Bibliografia

Conhecimento da Arte Moderna e Popular

Revista Arquitectura, n.º 83
Setembro de 1964

O conhecimento do moderno em arte, como andamento para o futuro, tem os seus ares de adivinhação. Porque não serve o estudo aplicado e genealógico do-que-já-se-fez; essa actividade de coca-bichinho, andante por ateliers e marchands de tableaux não satisfaz o conhecimento estético (porque este prevê, como toda a ciência), nem pode promover senão um superficial entusiasmo (porque os cultores da chamada "arte moderna" não vivem uma grande aventura, não ultrapassam um sector intelectual de pequeno estímulo para o futuro). O que interessa é descobrir a corrente profunda, com a sua alma e a sua força. O que interessa é a grande aventura lúcida da transformação do Mundo, a par da negação da realidade tal qual é. São modernos Goya, Lorca e Brecht, não pela sua classificação neta ou naquela corrente, mas por terem descoberto um caminho de actividade e intervenção nas duras e mais optimistas realidades do seu tempo. Essa actividade e intervenção são específicas, porque são de ordem estética – e como tal têm que ser entendidas.

Esse entendimento só pode alcançar-se através da crítica dos objectos estéticos cultos (o conhecimento das leis e ideias gerais a que obedeceu a sua criação, o conhecimento e a análise das respectivas mediações, e um novo esforço de síntese totalizadora), e a descoberta íntima e profunda das múltiplas manifestações daquilo a que chamaremos – na falta de uma expressão mais precisa – arte popular(1). Esta acompanhou o progresso e a cultura da palavra escrita, e, mais particularmente, a cultura urbana, à sua maneira; e à sua maneira também, conservou um sentido fundamental do começo do homem, um fundo de ritos e mitos agrários, que nos pode fornecer uma imagem estimulante dos nossos objectivos, na "duração infinita da vida humana". Com efeito, como nos lembra Lefebvre(2), os etnógrafos revelam que, perante uma consciência primitiva, mal informada, todo o começo e todo o fim, surgem como absolutos, misteriosos e miraculosos. "... Ferida de terror, ou de louca esperança perante os fins e os começos, a consciência nascente celebra-os por meio de ritos e mitos". Transformados, levedados por aculturações sucessivas, estes mitos e ritos subsistem nas expressões mais válidas da arte popular.

A razão desta permanência reside no facto de que a sociedade rural mantém uma certa homogeneidade, estrutural e cultural, enquanto se dão profundas transformações noutros meios. A passagem de uma economia de recolecção de alimentos à revolução neolítica, à fixação à terra e à invenção das novas técnicas da agricultura (e de técnicas paralelas, como a invenção da cerâmica), constituem o primeiro grande passo da humanidade para a apreensão do mundo natural. O entendimento da germinação e da fertilidade foram maravilhosas conquistas: o homem deixou de ser mero objecto natural, e pôde daí em diante sujeitar parcialmente a sua própria natureza. Uma primeira consciência confusa desta relação humanidade (sujeito)-natureza (objecto), revela o homem a si próprio e, contraditoriamente, faz das forças cósmicas que o rodeiam um vasto espelho da sua personalidade real. O realismo primitivo não tem nada de fabuloso ou de quimérico. É um mundo de evidências, reveladoras do homem a si próprio, da existência objectiva da natureza; e de uma misteriosa necessidade de comunhão do humano com o natural. Os mitos e os ritos das sociedades agrárias constituem uma pre(s)ciência destas descobertas fundamentais.

