René Gilson, Cahiers du Cinéma, n.º 181
Agosto de 1966
[Excerto]
Tradução portuguesa publicada em Cineclube Imagem, Novembro–Dezembro de 1966.
À margem do Festival de Veneza de 1963, um homem moreno apresentou ao mesmo tempo modesta e altivamente, como franco atirador corajoso, numa sala alugada à sua custa, um filme fora-da-lei como o era, nas mesmas circunstâncias, Pelle Viva de Giuseppe Fina. Ambos os filmes foram finalmente revelados aos cinéfilos parisienses este ano, depois de terem sido inscritos no catálogo das Federações de Cineclubes. Alguns animadores da F. F. C. C. conheciam, além disso, o autor de Dom Roberto desde há mais de dez anos, desde o tempo em que Ernesto de Sousa era frequentemente, com outros críticos estrangeiros como Delvaux, hóspede dos estágios de Marly. Sousa fundara então uma revista de cinema, Imagem, e sabia que longo e paciente combate era preciso travar para realizar um dia um filme, como sabia qual seria a sua própria paciência, Delvaux que nos mostrava então os pequenos filmes que realizavam em 16 mm sob a sua direcção, os seus alunos do liceu. Hoje, seis anos após estes encontros de Marly, vemos os filmes de Sousa e Delvaux.
Dom Roberto foi produzido em cooperativa. Com um orçamento de 17 milhões de francos antigos, actores não profissionais, com todo o seu fervor e a sua energia, Ernesto de Sousa, fez o seu filme. O personagem, João, é apresentador de fantoches, mas as crianças dão-lhe o próprio nome do bonecreiro português, Dom Roberto. João é um artista de bairro pobre, que diverte crianças pobres. Ele próprio é muito pobre e por isso expulso do seu quarto. Mas a miséria e o infortúnio de Maria são ainda maiores. Ela não possui qualquer abrigo nem trabalho. João encontra-a e salva-a do suicídio. Primeiro sobrevivem, depois vivem um perto do outro, depressa desejando João, secretamente, pudicamente, que se juntem. Eles encontram um refúgio precário numa casa vazia para abater pelos construtores. Aí acampam, em plena cidade, em plena civilização. O fim não será nem feliz, nem infeliz, sobrevivem. Mas o filme de Sousa não é uma história de amor e miséria, é um filme de ternura humana e de coragem, uma face da bondade. Sousa é um homem de cultura e de grande cultura cinematográfica, e o seu filme é uma obra de artista e de poeta, com o coração e o espírito livres e abertos. Evitou todas as armadilhas: o miserabilismo, o populismo, a sentimentalidade, o requisitório social, o folclore. Não é uma história de miséria mas um filme sobre a pobreza. É muito raro. Não é uma pobreza de conto de fadas, nem uma pobreza de boémia, de artista famélico, nem uma pobreza muito simples donde se fizesse virtude franciscana, é a pobreza de um humilde português, nada mais.
(…) Para se ser hoje em Portugal, apresentador de fantoches populares, em lugar de vender cigarros americanos do mercado negro, ou de passar clandestinamente os Pirenéus para encalhar entre uma bidonville e um cantão de trabalhos públicos, é preciso ser um pouco iluminado, cândido, é preciso andar sempre a uns centímetros acima da terra, ser moralmente funâmbulo. É isto que Sousa nos mostra com tanto tacto, medida, delicadeza. Este tacto e esta delicadeza são também qualidades do seu personagem.
Não é a timidez que retém João diante da jovem que ele começa a amar e que gostaria de fazer sua companheira, é um sentimento antigo, senão perdido, de cortesia e de respeito que nunca se presta ao riso e à ternura. O filme é contemplativo, mas não alonga a sua duração, não prolonga qualquer instante, mas os instantes passam-se lentamente, em cheio. Se por vezes se pensa em Bresson, por vezes em Rossellini, não é porque se trata de influências directas, nem mesmo da parte de Sousa de uma homenagem ou de uma saudação a Bresson ou a Rossellini. Somos nós que saudamos aí, Ernesto de Sousa e que rendemos homenagem à honestidade, à luminosidade do seu talento.