Nuno Faria, Ernesto de Sousa e a Arte Popular – Em torno da exposição Barristas e Imaginários, Guimarães, CIAJG
2014
[Excerto]
Ernesto de Sousa (ES) desejou e quis assimilar e partilhar tudo mastigar, comer, dizer, transmitir. Foi esse desejo de totalidade, do mundo, dos outros e das coisas que conduziu a sua desenfreada e generosa busca, numa antropofagia radical e total, que "o tempo trabalha terrivelmente contra nós ... "Aquilo que o inquietava era "a grande aventura lúcida da transformação do mundo", o que procurava era "a descoberta íntima e profunda das múltiplas manifestações ( ... ) da arte popular", “o fundamento das práticas propiciatórias dos acontecimentos futuros, as raízes da acção e do amor".
A obra de ES, fragmentária por vocação e por imperativo, e até nisso fundamentalmente contemporânea, é uma obra para as pessoas, para os iniciados na vida, pouco formal para a academia, brutalmente fértil enquanto modus vivendi.
A questão do tempo passado, presente e futuro, aflora em permanência nos escritos de ES. O pensamento dinâmico do autor torna instáveis os planos temporais, destruindo qualquer hipótese de concepção teleológica da História e de linearidade do tempo histórico. Formulações tais como "duração infinita da vida humana" ou "não há começo sem raiz" denunciam uma liberdade discursiva – ao nível da produção de conceitos por um lado, e uma abertura ao mundo por outro lado, marcada por uma predisposição para a investigação, que é mais uma procura do que propriamente uma confirmação de ideias forjadas a priori.
O interesse que ES dedica à arte popular é exemplar e elucidativo dessa procura de grandes perspectivas cujo alcance era, segundo o autor, numa formulação que poderia ser uma síntese do seu ubíquo e polimorfo trabalho de investigação: "( ... ) a posse de si próprio e o prolongamento do homem no outro homem constituem a grande aventura da humanidade e a sua sobrevivência."
Assim se detém em existências e obras, se assim lhes podemos chamar sem correr o risco de as formalizar demasiado, irredutivelmente singulares, excepcionais à norma e ao cânone, inclassificáveis mas, paradoxalmente, legíveis enquanto produção de diferença e de alteridade dentro de uma continuidade sustentada pela transmissão da cultura profunda, das raízes, e pela ligação à natureza e ao meio.
Ernesto de Sousa percebe a profunda ligação existente entre o mundo natural e o homem, que se estabelece justamente a partir do momento em que há separação entre homem (sujeito) e a natureza (objecto), a compreensão da existência objectiva da natureza". O diálogo que tece com Franklin é aliás bem elucidativo do encontro entre as noções e as estratégias da arte popular e da arte culta.
Há, a esse título, dois trabalhos iniciais seminais na produção teórica de ES sobre a questão da arte popular ou arte ingénua, como preferia designar: o ensaio "Conhecimento da arte moderna e popular", que publica em 1964, como separata do número 83 da revista Arquitectura, e o livro Para o Estudo da Escultura Portuguesa, que publica em 1965 (Porto, Ecma) e cuja segunda edição tem a chancela dos Livros Horizonte (1973). Vale a pena que nos detenhamos sobre os dois estudos, pois, ES contêm o essencial da teoria de ES sobre a questão e sobre aquilo que é, sentido lato, a sua concepção daquilo que entende por produção, artística e olhar estético.
Estes trabalhos definem abordagem; os princípios teóricos e a práxis de ES. E facilmente perceptível que ambos estudos resultam de uma investigação levada a cabo no terreno, vivida experienciada. Não é novidade que o interesse pela arte popular se manifesta cedo no percurso biográfico de ES. A esse propósito, o antropólogo João Leal, que tem levado a cabo uma importante e esclarecedora pesquisa sobre a semântica e a recepção da cultura popular e a sua instrumentalização em diversos contextos, sobretudo durante o Estado Novo, citando uma referência a uma carta de ES ao seu amigo e confidente Eduardo Calvet de Magalhães (publicada na cronologia coligida por Miguel Wandschneider no catálogo da exposição Revolution My Body), faz notar que "no decurso deste seu percurso artisticamente diversificado, Ernesto de Sousa desenvolveu um sólido interesse pelo universo da arte popular, que parece remontar a 1944, ano em que a sua correspondência regista uma atracção marcada pelos universos da arte primitiva e das coisas populares. Mas será no decurso da década de 1960 que esse interesse se consolidará de forma mais intencional”. Segundo João Leal, ES “inaugura uma nova sensibilidade na caracterização e qualificação da arte popular” que se “manifesta desde logo no tipo de objectos que tipificam agora a arte popular. Em substituição da produção artesanal domesticada pelo gosto etnográfico do Estado Novo, é sobre uma estatuária de autor, de formas imprevistas e soluções plásticas não padronizadas que passa a repousar a representação do popular”.