Descontado tudo o que há de primitivo (no sentido do ideologicamente vão e mortal!), é possível encontrar um fundamento científico susceptível de interessar o mais rigoroso racionalismo, nas práticas destas sociedades primitivas. Com efeito, e dentro de uma exclusiva disciplina psicológica e social, tais práticas são propiciatórias dos acontecimentos futuros e constituem raízes da acção, do amor. Toda a transformação do mundo presente, do mundo tal-qual-é, exige a assunção propiciatória do que está para acontecer. A magia e os ritos primitivos constituem uma primeira técnica de reconhecimento do homem na natureza, e do homem no outro homem. Revelam-nos grandes perspectivas, que embora em sonho e mito, não perderam de nenhum modo o seu alcance: são o fundamento do humanismo, a que podemos agora dar um nome científico e a que corresponde uma esperança precisa. É que a posse de si próprio e o prolongamento do homem no outro homem, constituem a grande aventura da humanidade, e a sua sobrevivência. A ubiquidade, a presença do ausente, a ressuscitação material dos mortos, a eternidade, são hoje perspectivas plausíveis e não meros temas de mal comportada e leviana ficção científica. Elsa Triolet pode ter escrito o seu magnífico Le Cheval Roux, obra-prima de positiva ficção científica, onde estes temas proporcionam uma apaixonada e infinita procura de resposta racional para os grandes males do homem: a guerra, o envelhecimento, o tédio, a perda de memória, o medo, a morte. Está ainda por fazer, todavia, uma análise das técnicas e das invenções do nosso tempo sob este aspecto, ampliando para a modernidade e o futuro o que um Gordon Childe faz para o passado e a arqueologia. As técnicas, as máquinas, os métodos científicos (desde os físicos aos da organização da sociedade) seriam assim encarados não apenas pelo seu frio significado imediato e específico mas pelo que comportam de revolucionária modificação e progresso na mentalidade humana, nas "intenções humanas".

De um modo geral, uma das principais características de todo e qualquer artista popular é este sentimento de um começo absoluto, de uma imediata e total produção de si próprio nas coisas externas. O artista popular (e isto aplica-se tanto ao outsider da cidade, como, com outras razões e mais fundas raízes, ao artista radicado directa ou indirectamente num agregado rural), mesmo conformando-se estreitamente com a tradição, como geralmente acontece, age com a espontaneidade do demiurgo: é um criador de objectos com actividade própria e poder imediato de transformação do mundo. Do seu espírito está ausente a abstracção alegórica, como qualquer preocupação de cânon formal. A noção abstracta de harmonia é-lhe estranha, pois que ele nada produz que não seja imediatamente harmónico consigo próprio, com os seus hábitos e entendimentos do quotidiano, como com os seus desejos e aspirações de futuro. Em consequência disto a arte popular é mais expressiva do que formal, o seu ímpeto significante sobreleva a harmonia significativa dos seus diferentes elementos (o formalismo é-lhe completamente alheio). É regional e particularizante, e a sua beleza é característica e não canónica.


ARTE POPULAR E ARTE CULTA

Apesar daquela origem e destas distinções, há uma constante permuta entre os produtos (e porventura os produtores) da arte popular e os da arte culta. Essa permuta, e em particular a frequente assimilação pelo artista popular de certos temas e de certas manifestações da arte culta, dão lugar e equívocos e erros de apreciação. Não se trata nunca, como alguém disse a propósito da exposição de arte popular "Barristas e Imaginários", que organizámos recentemente, de uma imitação. A imitação propriamente dita só existe quando se trata de falsa arte popular, porque, para encurtar razões, não é arte sequer. Trata-se, nestes casos, de produtos marginais de uma aculturação precipitada, imposta por factores artificiais e efémeros. Adiante veremos mais em detalhe este importante e oportuno problema. A verdadeira arte popular é sempre criativa, embora assimilando com frequência (não sempre) temas e feições cultas. Trata-se, nestes casos, de verdadeiros, necessários e fecundos encontros. Se tentarmos analisar o que se passa então, verificaremos que, quase sempre, é possível situar qualquer desses encontros em duas categorias:

a. Aquilo a que chamamos arte culta, por circunstâncias históricas que é possível sempre definir em cada caso particular com relativa precisão, manteve-se mais perto da cultura popular, rural, nunca se integrando por completo nos ciclos culturais a que pertence nominalmente. Nestes casos (a maioria do nosso românico, do nosso barroco), a influência sobre a arte popular, propriamente dita, faz-se por continuidade, por íntimo parentesco. Leite de Vasconcelos, Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia, e de maneira sistemática, Armando de Mattos(3), demonstraram, por exemplo, o íntimo parentesco da arte dos fazedores de canga e jugos do Douro e Minho, com as mais diversas manifestações decorativas do românico; e reciprocamente, destas com um fundo rural, pré-histórico até. Entre a obra de um Aleijadinho – obra-prima da escultura mundial e expressão máxima do barroco português – e as humildes imagens de alguns dos nossos santeiros actuais, há tanto parentesco quanta há dissemelhança entre aquela e a escultura académica contemporânea, descendente cultural do ciclo que podemos iniciar na Escola de Mafra. (Digamos de passagem, que assim se referem os dois ciclos fundamentais da escultura portuguesa, o rural e o cosmopolita, ambos válidos. Esta dualidade terá que ver com uma definição de base, da arte e da cultura portuguesa)

