Bibliografia

QUE VIVA LA MUERTE!

Lorenti’s, n.º 14
Julho de 1973

Nas últimas imagens de um filme muito belo, e já antigo, Orson  Welles afastava-se lentamente enquanto se ouvia a sua voz num lento e doloroso exame de consciência. Tudo tinha morrido à sua volta. Ela, também, a “Dama de Xangai”.

Qual era ao certo o seu grau de culpa? Sem encontrar resposta, o personagem desaparecia na lonjura ao mesmo tempo que se ouvia esta impressionante conclusão: "NÃO IMPORTA! O QUE INTERESSA É ENVELHECER BEM!"

Estas palavras sempre se associaram no meu espírito ao grito paradoxal de revolucionários românticos e latinos: "Que viva la muerte!"... E agora, estranhamente, penso nisto tudo depois da última conversa com um coleccionador de obras de arte moderna, destes que começa a haver entre nós, mais sinceros, mais apaixonados (e desorientados... ) do que se pensa normalmente. Como todos nós temos tendência para as explicações fáceis e superficiais, é frequente interpretar o recém-surgido mercado de obras de arte em Portugal através de razões puramente económicas e... mercantis. Pobre explicação, estilo pescadinha-com-o-rabo-na-boca! Como se o dinheiro (para lá de certos limites, claro) não fosse também uma mercadoria cuja acumulação exige explicações profundas e graves... Ninguém negará o factor económico e de investimento razoavelmente seguro na compra de obras de arte; também não se negarão outras razões ainda superficiais, embora menos: adquirir prestígio social e... íntimo; exercício do poder sobre o espírito e os seus factores, tradicionalmente supostos mais independentes e irrequietos, os artistas. Esquecem-se no entanto, com frequência, as razões profundas. A essas, costumo classificá-las em dois grupos:

O GOSTO, O PRAZER. São as razões mais legítimas e difíceis de analisar e, ao contrário do que se afirma também podem coincidir, coincidem geralmente com uma total ou parcial falta de preparação intelectual, conhecimentos, informação.

RAZÕES EXISTENCIAIS PROFUNDAS: “Envelhecer bem” ou “Que viva la muerte”. Aqui me deterei um pouco nesta crónica. Marcel Broodthaers, importante operador  estético do nosso tempo, inventor de um antimuseu e de uma anticinemateca, em Dusseldorf, deu uma excelente definição desta ordem de razões: "A arte vende-se porque as pessoas têm má consciência." Esta má consciência, por sua vez, precisaria de ser definida. Por agora vou direito ao essencial. A má-consciência é um feixe de nostalgias. A nostalgia do Pai (autoridade, autenticidade), da Mãe (origem, pureza); a nostalgia do tempo, da própria personalidade que se escapa nas malhas do dia-a-dia, no espelho do envelhecimento e da morte, previsíveis e, simultaneamente, impensáveis. A obra de arte é assim amável logro, e a sua acumulação uma tentativa entre outras de fugir ao tempo, adquirir eternidade – e  "Que viva la muerte!"

Mas voltando ao coleccionador. Todo um mundo se organiza à sua volta. Multiplicam-se as galerias de arte moderna (ou pelo menos, assim designada); as exposições sobem de nível, a cultura organiza-se,  profissionaliza-se – o que só aparentemente é contraditório. E o coleccionador? Neste pequeno universo, e neste tempo (entre parêntesis) é dele verdadeiramente a aventura. E as dúvidas, as alegrias, os terrores... o ávido desejo de aprender depressa, encontrar aliados e informações sólidas. Na maior parte das vezes (com frequência antes dos próprios artistas e críticos!) sabe que o simples gosto é um critério menor e altamente falível. O terreno é movediço. Como orientar-se? Eu conheço alguns e cada vez me apaixono mais por uma aventura com a qual só muito longinquamente me identifico. São eles que vêm até mim.

Amigavelmente e com vagares felinos, numa "vernissage", num café, ao acaso dos encontros e, como quem não quer a coisa, numa conversa de nada, lá vêm as solicitações de informação, as peritagens disfarçadas, a comprovação desta ou aquela mezinha. "Você acha que um desenho do Sá Nogueira vale x?". "Gostava que visse o meu Nadir!". E eu que amo o amor, finjo deixar-me roubar, se é que tenho alguma coisa para ser roubado... Às vezes até me sinto fraternalmente envolvido. Vamos nisto? Os museus (que em Portugal não há) e as colecções (que em Portugal começa a haver) são a morte da arte? Sim, de certo modo. Mas é morte iludida (pelo aparentemente), morte viva… pois: Que viva la muerte!

P.S.: Mas quando as coisas são realmente sérias eu dou o melhor das minhas mezinhas:

Uma colecção deve ser um trabalho para-científico. Uma aventura e apaixonada, sim mas uma aventura do conhecimento. Neste sentido não basta comprar as obras, e acertar nos respectivos critérios. É necessário adquirir também, conhecimentos e documentação. Investigar. Organizar a
colaboração. Pelo menos com tanto método e abnegação estudiosa, como os bons filatelistas e numismatas. E, na melhor da hipóteses: ser inconformista. Coleccionar, deixará assim de se identificar com a simples acumulação e apontará a mundanidades menos superficiais. E até o problema (ou a obsessão) da morte – mesmo romântica – deixará de se pôr. No fio dos acasos, voltaremos a este problema.