peça, esta feição de Otelo contrasta com a habilidade inteligente e perversa de Iago. Nesta obra, de Shakespeare, em que Yutkevitch descobre justamente um carácter autobiográfico, o dramaturgo esteia o conflito precisamente nesta verdade humana profunda: o choque da força da verdade com a habilidade da mentira. O princípio da verdade vence mas, tragicamente, exige para isso a destruição das pessoas físicas. No filme isto é sublinhado pela interpretação violenta e apaixonada de Otelo, enquanto Iago mantém a serenidade, aparentemente razoável, dos que não têm paixão. Só no fim, com a morte de Otelo e a derrota da vingança longamente arquitectada, Iago se lança e revela uma violência que nenhum ideal humano justifica. A mentira, num rápido instante, toma corpo: nesse salto de fera acossada, Yutkevitch acusou a derrota final de Iago, e assim podemos tirar a conclusão moral, exemplar, de todas as grandes tragédias: podemos continuar a acreditar nos outros.

  1. Sight and Sound – Verão de 1956.
  2.  “Notes d’un acteur", cit. Cinema 57, n.º 22.
  3. Cinema 56, n.º 10.