Alternativa Zero, Lisboa, Galeria Nacional de Arte Moderna
1977
[Excerto]
Republicado em Oralidade, Futuro da Arte?, Escrituras, São Paulo, 2011; Ser Moderno em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998 e Perspectiva: Alternativa Zero [catálogo], Porto, Fundação de Serralves, 1997.
O "SALON". A permanência de termos franceses denuncia bem a presença de um certo modo europeu fios arraiais da cultura portuguesa; as vernissages e as outras manifestações afins tiveram fortuna diversa mas segura até hoje – talvez porque a sua cobertura pôde ser garantida por um número reduzido de pessoas, que constituíam precisamente o milieu: microclasse social mais ou menos auto suficiente, com suas reservas conservadoras, suas internas vanguardas. Em Portugal "somos trezentos a fingir de cultos", diz ia pitorescamente um escritor nos anos 40. Mas os "outros" não ficariam inteiramente de fora, na medida em que no milieu artístico alcançavam um conhecimento distanciado mas prestigioso, substituto quási das histórias áulicas, gozado com maior ou menor autenticidade. De facto, e aparte o persistente e ridículo francesismo português, este fenómeno não é apenas nacional, e podemos descrevê-lo como extensivo a uma evolução da sociedade moderna onde a cultura se desgarra dos grandes mitos moribundos e tenta a aventura de uma autonomia, dilacerada porque no limite, incompassível. (Conferir Almada Nós não estamos algures). Digamos pois que esta hipoestesia de que o salon é um símbolo (e o museu, em geral, outro) pode ser vivida pelo comum de muitas maneiras, que vão do orgulho proprietário há disso em certas formas do esperpento espanhol; até à falsa ilusão da posse modo kitsch que afecta sobretudo as classes médias.
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OS LIMITES. Posta de parte toda a ideia de júri (que em geral é uma forma disfarçada do poder, inevitável se…) baseamo-nos em primeiro lugar em duas experiências anteriores, Do Vazio à Pró Vocação, em 1972 e Projectos-Ideias, em 1974. A partir deste primeiro núcleo, e com alguns cortes impostos por outras condições adiante explicaremos sondámos tanto quanto foi possível no sentido de apurar as actividades individuais afirmadas posteriormente a 1974; quer durante a experiência do Clube Opinião quer pelo exercício "emprestado" da nossa actividade crítica. Foi também ponto de partida a atenção descentralizadora sendo muito importante para isso o trabalho em comum com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (Óbidos, 1972: Agressão com o nome de J. Beuys; Coimbra, 1974: Aniversário da Arte, Coimbra; 1976: participação em Arte na Rua).
Com essa escolha e esse é um limite fundamental e fundamentalmente anti salonard não se pretendeu a constituição de um grupo representativo, senão de si próprio. Portanto a nenhuns valores anteriores e "externos" se atendeu (a qualidade, os melhores e mais autênticos, mais originais, mais representativos) são razões ou pseudo-razões que não entraram na nossa contagem) pois que em termos de rigor, o valor se confundirá com o nosso corte numa certa massa amorfa e flutuante (Saussure): a actividade contemporânea.
A justeza desse corte nunca poderá ser conhecida previamente: só depois de efetuados o confronto, o diálogo e o estudo decorrente, se poderá porventura entrar no jogo das avaliações. E isto se tivermos conseguido construir um modelo próprio, um simulacro da nossa própria actividade. um padrão que permita medi-la de dentro.
