Regina Guimarães, Encontros em torno de Ernesto de Sousa, Revolution My Body (org. João Sousa Cardoso), Porto, Caldeira 213
Outubro de 2000
Estamos no início dos anos 60. O cinema precisa de novos olhares, de nova maneira e de outra cidadania num país onde a cidadania é sonegada. Lisboa.
Há a cidade antiga e a nova cidade (essa que estará no centro dos Verdes Anos de Paulo Rocha). Se na cidade nova debalde se procuram empregos precários e em vão se busca refúgio debaixo do guarda-chuva de um transeunte, na cidade antiga ainda sobrevivem mestres de robertos e fantochadas, sorrisos francos e esquivos, vizinhos excêntricos, fachadas em ruínas que escondem mansões à espera de serem ocupadas. Montagem paralela. Mundos em conflito. Uma cidade é um convite ao desvio. Disseram os surrealistas que a linguagem foi dada ao homem para que ele dela fizesse um uso surrealista. Extrapolando: a cidade terá sido construída para que o desejo de desconstruir vença a paralisia conservadora.
A nova cidade, governada por cínicos senhores de fato, gravata e sobretudo lúgubre, não parece promessa de um amanhã mais risonho. Porém no meio dos prédios, tão feios quanto funcionais, crescem ainda hortas onde por milagre habitam espantalhos (primos direitos dos robertos) a quem é sempre possível pedir um casaco emprestado e porventura frangos desterrados que só pedem para cair na panela certa.
Seja como for, o filme de Ernesto de Sousa anuncia, à laia de desenlace ou moral da fábula, que o fim é só para os que desistem e portanto o futuro pertence de direito aos resistentes.
Um bom filme não se descreve. Não somente porque é feito do rigor poético das imagens mas porque a montagem liga as imagens entre si, transformando-as em máquina sensível de produzir infinitos sentidos. É também árduo e perigoso falar das intenções e dos princípios que presidiram à sua feitura, quando não se teve o privilégio de trocar impressões com o autor e, por indesculpável lacuna, se desconhece o contexto global da criação onde surge a obra. Mas é sempre possível (e é esse, penso eu, um dos desejos que funda o aparecimento de uma obra) é sempre possível e vertiginoso de possibilidades um espectador falar com uma obra, dado que a obra o descobre e revela mais ainda do que se descobre e revela.
Depois de nos submeter a uma longa cena de traulitada (robertos oblige...) – e a duração é aqui essencial na medida em que o tempo se torna portador de interpretações confluentes ou centrífugas em relação à natureza do conflito, da sua violência e da expressão elementar da sua violência – depois dessa cena-genérico em que dois robertos incansavelmente se digladiam como puras mãos de um corpo oculto e inquieto, Ernesto de Sousa obriga-nos a mergulhar numa cidade que já aparecera em epígrafe. Dessa cidade, onde Dom Roberto deambula, povoada de pobres diabos – contudo um pobre diabo é também, potencialmente, alguém que pode despojar-se da humildade que o mantém submisso e virar deus e diabo em pessoa – dessa cidade a câmara propõe-nos, a dada altura, uma imagem-chave, uma metáfora do regime opressor, dois surdos-mudos em conversa, primeiro ícone de substituição das duas mãos entregues também elas a uma acção privada de algo, como mais tarde o será o casal de marginais (para estes últimos, no entanto, a privação constitui o principal motor da acção, da criação). Todo o trabalho do filme converge para a transformação de uma cidade hostil, governada pelos inimigos dos pobres (cães ou artistas de rua) num território passível de ser desviado do seu destino pequeno-burguês (eivado de intolerância fascizante) por obra e graça da imaginação, ou seja a capacidade de engendrar novas imagens: o engenhoso candelabro-guarda-chuva ou o móvel pintado na parede em trompe l’oeil, mas também o automóvel fantasista do morador do pátio.
A poética desta cidade supernova constrói-se significativamente em torno do cenário principal da casa em ruínas, que o casal de squatters avant la lettre tornam precária e maravilhosamente habitável. E as cenas de aclimatação dos amantes, um ao outro e ao seu primeiro lar, lembram antes de tudo o imaginário anarquista de um Chaplin. É consabido que Dom Roberto é um filme inaugural para uma fase de pesquisa estética na cinematografia portuguesa de autor, que ficou conhecida pelo termo genérico de Cinema Novo, e que genericamente corresponde à chegada em força ao país dos brandos costumes das propostas inovadoras do neo-realismo, nado na Itália: filmagens em cenários naturais, escolha de temas, personagens, gestualidade e gestos colhidos no universo dos humilhados e ofendidos e consequente rejeição dos chavões produzidos pelos clássicos americanos e europeus, abandono das convenções fossilizadas em favor de uma fluidez da narrativa mais próxima do vivencial e do documental, adopção de uma subtil paleta de cinzentos no exacto oposto do dramatismo expressionista que moldara o melhor do cinema antes, durante e imediatamente após a segunda guerra mundial.
Todavia, Dom Roberto possui a qualidade euforizante de ser um filme optimista, um filme de combate, não apenas contra o regime salazarista vigente, mas contra todos os sistemas virtualmente ameaçadores da liberdade que imponham a formatação dos espíritos. Como aparece manifesto na cena da árvore de natal improvisada, o sonho é uma parte mais indestrutível do futuro do que qualquer certeza do presente. E por isso a fita quase literalmente remata com o enunciado paradoxal de que a casa do mundo pertence aos desalojados.
É bom ver em 2000 este filme feito com um requinte dramatúrgico ao nível dos diálogos e do recorte das personagens comparável aos momentos mais arrebatadores de uma tragédia grega – no fundo, trata-se de uma pasmosa discussão acerca da cidade e da cidadania. É bom ver em 2000 um filme audaz – enquadramentos, continuidade e montagem escapam com rara felicidade ao já visto/já adivinhado. Um filme que glosa as mentiras do amor necessárias para que a verdade possa explodir, que nos diz que os danados da terra defenderão as suas torneiras e canalizações e livrarão o mundo dos chulos e dos delatores. Um filme que é como quem diz o fascismo não passará porque, e passo a citar Dom Roberto “o que é preciso é ser feliz”.
Note-se que Ernesto de Sousa, à imagem das suas personagens, procede a uma utilização desviante dos símbolos e das figuras: os protagonistas sobem escadas não para se aproximarem do céu mas para ficarem mais perto de si; a chuva diluviana não é o preço a pagar pela redenção; o flash-back não explica, apenas introduz ruptura no fluxo da relação entre a vida mental e as novidades do quotidiano; a pobreza não é digna por ser servil, bem pelo contrário.
A destruição final do ninho a grande custo construído pelos protagonistas precede a sua apoteótica saída do pátio. Eles, os nossos heróis, são ainda mais belos e comovedores do que a carripana de lata, cujo motor finalmente arranca, e a sua involuntária partida anuncia-se como início de uma indizível aventura – mais uma vez paira a sombra da asa de Chaplin, mas de um Chaplin que não caminhasse pelas vias do burlesco, preferindo-lhes a estrada mais dura de uma realidade à qual é necessário arrancar a ferros o imaginário a fim de o revelar. Porque, como afirmou o poeta surrealista John Mayoux, o imaginário é uma categoria do real e reciprocamente.