artigo não publicado, escrito para "Cartas do Meu Magrebe", Jornal de Notícias
1963
Republicado em Cartas do meu Magrebe, Lisboa, Tinta da China, 2011.
"À frente de mais de 4.000 homens o coronel Boumedienne, chefe do Exército Nacional Popular, fez uma entrada triunfal em Argel" – noticiavam os jornais em telegramas de 9 de Setembro do ano passado. Alguns meses decorridos eis-me em frente deste lendário "coronel", no moderno edifício do Governo. Há apenas alguns dias que Boumedienne foi eleito Ministro da Defesa Nacional.
Não precisei de fazer os "cem passos" para ser recebido. Ao cruzar com ele nos corredores, reconheci-o facilmente e dirigi-me a ele directamente. Não se admirou da sem cerimónia, julgo mesmo que isso o impressionou favoravelmente. Boumedienne é um homem de aspecto simples. Num número recente do El Moudjahid (O Combatente), dedicado ao "Primeiro Governo da República Argelina Democrática e Popular", numa fotografia em grupo dos dezanove ministros, ele é o único que se apresenta sem gravata. E com o mesmo fato claro com que veio agora, e que faz lembrar a cor caqui dos fardamentos. Todavia, ninguém mais civil, nas maneiras simples e urbanas.
A nossa conversa começa com uma evocação. Falo-lhe de uma fotografia que vira no Match, ainda em plena guerra, em que Boumedienne posava na sala do Estado Maior da Tunísia, com três dos seus assistentes. Um pormenor dessa fotografia chamara a minha atenção: ao fundo da sala, num armário com livros, a colecção – que parecia completa – de uma série francesa de divulgação cultural, a colecção Que sais-je? (O que sei eu?). Boumedienne e os seus homens vestiam amplas djelabas, e na parede em frente via-se um grande retrato de Abdel Kader. O homem que está agora na minha frente, com o seu ar pálido e uma severidade simples, pouco propensa às efusões, sorri. Às minhas questões sobre a importância da cultura francesa, responde com diplomática sobriedade: "Claro que dispúnhamos dos livros necessários".
Os livros necessários para "se saber o que se sabe", para conhecer correctamente o mundo – esta preocupação encontro-a no Ministro como "no pequeno gerente cooperativo" do bistrot de Orão. E por isso também, tenho uma certa dificuldade em não ser eu o entrevistado...
E para isso é necessário que lhe faça perguntas rápidas e directas.
– O que é o Exército Nacional Popular? Quais são os seus problemas actuais? Como conta participar na construção do país?
– Arriscamo-nos a nos pôr alguns falsos problemas ao falar do E.N.P. – se nos esquecermos do seu carácter mais militante do que militar, e da sua natureza popular. O E.N.P. é composto de camponeses, operários e estudantes...
... o seu problema actual número um, é a reconversão em efectivos (redução dos seus efectivos sem criar sérias inquietações nos moudjahiddines sobre o seu futuro), e na qualidade das novas tarefas assumidas (a reconstrução do país). O E.N.P. será uma força produtiva, pela sua participação na reconstrução, e evitará assim o perigo de se tornar um fardo para o país.
Numa palavra, a reconversão passará em primeiro lugar pela unificação e pela uniformização dos métodos, em seguida por uma reorganização geral ditada pelas necessidades das novas missões de hoje e de amanhã.
As actividades económicas, administrativas e políticas...
Boumedienne interrompe-me:
– Serão assumidas em parte por um exército desmobilizado, mas que pode rapidamente reassumir as suas funções na Defesa Nacional; em parte pelo próprios quadros organizados, em missões de vanguarda e pioneirismo...
... o Exército terá assim uma missão que excede o domínio militar?
– Como sempre. Lembre-se do que lhe disse no princípio.
Faço então a Boumedienne um pergunta delicada. Falo-lhe no ambiente "doigt sur la gachette" (ambiente tenso) que observei em Orão: "O reagrupamento do exército francês, previsto nos acordos de Evian, e que parece efectuar-se com certa lentidão, não fará recear o perigo de um novo atrito, de uma nova situação de guerra, ao sabor de futuros acontecimentos políticos imprevisíveis..."
– Falo-lhe como antigo maquisard (membro do movimento secreto de resistência francês)... desconfiado, portanto. O maquisard é desconfiado por natureza... (Uma pausa, um ligeiro esgar, que talvez seja um sorriso). Não, não acredito nesse perigo. Os soldados franceses que ficaram na Argélia cumprem o seu dever. Aqui e ali pode haver excesso de zelo. Mas as condições para qualquer recomeço do conflito desapareceram completamente... (Uma nova pausa, agora não há dúvida, trata-se mesmo de um sorriso). A paz está definitivamente ganha, do ponto de vista militar.
Este artigo faz parte da série Cartas do Meu Magreb publicadas no Jornal de Notícias de Novembro de 1962 a Abril 1963. De 23 artigos, 6 ficaram inéditos devido à suspensão da publicação por motivos políticos, em 1963, conforme carta da Direcção do jornal abaixo transcrita.
Jornal de Notícias
Avenida dos Aliados
Porto Portugal
Direcção
Porto, 9 de Julho de 1963
Exm.º Sr.
Ernesto de Sousa
Rua Santo António da Glória, 6–2º C
Lisboa 2
Exm.º Senhor
Há dias informámos a esposa de V.Exª. que só agora foi possível enviar à tipografia os originais CARTAS DO MEU MAGREBE a fim de serem publicados.
Os acontecimentos últimos em relação ao nosso ultramar, o sistemático ataque dos países Afro-Asiáticos à nossa política ultramarina e principalmente à acção desenvolvida por Argel em prejuízo da nossa soberania nas Províncias Ultramarinas, levam-nos a não permitir a publicação das últimas crónicas. Não achamos oportuna qualquer publicação no nosso jornal que mesmo em crónicas de viagem se refiram a um País que tão desfavorável e reprovável atitude tem assumido contra o nosso País.
Nesta data devolvemos as crónicas que tínhamos em nosso poder, sob registo.
Com os melhores cumprimentos, subscrevemo-nos,
De V.Exª
Atentamente
Jornal de Notícias
Director
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Jornal de Notícias
Avenida dos Aliados
Senhor M. Pacheco de Miranda
Director
Rabat, 25 de Setembro de 1962
Caro Senhor Director
Eis-me em Rabat, em pleno trabalho. Vencidas as formalidades legais, que demoraram bastante tempo, resolvi fazer uma viagem no sentido Marrocos–Argélia–Tunísia, para chegar em menos tempo ao Norte d’África. Há uma semana que estou em Marrocos e parto dentro de pouco para a Argélia, resolvendo da melhor maneira os obstáculos que se me deparam. Estou equipado para fazer cerca de 800 fotografias a preto e branco e uma centena a cores. Tenho vivido intensamente este viagem e espero poder corresponder à confiança e à boa compreensão jornalística com que V. se interessou pelo meu trabalho. Brevemente enviarei a primeira série de crónicas e um plano de conjunto.
Entretanto estrear-se-á no Porto o meu filme Dom Roberto e só me consola não estar convosco nessa altura, o facto de estar a escrever para um jornal dessa cidade – de onde só me tem vindo estima e entusiasmo, e companheirismo no trabalho.
Até à minhas próximas notícias, peço-lhe que aceite as minhas saudações e o testemunho da minha franca admiração.
ES
P.S. As autoridades marroquinas têm-me prestado todas as facilidades e felicitam-me por ser o primeiro jornalista português a fazer uma reportagem "de fundo" sobre o seu país.