Imagem: Revista de Divulgação Cinematográfica, n.º 17, 2ª série
Junho de 1957
No número anterior fiz o Jornal deste IX Estágio da Federação Francesa dos Cineclubes a que me foi dado assistir. Verdadeiro Festival para os convictos, para os amorosos do cinema – como diz Lise Le Bournot num Boletim dos Cineclubes do Sudoeste da França – sem vedetas nem intrigas publicitárias, dez dias de modesto e ardente estudo. Aos animadores de todos os cineclubes de França, aos delegados dos cineclubes dos outros países, juntaram-se Marcel Carné, Agnès Varda, Jacques Tati, Alain Resnais, André Bazin, Alexandre Astruc, e outros, para discutir os caminhos do cinema, descorticar o sentido da poesia e a intensidade do pensamento que dezenas e dezenas, de metros de película traziam até nós na recolhida noite do cinema. Filmes antigos, como o Maître du Logis de Dreyer, ou modernos como o mexicano Raízes de Alazraki; autores consagrados, como Renoir, Carné ou Visconti, novos valores como Agnès Varda, Aldrich ou Kinoshita; enfim, grandes filmes, beneficiando da técnica mais evoluída ou simples películas produzidas por amadores ligados ao movimento dos cineclubes – uns e outros foram objecto de apaixonados debates que, para lá da sala das sessões se prolongavam nos passeios de um magnífico parque e durante as refeições.
Pode avaliar-se o fervor deste encontro se se considerar que o trabalho começava todos os dias às nove horas e se prolongava com intervalos mínimos para as refeições até à meia-noite, uma da manhã, durante dez dias sem interrupção. Quatro grandes-metragens, ou o equivalente de curtas-metragens, foram a média diária do nosso trabalho. E ainda havia grupos de voluntários que depois da meia-noite iam ao encontro de exaltantes surpresas fornecidas pela pequena cinemateca (em formato reduzido) do Centro Pedagógico de Marly: Eisenstein, Dovjenko, Stiller, Gance, Buñuel, Murnau, Charlot, etc. reviviam assim a nossa saudade de tardes de Cinemateca, adensando a perspectiva vertiginosa de uma Arte múltipla e versátil, caleidoscópio de formas, de intensões, c e sonhos.
Limitarei estas notas a alguns aspectos salientes do cinema actual, tornados evidentes nestas horas de aplicação. Para mim, o mais impressionante, o mais concludente foi ter podido ver em bloco, ou completar o meu conhecimento da obra de dois grandes dos maiores cineastas do nosso tempo: Visconti e Alain Resnais. Do primeiro vimos a obra completa: Ossessione (único que não conhecia), Terra Trema, episódio de Nós, as Mulheres, Faits Divers (curta metragem), Belíssima e Senso. Do segundo, Nuit et Brouillard, que desconhecia. Os outros são: Van Gogh, Gauguin, Guernica e Les Statues meurent aussi (co-realização de Chris Marker ao qual devo ser uma das raras pessoas que viram até hoje este filme maldito… e fechado a sete chaves).
Cineastas do nosso tempo, Visconti e Resnais são-no, por diferentes caminhos, como raros o foram em toda a história do cinema e da arte: dificilmente se poderá encontrar uma tal lucidez, aguda, sentida inteligência do quotidiano, tão íntima e necessariamente associada à mais profunda das sensibilidades formais, paredes meias com o requinte, indo até onde pode ir a perfeição sem cair na linha gratuita, no gesto formalista. As cores de Senso, as cores e a música quase lírica de Nuit et Brouillard não estão em conflito com o drama da sensibilidade e do dever, que é a polpa do filme de Visconti, ou a agónica realidade dos campos de concentração que o filme de Resnais duramente nos faz reviver. A uma forma rica e requintada corresponde um intumescer de significados, e também um grande pudor, a intenção deliberada de dizer o máximo com um mínimo de eloquência, sem gestos violentos, sem declamação evidente (excepção feita a Belissima) que é sobretudo um filme de Zavattini). Uma tal contenção em Visconti é singular e distingue-o do barroquismo italiano. Luchino Visconti é uma personalidade complexa. Aristocrata, célebre encenador teatral, cineasta, mecenas (alguns dos jovens realizadores italianos devem-lhe a sua carreira), grande senhor, o seu poder de atracção e simpatia excede e envolve o que podemos imaginar através dos seus personagens. Fisicamente Visconti é parecido com o nosso Almada Negreiros: magro, elegante, olhar agudo, gesto contido. A história de certas das suas produções, como Terra Trema (filme único na história do cinema, que ficou isolado do tríptico para que fora concebido e cuja descrição encheria páginas e páginas), os cortes e o conflito provocado com Senso – são apenas as facetas mais salientes do seu carácter de lutador, dum inconformismo exaltante e construtivo. É esse inconformismo que coloca Visconti na autêntica "vanguarda" do cinema e do pensamento contemporâneos, e que o levaram à realização de Ossessione – película considerada justamente como o ponto de partida do neo-realismo italiano, a escola cinematográfica mais vigorosa do post-guerra. O mesmo inconformismo levam-no à inovação sem laivos de gratuidade: da composição não aparente, mas rigorosa, de Ossessione passa a Terra Trema, filme aberto, desdobrado em episódios e que contém tudo como se o cineasta tivesse meditado naquela frase de um filósofo contemporâneo: que uma simples preposição implica o mundo; e onde por outro lado se procura como nunca, traçar a trajectória pesada das coisas e dos seres, onde o lugar do símbolo, da expressão por interposta matéria, é o mais possível anulada. É um filme directamente escrito, declarava. Filme de factos, significativo apenas porque os factos humanos são prenhes de significado: intérpretes estritamente locais, desempenhando rigorosamente o papel que fora o seu na vida, falando um dialecto siciliano incompreensível até para os italianos…
Plano de trabalho: chegar e aprender, dia a dia estudar o que devia filmar-se dia a dia. O resultado, um filme rugoso como um mapa em relevo, para o compreender na sua indiscutível personalidade artística é indispensável conhecer em detalhe o que seriam as duas películas que deveriam completá-lo para então se poder recuar e disfrutar uma vista universal, onde toda a composição se reduz à forma esférica deste mundo em que vivemos, e nos fazemos a nós próprios. Se a este filme compararmos Senso (passando pelo intermédio Zavattini, Belíssima-Magnani), que extraordinária diferença! Em Senso tudo é composição, e composição requintada quase nas raias do formalismo (mas sem nunca passar por ele): lembrem-se as cenas em que Franz (F. Granger) se encosta à parede do palácio de campo veneziano, recortando-se nas figuras pintadas, simbolismo evidente, figura de estilo, exprimindo com agudeza a petrificação, a redução estática às duas dimensões de pessoas em última fase de morte adiada. Todo o filme procura o intermédio melodramático (no sentido italiano) da literatura e da ópera para exprimir o real. (Podíamos até aqui falar de necessidade, considerar os obstáculos levantados a Terra Trema e compreender porquê Visconti evolui para um dizer diferido; podíamos também descortinar um sentido profundo no facto de Visconti se ter assim aproximado de um género artístico que foi durante muito tempo a única forma de expressão nacional italiana, face à ocupação austríaca… mas isso é outra história).
De todos estes filmes Ossessione é aquele que mais pode impressionar, coincidir com o português de hoje. A introdução de duas novas personagens, fundamentais, comparativamente ao romance de James Cain, dar-nos-ia a explicação de um tipo de vagabundo que não tem nada que ver com o vagabundo-evasão dos filmes franceses de 30 (os de Carné, por exemplo), e que se fundamenta historicamente. O conflito central por sua vez (conflito da sensibilidade e do dever como em Senso) é de uma realidade exaustivamente actual: diz respeito ao homem que quer a plenitude num mundo que tende precisamente à atrofia e à alienação do indivíduo. Os mesmos valores, a mesma contemporaneidade em Resnais: mas este realizador de curtas-metragens é o cineasta da tragédia humana, a tragédia de Van Gogh, a de Guernica, a trágica realidade dos campos de concentração. Mas estes filmes constituem um protesto e também, não-aceitação passiva da nossa aviltação. Em Nuit et Brouillard, as cores suaves, a música e o comentário sem nada velarem, sem subtraírem o mais repugnante e feio de cada documento (enquanto o filme corria, uma das estagiárias de Marly saía a soluçar da sala), põem entre nós e aquela nossa realidade uma distância feita de confiança desiludida e lúcida. Ao contrário dos muitos outros testemunhos escritos sobre o mundo concentracionário cujo resultado é a náusea, o desgosto do humano, o filme de Resnais é uma afirmação peremptória: não queremos. Não há, que o saiba, em toda a história do cinema testemunho tão profundo e universal, assim concentrado numa curta-metragem. Os filmes de Astruc, o stendhaliano Rideau Cramoisi e o barroquismo erudito de Les Mauvaises Rencontres, o The Big Knife de Aldricht (de que falamos noutro lugar), o filme de Agnès Varda (La Pointe Courte), as histórias mexicanas de Raízes, a obra documental de Fabiani, constituíram outros aspectos dos novos valores encarados no estágio; a que se juntou o estudo de Tati, Carné (sem Prévert), Renoir e Rosselini. Não se limitou o estágio ao estudo de filmes.
Os delegados estrangeiros comunicaram as suas experiências, ventilaram-se problemas de interesse comum e lançou-se o projecto da desejada colaboração internacional dos cineclubes. Cooperação que todos os anos se repete em Marly e de que a Federação Francesa dá, portanto, um exemplo excelente.