Colóquio-Artes, n.° 61
Dezembro de 1970
[Excerto]
Republicado em Um Escultor Ingénuo [catálogo], "Onde Mora o Franklim", 1995 e Ser Moderno em Portugal, Lisboa, Assírio e Alvim, 1998.
“Sou um ingénuo voluntário” – dizia Almada Negreiros, que algures fez o elogio da ingenuidade. O grande escultor a que me vou referir neste breve estudo foi um ingénuo involuntário. Franklin Martins Ribeiro (também conhecido por Franklin Vilas Boas Neto), falecido há cerca de dois anos, foi, com rigorosa precisão, um artista popular. Digamos desde já que o rigor destes termos (artista e popular) não pode aqui ser estabelecido. Fazemo-lo noutro lugar’. Aí procuramos responder, também com o rigor possível, à pergunta fundamental sobre o valor que se pode e deve atribuir a uma cultura e arte “populares”, conceitos necessariamente destruidores ou destruídos por qualquer cultura no modo literário, ou propriamente dita. (…)
Um artista ingénuo como Franklin foi exemplo vivo (pela sua indesmentível realidade existencial) de um perdido paraíso original, ao qual não há que voltar, é certo, mas de que poderemos tirar grande lição. Como lembra um autor que se debruçou sobre a antropologia do imaginário, “a passagem da vida mental da criança e do primitivo ao adultocentrismo (neologismo de Piaget) corresponde a um estreitamento, um recalcamento progressivo do sentido das metáforas”, das grandes metáforas de qualquer primevo encontro com o mundo. (…) Limitemo-nos por agora a uma função de “constat”: um caso determinado, num meio determinado.
Um meio determinado
Com cerca de 10% dos seus habitantes aglomerando-se na capital, e um “insuficiente desenvolvimento propriamente urbano dos centros provinciais”, Portugal é ainda um país predominantemente rural. É, também contraditoriamente, o lugar onde uma sociedade de consumo se vai constituindo, com a instauração de poderosas mediatizações, tecnologicamente avançadas e determinantes de um novo tipo de relações humanas, diametralmente oposto às relações pessoa-a-pessoa, características da sociedade rural. Abstractamente poderíamos dizer que há assim duas sociedades num mesmo espaço político e administrativo, por vezes ignorando-se e, mais frequentemente, misturando-se ou reunindo-se numa sociedade paradoxal e contraditória.
Num domínio particularmente difícil de abordar, o domínio estético, aquele desconhecimento (ou, para o reduzir a um de seus vectores: o nosso desconhecimento) da sociedade rural é tanto mais alarmante quanto o processo de aculturação sofrido por essa sociedade é uma evidência e uma necessidade do próprio desenvolvimento, uma relação unívoca, a que nada podemos nem devemos opor senão – precisamente – um esforço de conhecimento. (Independentemente da discussão inevitável quanto ao modo que reveste ou deveria revestir essa transformação). A quase totalidade dos estudos e prospecções empreendidos sob o rótulo de arte popular, para além da sua escassez numérica, ignora o factor estético, e pois toda uma problemática, sem a assunção da qual os objectos estéticos escapam irremediavelmente ao observador. A própria expressão obra de arte dá lugar aos maiores equívocos. Noção oitocentista, quanto à sua vulgar conotação actual, torna-se hoje cada vez mais académica, mesmo quando utilizada no território da estética relativa à arte erudita, ou culta no modo literário. (…) Pelo contrário, como afirma Claude Lévi-Strauss, desde que sejamos teoricamente rigorosos, ainda que as hipóteses iniciais venham a verificar-se total ou parcialmente inaceitáveis, terão suscitado, precisamente pelo seu carácter não satisfatório, uma crítica e uma investigação capazes de as deslocar e ultrapassar. O nosso método, de base comparativista e fenomenológica, assentou, naturalmente, em algumas reduções de campo estético, material, geográfico, etc. E também em alguns compromissos teóricos, impostos pelos limites, em extensão e profundidade da investigação.
O encontro com o escultor Franklin foi, ao mesmo tempo, a consequência, e um sinal de acerto, de tais reduções e compromissos. Mas de maneira nenhuma o resultado – apenas aparente – de um ou vários casos. De Esposende, Franklin viveu e morreu num dos redutos geográficos do nosso trabalho. Escultor e escultor da madeira, correspondeu e ampliou com precisão toda uma teoria do imaginário ingénuo e primevo, que nos propúnhamos investigar. Artista e não artesão, até certo ponto excluído do seu meio – precisamente por inapetência artesanal e desregramento das normas sociais–, constituiu um caso típico de investigação estética, num meio não culto no modo literário. Com uma cultura, pelo contrário, forçosamente oral e mnemónica, as suas concepções correspondiam a uma informação ingénua – que constitui a base das nossas verificações teóricas. Em constante relação com um mundo do Mesmo, marcado pela unicidade e sempre presente, ao seu-mundo se incorporava inteiramente; quer se tratasse do mundo das coisas, quer, seguindo os caminhos da mesma imediaticidade, do mundo dos valores, mundo dos bens, mundo prático. O encontro com as coisas, com o mundo, era sempre um encontro primeiro, uma origem. Em Franklin realizavam-se assim as condições de um olhar ingénuo; olhar físico ou olhar mental (no sentido husserliano): tudo estava de antemão co-presente e num horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada, mas realidade. As suas ideias e conceitos confundiam-se num presente absoluto, no qual se concentravam heranças e habilidades adquiridas e potenciais reflexões projectivas. Como a propósito de todo artista ingénuo, e, aqui incluído, todo o artista popular, podemos a seu respeito falar de um cogito pré-reflexivo. O seu caso (entre muitos outros diversamente significativos) tornou-se assim paradigmático – dum meio rural determinado.
Franklin nasceu em 1919, em Esposende, onde morou, e morreu, num acidente, em Abril de 1968. Era casado e tinha vários filhos, vivendo todos em precárias condições financeiras. Pertencia a uma tradicional família de canteiros: dois irmãos, e actualmente um dos sobrinhos, têm oficina própria. Quando o conhecemos, em Maio de 1964, Franklin, praticamente desconhecido para lá de seu meio, era muito pouco considerado pelos familiares, por se recusar “a trabalhar a pedra”. Era engraxador (e até isso tem importância, ao estudarmos o “acabado” das suas obras em madeira), e justificava a sua recusa de trabalhar a pedra com doenças e dores físicas. Verifiquei depois que tinha uma verdadeira antipatia, inclusive física, pela pedra; e que, pelo contrário, tratava ou referia-se à madeira com ternura e inteligência. As madeiras tinham “cadença” (ritmo, disposição) e significado. Por outro lado, o trabalho do canteiro obriga à instalação ou manutenção de uma oficina, e a um mínimo de organização – do que ele era inteiramente incapaz. Trabalhar a pedra constitui, enfim, um ofício, e trabalhar a madeira – do ponto de vista social (sociedade determinada) – uma extravagância. (Agora, depois de um certo êxito comercial que tiveram as peças de Franklin, os Quintinos, santeiros e pedreiros, também procuram a madeira como material possível.) Quando conheci este verdadeiro outsider, ele possuía uma única ferramenta, e utilizava um formão emprestado. Só trabalhava quando encontrava madeira. (…)