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Atraso tecnológico, mas também cultural… Oposição sim à idade das viagens à lua e dos computadores, mas não pelas razões contra culturais que nos tornariam preferíveis as sem razões da loucura, a Sociedade Festiva, e o Paraíso Já: é aquilo que Jorge de Sena apontava citando um autor esquecido:
Creio que deve ser restituída
À grande Estupidez a dignidade
que nesta Academia gozou sempre
Há ainda um limite ético. Não me refiro ao binário estética ética, de tanta importância para a discussão da modernidade e de que trataremos adiante, mas a coisa mais comezinha: simples moral de trazer por casa. Nacional ou internacional, recusamo-nos a considerar qualquer experiência onde se venda gato por lebre, por exemplo "arte" ou "vanguarda" a disfarçar rasteiros interesses comerciais. E óbvio. Mas é necessário sublinhá-lo sobretudo quando se pode enganar incautos operadores estrangeiros fazendo-os participar em festinhas lusitanas, de duvidosa isenção comercial e ideológica.
Tzara já tinha avisado que "tudo o que se vê é falso". É verdade, sobretudo para os olhos embaciados dos habitantes de um Marienbad Qualquer; os seios da Madame são falsos, mesmo sem injecções de silicone. As explicações baseadas no que aconteceu o ano passado, ou nas gerações que nos precederam são a papinha do bebé ou dos filhos de família que podem pagar as lições dos Doutores. Tal busca imperialista da origem é a última alienação duma sociedade quási sem Pai, quási sem Deus (e onde a obra de "Arte" continua de paletó e gravata ainda a fingir que substitui estes valores perdidos e cada vez menos sagrados).
Em vez de Deus, ou Paizinho, a Beleza. Inventam se outros nomes. A palavra Povo, por exemplo ("Bonecos para o Povo") é muitas vezes usada como entidade metafísica, gato com o rabo de fora da falta de imaginação. Contra estas mesuras e aquelas razões a fingir se de históricas, o ZERO tinha que ser um dos nossos limites. E daí COMEÇAR – como diria Almada Negreiros.
Isso não impede, antes obriga a uma perspectiva crítica.
PERSPECTIVA
É cada um que vai atrás da sua ideia ou a sua ideia que vai atrás de cada um.
Almada
Os olhos para o futuro ainda não existem (por isso tudo o que se vê é falso). Sabemos ou apostamos pascalianamente numa certa coerência com o passado, mas isso é concretamente indemonstrável. Cada olhar sobre o mundo é já uma teoria, e, portanto contém um assassinato na prática de todo o presente. O presente sabe a ter sido… A palavra perspectiva é um modo de levar certa água aparentemente diacrónica ao moinho da sincronia. O leitor que não esteja feito ao disfrute muito fundo e sério dos paradoxos, fica avisado: as palavras perspectiva, evolução e outras equivalentes são utilizadas aqui como figuras de retórica e não como pergaminho para quaisquer valores. Nós queremos começar e apenas vamos recortar no passado o que sirva para a definição deste zero, desta aposta.
(…)
Tudo isto se poderia resumir para lá dos seus ramos divergentes nesta frase de iniciação de Merleau-Ponty:
"…Je referme le paysage et j’ouvre l’objet" (fecho a paisagem e abro o objeto).
Mas é evidente que uma vez aberto o objecto, a pintura passa efectiva e rigorosamente a coisa mental. E global.
Foi o romantismo e Wagner que tiveram a primeira intuição de uma grandiosa "obra de arte de conjunto" onde o isolamento das várias artes particulares se resolveria sob a hegemonia do teatro e da música. Modernamente tem se falado muito de integração das artes. A arquitectura, senão o urbanismo conduziriam "as artes", reduzindo as em função de objectivos precisos e funcionais ao discurso da Cidade que embora concebida em ênfase tecnocrata, se poderia considerar a herdeira da Cidade Ideal da Renascença. A noção de design por exemplo, com sua tendência globalizante, bastaria para efectuar a redução a que nos referimos substituindo as grandes concepções dos artistas individuais por uma vasta organização tendencialmente tecnocrata e funcionalista (daqui sairiam os modelos tanto para a forma do sapato, como para a do edifício e a da cidade. As artes morreriam, reduzidas ao estado de simples formas decorativas, em si execráveis. Esta concepção finitista (e neste aspecto oposta à de Wagner) abre brecha por todos os lados. Não tendo em conta a liberdade, não tem também em conta um dos mais inquietantes problemas do homem: a contradição entre a sua efemeridade, a observada obsolescência de todos os sistemas e cidades, e a aspiração, à duração infinita da vida humana.