De facto, em "Conhecimento da arte moderna e popular", ES afirma que "a verdadeira arte popular é sempre criativa, embora assimilando com frequência (não cumpre) temas e feições cultas. Ensaia, e de resto sistematiza em textos ulteriores, esta dialéctica entre o erudito e o ingénuo, enquanto traço, por um lado, de uma continuidade, uma linhagem, na escultura portuguesa, quer de feição popular, quer de matriz religiosa, e, por outro lado, de um radical "abismo entre as duas expressões'", aludindo a uma série de traços que caracterizam a arte popular e a definem como ruptura, intervalo, desvio à norma, através de uma estratégia que integra a caricatura, o escárnio e maldizer, a vindicta, num cruzamento entre expressionismo e realismo, mas, sobretudo, um conceito evocado mas infelizmente nunca aprofundado por ES: "É o conceito de 'disparate', um jogo com o absurdo, livremente crítico e libertador; uma explosão de toda a lógica porventura a lógica dos dias e das noites injustas e opressoras. A obra da Rosa Ramalha (sic) está cheia desses 'disparares', senhores cavalgando ao invés as suas montadas, homens 'com sua licença, cabeça de burro'. Por vezes, a mesma obra contém a sua parte de fantasmagoria realista, de caricatura e de voluntário e sobre-realista disparate'!"
E, em Para o Estudo da Escultura Portuguesa, ES acrescenta: "A chamada arte culta – e isto em geral – é desintegradora, isola o produto cultural num contexto racional, canónico, e tendencialmente académico. Só no limite é globalizante. A obra-prima, que é sempre obra primeira, é sempre também, como se diria em linguagem matemática, uma globalização de conjuntos finitos. Furtada à tendência academizante é então evolutiva e estrutural. Pelo contrário, aquilo a que chamaremos de arte 'ingénua' (designação preferível à de 'popular') é integradora e afectiva. Os seus objectos culturais são essencialmente transitivos e abertos à surpresa do real. As suas motivações afectivas e sentimentais são inaceitáveis nos termos de qualquer disciplina da Razão. A arte 'ingénua' é conjuntural (e não nos esqueçamos de que há conjunturas longas).
Cruzam-se, na investigação de ES, a utopia da redescoberta de uma espécie de estado original, primitivo, de consciência, aspiração comum a um extenso conjunto de seus contemporâneos, entre artistas, arquitectos e outros, a perseverança do mapeamento no terreno.
(..)
A escrita de ES é performativa e transformadora – é pensada com o corpo todo e dirige-se a outros corpos desejantes. É, justamente, uma escrita do desejo: generosa, sedutora, luminosa e franca. Diz ao que vem e o que quer. Trata os objectos de estudo como coisas palpáveis, físicas, concretas, que existem, não partindo de uma posição defensiva nem altiva. É exuberante e jubilosa, por um lado, grave e profunda, por outro. Trata-se de uma escrita oral, falada, gutural, em processo. Bem próxima do objecto de estudo, ao qual adere por simpatia sem deixar de ser judicativa e interpretativa. Aquilo que, no entanto, a distingue é a capacidade de detectar, sentir, as vibrações das profundezas, a atracção pelas zona de sombra, esquecidas pela História, é a sensibilidade às ligações invisíveis entre as coisas e as pessoas, a(s) voz(es) dos antepassados que ecoam no presente.