b. Há um abismo entre as duas expressões. O artista culto produz objectos estéticos perfeitamente integrados em determinado ciclo ligado a uma cultura da palavra escrita; e, actualmente, à civilização urbana. Estes objectos obedecem a determinados cânones de beleza abstractos. Nestes casos também, o artista popular não imita: interpreta expressionisticamente. Em certos casos, podemos mesmo dizer: caricatura. Por outras palavras, o artista popular toma o modelo culto como um ponto de partida, um começo – enquanto para o artista culto, aquele tinha sido um ponto de equilíbrio, de certo modo, um ponto de chegada, um acabamento transitivo. Aí temos as duas atitudes tipicamente diferenciadas. Para o artista culto: uma progressiva procura de perfeição formal, um crescente tecnicismo, que na decadência de cada ciclo se traduz por formalismo e imitação. Para o artista popular: a expressão de um primeiro e surpreendente encontro, com a sua força e o seu carácter bem vincados. Esta expressão, este carácter, reconduz o artista popular às suas ocupações e preocupações em originais: a um realismo imediato ("estes bichos ferozes, ainda existirão, lá pelos montes?" pergunta bem conhecida barrista Rosa Ramalha); a um concretismo religioso (que desencarna a cosmogonia teológica fazendo-a regressar ao convívio das superstições, dos mitos e ritos agrários); a um sentir crítico do quotidiano, que não raras vezes revela uma específica capacidade de humor. Nestes últimos casos revela-se a tendência bem popular para o "escárnio e mal dizer" ou para a "vindicta", de que há tantos exemplos paralelos na literatura oral. Este último domínio da arte popular é variadíssimo e vai desde a simples caricatura até à expressão ainda actual de práticas mágicas primitivas. Os "estudantes" da Rosa Ramalha, certos bonecos do Mistério – outro barrista da região de Barcelos – , como no passado, certos bonecos de Estremoz (os "fidalgos", v. g.), são autênticas caricaturas do quotidiano(4). Numa das ilustrações deste artigo damos um magnífico exemplo de humanização expressionista de uma imagem culta de Cristo; os "gigantones", "pais velhos", "bichos bravos ou ferozes" da Rosa Ramalha, fornecem outros tantos exemplos daquele realismo a que nos referimos – e que só se apresentam fantásticos para a nossa culta incompreensão... Tais bichos existem ou existiram, para o artista popular. Para lá do realismo e do expressionismo, e do "escárnio e mal dizer", há ainda outro conceito que nos limitamos aqui a referir e que merece estudo de particular cuidado. É o conceito de "disparate"(5) um jogo com o absurdo, livremente crítico e libertador; uma explosão de toda a lógica – porventura a lógica dos dias e das noites injustas e opressoras. A obra da Rosa Ramalha está cheia desses "disparates", senhores cavalgando ao invés as suas montadas, homens "com sua licença, cabeça de burro"(6). Por vezes, a mesma obra contém a sua parte de fantasmagoria realista, de caricatura e de voluntário e sobre-realista "disparate"! (Esta noção é tão rica que o seu estudo exaustivo nos levaria certamente aos "disparates" de Bosch e de Goya, aos "acasos objectivos" dos modernos surrealistas).

Mas as relações da arte culta e da popular são ainda mais ricas. Em último lugar, é necessário sublinhar que se trata realmente de uma permuta. É óbvio que o expressionismo, corrente da arte moderna, tem a sua dívida para com a arte popular. O culto votado por Rimbaud e outros escritores da sua geração às tabuletas de taberna, ao calão, e outras manifestações populares, tomadas embora pelo seu "exotismo", é também revelador. Bastaria meditar um pouco na obra de certos artistas, Bosch e Goya, já citados, Chagall, os expressionistas belgas. Mais longinquamente, podemos ainda encontrar indirectas influências de família, de tradição artística regional, de materiais – mesmo onde não há uma influência estética directa. Com razão relacionava Diogo de Macedo a Escola de Gaia (Soares dos Reis e outros mais académicos), com os canteiros ou barristas, entalhadores e mascateiros da região, "talhadores no rijo carvalho de simbólicas figuras para proa de navio veleiro (sereias, tritões e adamastores, figuras aladas e tocando clarins ou búzios, à maneira do rei Ramiro da lenda), escultores a quem o povo sempre chamou de santeiros, pois tanto desbastavam quimeras para barcos como santos para altares"(7). Por outro lado, creio que poderemos demonstrar em breve a descendência — a que também se referiu Diogo de Macedo – de alguns dos artistas populares que vamos descobrindo, de antigas dinastias de artistas cultos, ou trabalhando para obras de urbano projecto.