Mas de todas estas tempestades conceptuais, como se têm saído "as artes"? Poderíamos dizer que, de fato, mortalmente…
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Factor de desintegração, a obra de arte verdadeiramente moderna contém em si a sua própria destruição. O quadro não consente moldura, e a escultura não consente plinto que os separem do envolvimento real de que fazem parte.
Rotura portanto na concepção do espaço e do envolvimento. Neste espaço todos seremos atores, prontos a viver a vida como situação estética: e autores, isto é, absolutamente responsáveis. O espaço neste caso é um envolvimento criado a partir das nossas acções e pensamentos, e dos objectos que se abrem… Neste contexto a obra de arte não terá sentido e "materialidade" como tal: tudo será eminentemente estético. E tudo será eminentemente ético. Muitos caminhos conduzem a esta Roma de um mundo sem centro… e sem Roma.
"O desejo devora os objetos" dizia Hegel, mas quanto aos objectos estéticos, o autor da Fenomenologia do Espírito reservava-lhes morte mais nobre, nas margens da "morte de Deus". Na verdade, compreendemos cada vez mais lucidamente e nem sempre sem melancolia, que só o desejo conduz à eternidade, à eternidade profunda… (Assim falava Zaratustra).
Assim falava também já na primeira metade do século XIX o dinamarquês Kierkegaard que em toda a sua obra põe numa visão inteiramente actual o problema decisivo das relações entre a estética e a ética: "porque a estética não é o mal, mas a indiferença… e a ética corresponde à escolha". Ao propor um equilíbrio ("ou bien… ou bien") entre a estética e a ética define, responsavelmente a total liberdade de existir, "eu nasci pelo fato de me ter escolhido a mim próprio". Aqui a estética e a ética equilibram se dialeticamente. A consciência da necessidade de escolha é o que precisamente viria a ser proposto mais tarde por Duchamp, a par da indiferença estética; ready-made, indiferença perceptiva total, angústia de existir inteiramente assumida, pertinência da liberdade. Schwitters dirá: "Tudo o que o artista mija é obra de arte".
TODOS OS CAMINHOS VÃO DAR A UM ESTADO ZERO. POR ENQUANTO...
Sentido irreversível de uma transformação, corte dialéctico arrastando violências e incompreensões, negando as e formas lentas e paulatinas: mutação do estético em ético; definição da liberdade futura – utópica, como alcance de todas as acções do presente. Identificação da arte com a Vida. Fronteira e porta em vez de moldura. Primeiro passo, libertação de todas as eloquências, redução a zero dos discursos, libertação da palavra. Duchamp está para Saussure como Marx para Freud.
(…)
Na verdade Tucuman Arde foi uma operação conceptual realizada em 1968 pelo Grupo Rosário da Argentina, em estreita colaboração com a união dos sindicatos – e que respondeu na prática a todas estas questões. Aí as duas vanguardas (a política e a estética) mais uma vez se encontravam numa só o que certamente é a vocação de todas as "vanguardas". Podíamos referir experiências como o The Arts Worker’s Coalition, América 1969; o Artists Liberation Front, formado em Londres em 1972, e muitas outras experiências colectivas ou individuais. Mas tudo isso já releva de um dos aspectos polémicos que gostaríamos de atribuir a Alternativa Zero: Dentro de uma escolha que se caracterizara principalmente pelo rigor semântico (zero semântico), tentar uma discussão interna referente ao estado da investigação estética em Portugal, servindo nos de modelo o definido pelas próprias obras e ideias contidas nesta manifestação, no espaço de Belém. Será isto possível, apesar do frio, de todos os "frios" que atacam e desgastam a cultura portuguesa? É o que vamos saber.