É em "Um escultor ingénuo", partindo da obra de Franklin, que ES leva mais longe a reflexão sobre os insondáveis e misteriosos arcanos da criação artística. O domínio e a pluralidade das remissões bibliográficas, nesta altura ainda dominadas pelo panorama francófono (situação que virá a mudar plena década de 1970, numa pronunciada mas nem por isso surpreendente mudança de paradigma), a fulgurante capacidade de gerar estruturas de pensamento a partir e arquétipos seculares, codificados por disciplinas de alargado espectro engendra uma obra luminosa e iluminada, capaz de produzir sentido em mais de uma campo do conhecimento – a esse título, é aliás claro que é a partir deste ponto de descomprometimento, abertura e porosidade disciplinar que o pensamento de ES está pronto para abarcar a aventura das vanguardas e do experimentalismo por onde vai até ao seu desaparecimento em finais da década de 1980.
(…)
Esta lucidez radical, se lhe podemos chamar assim, ao nível discursivo, estava já materializada, ao nível da montagem (que será dali a poucos anos o discurso privilegiado de ES), na exposição Barristas e Imaginários, que é em nosso entender a pedra de toque, o nódulo, para onde afluem as pesquisas de ES em torno da arte popular e da escultura portuguesa e de onde parte a inelutável adesão às práticas artísticas contemporâneas. De facto, a linguagem usada por ES nessa exposição, os dispositivos que, em condições de precariedade, engendra, são a todos os títulos notáveis e inovadores, na forma como fazem transportar objectos de arte popular para – talvez ES não estivesse disso ainda plenamente consciente – o campo semântico da arte contemporânea.
Articulando fotografia e peça em barro em pedra e em madeira, imagens e objectos, portanto, a partir dum conjunto de dispositivos engenhosamente simples e de uma evidente força material e simbólica – como o tijolo, a serapilheira ou o cartão – e de suportes como o caixote, tampos de mesa ou placas a fazer de fundo, ES parece remeter para a essencialidade da linguagem que liga os objectos que apresenta, por um lado, e para o deslocamento de sentido que está a operar, por outro.
Podemos reconhecer no trabalho de ES uma dimensão intuitiva muito forte, que o leva a reinventar os códigos de leitura da obra de arte através da sistematização um método de aproximação e comparação que é vizinho da abordagem iconológica de um Aby Warburg, nomeadamente na crença de que a existência e persistência das imagens superam a retórica da escrita enquanto potência de religação do indivíduo ao cosmos. Surge, assim, esboçada em ES uma iconologia do intervalo que procura aproximar fenómenos de fronteira, ocorrências marginais, sobrevivências formais e tipológicas distantes no tempo por vezes, no espaço (veja-se o interesse distendido nos anos pela arte tribal africana), constituindo uma verdadeira constelação de símbolos, imagens, objectos e pessoas.
À fotografia, talvez o único meio verdadeiramente transversal a todo o percurso de ES, é então assignada a tarefa de documentar e de imaginar (no sentido de criar imagens mentais) as coisas no mundo, enquanto corporalização e dessubstancialização, corpo e fantasma, ar e terra (em linguagem bachelardiana). Como faz notar Margarida Medeiros: ''A imagem é para ES uma espécie de mola, de rasto mnésico necessário como suporte de um discurso exterior a ela mesma. ( ... ) O que há a reter é essa ideia de que uma imagem fotográfica está no caminho para qualquer outra coisa. Como por exemplo, para uma história (sequência), visível na forma com estabelece uma verdadeira montagem, no sentido cinematográfico, a partir de um conjunto de fotografias, com o espírito paciente, analítico e obsessivo de um investigador da forma, de um experimentador. Esta ideia de montagem não se manifesta apenas na ordenação linear de sequências, mas também no modo como isola um pormenor aproximando-o, ou de novo revelando-o num plano mais geral, à semelhança das técnicas usadas no cinema, como o zoom e o travelling.”
A pesquisa de ES – deveríamos dizer "a procura", por ter um sentido mais amplo e um horizonte infinito – em que a escrita é uma fala, tem, enfim como matéria primeira a memória, enquanto traço de união transtemporal, possibilidade de superação do determinismo histórico e da noção de época, reactivação e reactualização das potências do arcaico.
Nesta construção, a fotografia é alternadamente e simultaneamente dispositivo e discurso, modo de ver e possibilidade de dar a ver, cena e figura, dentro e fora de campo, vida e morte. Este vaivém entre enquadramento e reenquadramento, este jogo de aproximação e distanciação, activa no espectador um permanente e contingente sentido de consciência do mundo em si e de si no mundo, um sentido de possibilidade ou, para parafrasear ES, o desejo de forjar a infância de um novo começo.