ACULTURAÇÃO E ARTE DECORATIVA

As relações, múltiplas e complexas, entre a arte de expressão popular e a arte culta, correspondem aos conflitos da assimilação das duas culturas. A sociedade camponesa, por exemplo, torna-se cristã, lentamente, e sem perder as suas características culturais básicas. Com a revolução industrial, e a tendência moderna para uma crescente invasão das mais recuadas aldeias pelos produtos manufacturados e industriais, a cultura camponesa sofre um choque decisivo, crítico, dramático por vezes. Nesta perspectiva, podemos imaginar que a cultura (e a arte) camponesa, deixarão de existir, completamente – e isso corresponderá a uma total industrialização da agricultura, e porventura, a outras modificações decisivas na estrutura social, nomeadamente no binómio campo–cidade. Entretanto, interessa-nos saber qual o estado actual dessa transformação, de que maneira devemos entendê-la, de que maneira intervir.

Como dissemos noutro lugar, nenhuma conclusão nos é permitida nesta matéria, enquanto não se fizerem estudos sociológicos rigorosos sobre o assunto. Toda a interpretação estética, que fizermos entretanto, é presuntiva e provisória. O estudo do mau gosto, por exemplo, a sua inevitabilidade histórica, face à também inevitável democratização da cultura, constituirá um capítulo da estética moderna cujo conhecimento ajudará a um válido entendimento daquela aculturação.

Façamos entretanto uma verificação básica: desde o momento que os produtos da arte popular são procurados – como está acontecendo – por pessoas situadas, cultural e socialmente, fora do agregado a que se destinavam inicialmente (a igreja de aldeia, o mercado ou feira, só frequentados por camponeses), aquela arte tende a modificar-se na sua natureza mesmo. Aqui, porém, situa-se um curioso paradoxo, que vamos tentar definir: é essa procura culta que está contribuindo actualmente para conservar alguns dos aspectos estéticos mais válidos da arte popular.

Para compreendermos isto, devemos ter em conta dois factores decisivos, quase contemporâneos. Por um lado, devemos considerar que aquela aculturação é independente (e ligeiramente anterior) da procura a que nos referimos. Os barristas, por exemplo, onde se mantiveram em actividade (actividade económica produtora complementar do camponês: é o caso da região de Barcelos) tiveram que enveredar pela manufactura de objectos atípicos, satisfatórios daquela aculturação. Assim foram produzidos em moldes os jogadores de futebol, os galgos de pechisbeque, os santinhos "bonitos"... Nas feiras, estes objectos começavam a ser preferidos aos autênticos produtos de criação regional, pelos próprios camponeses que as frequentam: e que na mais recuada aldeia admiram, espantados e – convém dizê-lo – maravilhados, os produtos secundários da nossa arte urbana, do mau gosto moderno. Os calendários, os tecidos impressos, os jornais e as revistas, a televisão, as viagens e estadias na cidade, no estrangeiro, põem o camponês bruscamente em contacto com as formas de uma arte que assimila da pior maneira: assimilação está favorecida pelas malhas de uma estrutura económica e social que de maneira crescente passa do pré-capitalismo ao capitalismo. Entretanto dá-se a procura culta. Felizmente isto verifica-se numa fase bastante evoluída da cultura urbana: aquela em que a arte moderna tem lentamente levedado e esclarecido o gosto de certas classes (burguesia culta e mais ou menos intelectualizada) no sentido da preferência pelo antigo não clássico mas medieval, pelo espontâneo e pelo expressivo. E não só o gosto se apresenta assim evoluído também a compreensão – para o que tem contribuído uma consciência mais ou menos larvar da verdadeira natureza dos fenómenos estéticos (a arte moderna é, num dos seus aspectos mais válidos, um esforço de auto-revelação), e o interesse crescente pelos estudos etnográficos e folclóricos (deturpados, é certo, com desagradável frequência e oportunismo... mas isso é apenas o lado negativo de um fenómeno positivo). Esta procura culta abriu um novo mercado do artista popular. Isto transforma necessariamente os seus produtos mais válidos. Mas na medida em que podermos compreender os seus verdadeiros valores (estéticos, pelo menos, no sentido formal), essa transformação pode ser válida e contribui para estabelecer uma ponte sólida com o futuro. Entendidas as coisas desta maneira, é, não só defensável mas também útil que essa procura se alargue e se multiplique. Que ao lado de uma reprodução da Guernica ou de um quadro abstracto, o decorador moderno entenda colocar um boneco da Rosa Ramalha, ou uma madeira do Franklin, ou ainda um desses magníficos "guardas" ou a Pietá dos Quintinos, não podemos encontrar nisso senão motivo para nos regozijarmos. Tudo depende da qualidade do diálogo que soubermos manter com os respectivos autores, e como entendermos a razão profunda do seu trabalho. De qualquer modo ficarão de pé certos problemas, que noutro lugar já formulámos:

Por gosto, pela sua inspiração e cultura ainda actuais, esta arte é ainda uma autêntica arte popular. Mas devemos prever, sem pena, o seu fim: o que devemos desejar é que ela se prolongue o suficiente para que a respectiva autenticidade se mantenha até que seja possível recobrá-la noutros termos culturais. Como se fará isso? Será possível? É necessário acreditar que alguma coisa se salvará, se se salvarem os valores estéticos. Mas isto só acontecerá se nos conservarmos lúcidos e humildemente estudiosos. A arte popular não tem que se manter em moldes fixos, tal como seria injusto querer manter a condição social do camponês. Entretanto, dessa lucidez não pode deixar de fazer parte um outro ensinamento, que se põe sob a forma de uma interrogação profunda para o artista moderno: se a arte popular conquista um lugar na decoração das nossas casas é porque a s vitalidade nos é profundamente necessária. Ela diz assim a sua palavra, na arrastada crise da nossa arte actual. É óbvio que essa palavra tem que ser ouvida e meditada.


A DESCOBERTA DA ARTE POPULAR PORTUGUESA

A descoberta da arte popular, em Portugal, está num modesto começo. O que, obviamente, não facilita aquela meditação. O valioso material acumulado pacientemente pelos etnógrafos não tem sido acompanhado o estudos de natureza estética, ou dentro da perspectiva da crítica de arte. Inversamente, a ausência mesmo dessa perspectiva (ausência de uma problemática fundamentada sobre o conhecimento da arte e da cultura portuguesa) agrava e dispersa o conhecimento parcial que se vai tendo. Por isso nos parece que se impõe para já, um grande esforço de prospecção. A necessidade e as vantagens de uma prospecção em profundidade não carecem de ser demonstradas. Podemos, resto, chamar a atenção para duas notáveis realizações recentes, em campo paralelo. Na música, o trabalho dos Arquivos Sonoros Portugueses (Michel Giacometti), secundado pelo compositor e musicólogo Fernando Lopes Graça, pôs-nos de maneira brilhante em face de "um palpitante documento de legitimidade"(8); na arquitectura, o inquérito do Sindicato Nacional dos Arquitectos, com a constituição de seis equipas de trabalho, permitiu um avanço gigantesco, em extensão e em profundidade, no conhecimento da nossa arquitectura popular. No campo das artes plásticas, porventura de mais ambígua definição, é que não tem sido possível apontar nenhum exemplo paralelo de prospecção sistemática(9). Com a preocupação apenas de fotografar algumas espécies, o que obrigou a rever e a reconsiderar certos lugares-comuns e a entender uma provisória problemática, mas, repitamo-lo, com intuitos fundamentalmente prospectivos, entrevimos um mundo de uma riqueza extraordinária, de que as ilustrações deste artigo darão apenas uma pálida ideia. Mas as centenas de fotos que fizemos já, não terão outro mérito senão demonstrar como a fotografia (e o cinema, evidentemente) constituem um veículo fundamental para o conhecimento estético da arte popular. O que, por outro lado, não dispensa o conhecimento e a discussão de uma específica metodologia relativa ao cinema e à fotografia como meios de prospecção e interpretação. E no entanto – forçoso é reconhecê-lo – apesar dos progressos técnicos gigantescos que se fizeram neste domínio, nos últimos tempos, não avançámos muito entre nós, relativamente a uma situação que em 1903 foi já definida pelo grande e malogrado investigador Sousa Viterbo(10) com rara intuição.

Depois de considerar que "a photografia, quando executada por um bom operador, que, além dos conhecimentos technicos possua uma faísca do sentimento artístico, quase que torna supérfluo qualquer comentário: falla à vista; mete-se pelos olhos dentro, como vulgarmente se diz", o ilustre investigador observava de maneira que nos parece ainda actual, sobretudo no domínio da arte popular: "São importantes os serviços que devemos aos nossos photógrafos, mas é preciso dizer-se, sem a menor intenção offensiva, que eles são muitas vezes – à parte honrosas excepções – como os carneiros do rebanho de Panurge, enfiando sempre pelo mesmo atalho, sem procurar veredas que ainda não fossem trilhadas. Na ausência de uma iniciativa arrojada e bem dirigida, não procuram variar de motivo e por isso é ainda grande a soma de objectos curiosos, que jazem sem ser revelados".

Que estas palavras escritas em 1903 se adaptem tão bem a uma situação actual, isso só nos mostra o muito que há a fazer, e a necessidade de não cruzar os braços. Neste domínio, como noutros, o tempo trabalha terrivelmente contra nós...
 

  1. Vergílio Correia propôs a expressão arte rústica que não nos parece, sequer, mais precisa. Com efeito, além de não se evitar a confusão com o sentido pejorativo da palavra, propõe-se aqui uma restrição de origem à arte popular. Ora, esta não é apenas camponesa. Além dos pescadores, os pastores, os montanheses, cujas manifestações são afins dos camponeses, parece-me que se devem considerar certas manifestações artísticas da cidade como pertencendo ao domínio da arte popular. Certos pintores de tabuletas e tabernas, são artistas consideráveis – como esperamos poder, através de uma primeira prospecção, demonstrar. Essa é, de resta, a origem dos pintores naïfs. E isto de pintores, é apenas um exemplo. Um estudo extenso desta matéria obrigara à análise comparativa da noção de naïf, de espontâneo, da expressão artística infantil, etc. V. Virgílio Correia, "Etnografia Artística", 1916; Aarão de Lacerda, "Estética da arte popular", 1917, de entre a nossa escassa bibliografia estética sobre arte popular portuguesa.
  2. Henri Lefebvre. Descartes. Paris, 1947, p. 29.
  3. José Leite de Vasconcelos, "Estudo etnographico a propósito da ornamentação dos jugos e cangas dos bois nas províncias portuguesas do Douro e Minho". Porto, 1881. Joaquim de Vasconcelos, "Ensaio sabre a architectura românica em Portugal", in Arte. Porto, Jan./Fev., 1908. Armando de Mattos, "A arte dos jugos e cangas do Douro Litoral". Porto, 1942.
  4. Catálogo da exposição "Barristas do Alentej"o, Évora, 1962.
  5. Para o qual nos chamou a atenção, pela primeira vez, o jovem etnólogo E. Lapa Carneiro, director do Museu de Barristas de Barcelos.
  6. Os "homens com cabeça de burro" pertencem, claro, a um bestiário híbrido que o artista popular herdou através de uma tradição, em parte também românica. Mas no casa da Rosa Ramalha seria fácil demonstrar o carácter original que simultaneamente assume o seu bestiário.
  7. Diogo de Macedo. "A escultura em Portugal, XII: Soares dos Reis e a Escola de Gaia", in Seara Nova. Lisboa, 18/VIII/32.
  8. Francine Benoît. Ref. crit. à "Antologia da Música Regional Portuguesa: o Minho", in Diário de Lisboa, 27/III/64.
  9. É necessário, no entanto, relevar o trabalho dos museus regionais e de etnografia, e o esforço notável de alguns coleccionadores, que tornaram possível, por exemplo, a exposição dos barristas do Alentejo, já referida (nomeadamente o poeta José Régio, o eng.º Júlio Reis Pereira, que organizaram a exposição).
  10. Sousa Viterbo. "Pias Baptismais Portuguesas", in Serões, V. III, n.° 18, Lisboa, Março–Abril, 1903, p. 315.